Lembranças de Loup de Mer – conto – de daisy carvalho / rio de janeiro.rj


Aproxime-se, mon ami. Estou muito velho.

Aqui é um porão – como vês -, onde vivi feliz com minha família por um bom tempo. Nunca foi muito arejado e nem farto de comida, contudo, o que mais importava era que nada pagávamos.

Possuo muitos livros. Revistas antigas, jornais velhos e amarelados. Não sou um colecionador. Adquiri tal hábito para ajudar nas noites de frio. Todavia, meus livros não! Estes eu guardei como pude, embora, ao longo do tempo, as crianças tenham danificado alguns. Assim, é com tristeza que observo a uns sem capa; e outros, até faltando preciosas páginas.

Este aqui eu guardo com carinho e dor. É um clássico da literatura mundial. Chama-se Fome. O dono é um americano chamado Knut Hamsun. Este eu li várias vezes – Oh! Pardonnez-moi! –  Perdoe-me!… Eu jamais soube ler, confesso. Minha sabedoria consistiu em observar e ouvir as pessoas falarem sobre literatura. Minha senhoria é a professora Cécile Legrand. E, graças à sua intelectualidade, muito aprendi.

Sempre gostei de Fome porque eu me comparava ao homem da estória. Sentia sua agonia; sua fome era maior do que a carne. Aliás, a verdadeira necessidade dele era de ser reconhecido como escritor. A parte em que ele come cascas de laranjas do lixo era onde eu sempre chorava.

Sei o que a fome pode causar. Antes de trazer minha família para cá, eu mendigava pelos portos desta América. Gosto deste lugar em que vivi até hoje. É um país pequeno, mas justo. Eu nunca mais voltei à minha Europe.

Eis meu livro preferido: a Bible Sacré. Dela, tirei inspiração para orientar meus filhos, minha esposa, e muitos membros da família. Eles me respeitavam como a um sábio. Não obstante, minha “sabedoria” não salvou suas vidas.

Apesar de nos acolher, a senhoria não era nossa amiga. Não obstante, em sua infinita generosidade, ela convivia bem com a nossa presença, ainda que nos ignorasse. Esta senhora possui a frieza de uma inglesa, apesar de ser francesa.

Todas às quartas-feiras, ao entardecer, e nos domingos pela manhã, algumas pessoas se reuniam lá em cima para estudar a Bible.  Armand, meu primogênito, dizia sempre que tal livro era racista, pois nem lá nosso povo fora mencionado. Eu tentava explicar que as lições que tirávamos dela eram espirituais, mas meu Armand tornou-se ateu, o que muito me entristecia. Touxsanglante! Maldita tosse…

Criei meus filhos dando-lhes liberdade, porém o primogênito era diferente de todos. Provavelmente – embora eu abominasse acusações – meus quatro filhos estariam vivos hoje, não fosse aquela infeliz ideia de meu rebento.

Éramos seis. Pardom, eu sou Loup de Mer, ou Lobo do Mar – epíteto adquirido por tantas viagens náuticas ao redor do mundo, antes de conhecer minha Celine. A doce e dedicada esposa era como poucas mulheres. Esbelta e feliz transitava pelos aposentos com graça e leveza, compensando nossa miséria com fartura de amor.

Armand era um rapaz de opinião forte e mordaz. Já Andrew, o segundo a nascer, sempre fora calado, e prestava atenção em tudo que se dizia. Provavelmente seria o próximo contador de estórias (era aficionado no Holocausto). E, finalmente, as gêmeas Nicole e Noelle, meninas meigas e educadas, contudo, eu sempre soube, pelo brilho de seus olhos, que queriam, assim como eu, viajar pelo mundo.

De tudo que perdi, sinto mais falta das conversas sobre as guerras. Há gerações, nossos patriarcas são contadores de estórias sobre grandes batalhas; desde os combates navais, milênios a.C., até aos dias atuais. As lutas que acabaram com a Idade Antiga, fazendo Roma cair, no ano de 476 d.C., era a que meu pai gostava de contar. Meu avô, mais informado, narrava a guerra liderada por um monarca chamado Suppiluliuma II, que era o rei do Império Hitita, povo indo-europeu, que hoje é a Turquie.

Meu tio e eu discutíamos sobre as cavalarias de Alexandre, o Grande; e de como ele abocanhara o Império Persa. Empolgávamo-nos com as armas. O arco e flecha, e as poliarmas como as lanças, foices e pilos – uma lança composta de uma parte de ferro mais pontiaguda, e outra ponta de madeira, maior e mais pesada. Porém eu preferia as armas de corpo a corpo, como espadas, lanças, porretes, machados e facas. Ah, as catapultas!… (Dieu! Tirai-me esta tosse!). Enfim, esta era a tradição da família.

