AOS BENDITOS por alceu sperança

“E ainda assim há os insatisfeitos”, dizia o ex-secretário municipal da Saúde de Cascavel, Nadir Wille, ao prestar contas de suas atividades em um ato promovido na Câmara municipal, achando que estava fazendo grande coisa pela saúde popular. Benditos insatisfeitos! Sem eles o mundo não evoluiria. E a saúde, que não anda nada bem em lugar nenhum, estaria muito pior.

John Stuart Mill (1806–1873) nos socorre, bendito seja: “É incontestável que todos os melhoramentos nas questões humanas são obra apenas de caracteres insatisfeitos”. O grande professor angolano Manuel Cruz Malpique, autor de Introdução Sentimental às Bibliotecas, chutava as canelas dos conformistas sustentando a idéia de que a civilização, todinha ela, é obra dos insatisfeitos: “Todas as grandes transformações sociais e materiais de que a História nos dá conta as devemos à rebeldia de alguns loucos contra os homens de bom-senso”.

Talvez não fosse preciso chamar outros testemunhos geniais para reforçar a idéia de que a insatisfação é um dos motores principais de qualquer desenvolvimento, mas não resisto a apelar para um depoimento conclusivo: Walter Savage Landor (1775–1864), o bendito autor britânico de Conversações Imaginárias, sentenciava que “os insatisfeitos são os únicos benfeitores da humanidade”.

Benditos os estudantes, que são, dentre os insatisfeitos, os que mais têm chances de vencer e transformar seu mundo. São eles que hoje, em todo o Brasil, puxam o movimento admirável que exige o passe-livre no lotação. O ônibus é a grande resposta para o caos do trânsito, com ruas entulhadas de veículos poluentes, conduzidos por gente estressada a um passo do assassinato ou do suicídio, como se viu no caso tenebroso do deputado Carli Filho.

É inconcebível, um crime contra a cidadania, que a tarifa esteja tão alta – ao redor de um dólar, contra alguns poucos centavos em Cuba e muitos outros países. É também inconcebível que justamente o direito de ir e vir, o deslocamento no espaço urbano, seja uma prova cabal da imensa desigualdade que existe neste País. Uma revelação clara de que estamos muito longe da democracia. Votar é só um grão de areia no universo da democracia, ao contrário do que julgam os banqueiros e outros riquinhos em geral, para os quais democracia é um curral inerme e abobalhado que os elege.

É antidemocrático e injusto alguém deixar de poluir a cidade com um automóvel e ao embarcar num lotação tenha que pagar não só a sua passagem, mas também a dos isentos. Os malandros que instituíram a isenção pensaram algo assim: “Vou fazer moral com deficientes, velhinhos e algumas categorias especiais de meus eleitores. O trouxa do usuário que continue pagando ou faça como aqueles que migraram para o transporte individual!”

O Movimento Passe-Livre faz manifestações por todo o País, encantando todos aqueles que sabem estar na bendita juventude e nos estudantes a energia que nos falta para obter uma conquista essencial na atualidade: que as melhorias nos serviços públicos sejam fruto da vontade das pessoas e não das trucagens dos técnicos oficiais e dos políticos boquirrotos. É preciso exigir a participação da sociedade na gestão da coisa pública.

A rigor, não há de fato democracia real neste País. Em pleno 2006, duas décadas depois que a ditadura fez o favor de se suicidar, estudantes de Florianópolis que pediam o passe-livre foram espancados por um bando paramilitar. Quando a polícia chegou, deu cobertura aos bandidos agressores e prendeu os estudantes, exigindo que o fotógrafo Cláudio Silva, do jornal Diário Catarinense, destruísse as imagens das agressões. Como se recusou, também foi preso.

Eu estou insatisfeito, sim. Exijo imediatamente a bendita bolsa-democracia!

Uma resposta

  1. O professor Cruz Malpique, era português, nasceu em Niza no Alentejo, mas foi durante muitos anos professor do Liceu Alexandre Herculano no Porto. Foi meu professor de Organização Política e Administrativa da Nação. Também foi professor em Luanda nos anos 30-40 do sec XX. Terá sido prof de Agostinho Neto e em 1936 escreveu uma pequena brochura «Bilhete de identidade de António de Oliveira Salazar», com uma ilustração deliciosa, o mapa de Angola figurando a face de Salazar!

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