Entretanto, eu resolvera falar de uma guerra que ainda não havia acontecido. Por um lado, eles ficavam encantados; não obstante, eu sabia ser um risco, podendo quebrar a tradição da família. Todavia, eu e a Senhorita Legrand acreditávamos que ela aconteceria.

Eu, Loup de Mer, só falava do Armagedom!

Lembro-me bem da última vez em que os reuni, a minha adorada famille, para, mais uma vez, contar-lhes a estória desta verdadeira Conspiração que eu chamava de Dieu de la Guerre! – A Guerra de Deus.

Os meninos ouviam fascinados. Ante a cética expressão de Armand, Celine argumentava que eu poderia ser um profeta. Ele, que ouvia de má vontade, relutava em seu íntimo. No entanto, esforçava-se em respeitar o antigo hábito de nossos antepassados. Guerra era guerra, ele dava de ombros.

O Armagedom, eu falava animado, seria a mais magnífica de todas as guerras. E tudo começara há muito, muito tempo atrás…

Lúcifer fora uma poderosa criatura do Grande Céu, um planeta de excelência onde Dieu, anciãos, maravilhosos animais falantes e seus anjos fiéis, viviam em perfeita harmonia.

Após discordar do Soberano Ser, e invejá-lo, achando mesmo que poderia ser tão poderoso quanto ele, Lúcifer foi expulso daquele habitat divinal. Dieu, onisciente, sabendo da conspiração contra seu Reino, criou um Arcanjo (anjo de guerra) chamado Miguel, especialmente para expulsar os anjos da conjuração.

Um terço de tais criaturas aliara-se ao terrível Démon. Um terço era um número incalculável, dizia a Senhorita Legrand. Chamava de miríade de anjos. Eles reuniam-se em um planeta um tanto afastado daquele de Dieu, lá pelas bandas no Norte, dizia a Bible.

Lúcifer era maestro. Fora criado com todo amor de Dieu para fazer música no Grande Céu. Quando andava, tilintavam notas e mais notas em seu ser. Afirmava a senhoria, que ele era capaz de humilhar qualquer Beethoven ou Charles Gounod; este último um artista que compunha óperas e músicas religiosas.

Então, o arcanjo Miguel chegou a tal planeta conspiratório, provocando grande alarido com suas asas. (Aqui eu parava para explicar que asas poderiam ser alegoria, pois eu penso que eles se locomovem em naves espaciais que são os chamados ovnis; até porque o velho profeta Ezequiel vira discos reluzentes no céu, há milhares de anos, referindo-se a anjos).

O traidor Lúcifer, alarmado e surpreso, perguntou a Miguel quem era ele, pois jamais o vira antes. Este novo arcanjo respondeu com a tradução de seu nome, numa intimidadora voz de trovão: “Meu nome é: “Quem Quer Ser Semelhante a Dieu?!

Armand apenas sorria, enquanto seus irmãos estremeciam. Eu continuava, escolhendo bem as palavras, reproduzindo-as com deferência e fidelidade.

Esta miríade de anjos caídos é assim denominada porque, de fato, fora habitar em um planeta inóspito e escuro, muito abaixo do Grande Céu. Ficaram submersos em águas amargas, e um grande Espírito pairava sobre eles como um divino carcereiro; enquanto o próprio Dieu realizava o seu sonho – a criação do ser humano! (eau potable, preciso de água).

Minha mulher se agitava porque, conhecendo o final da estória, sabia que corríamos risco de vida, afinal, esta não era nossa crença e jamais poderíamos ser aceitos como devotos deste Ser.

Pois bem – eu continuava – o Armagedom é uma grand conspiration politiqueenvolvendo todas as Nações. Este anjo rebelde passou a ser alcunhadoSatanás, que significa “Adversário”. A partir deste novo cognome, dado pessoalmente por Dieu, a guerra fora declarada intergalacticamente. Satanás vive aprisionado em um planeta tenebroso. Perdeu toda formosura depois de tamanha traição. Diz a Bible que sua aparência hoje é medonha, e que um dia os chefes das Nações o humilharão por sua desgraça, perguntando entre si: “Era este o anjo com timbales, formoso e belo de Dieu?”  – Habitando em uma espécie de caverna, ele comanda os ex-anjos, agora conhecidos por demônios, e estes são os tais que ainda conspiram contra a paz universal. Contra o poderoso Dieu! E enganam o mundo, convencendo-o de que Este não existe.

Neste ponto, Armand sempre perguntava por que tale Dieu simplesmente não destruiu este merd tão sórdido e nocivo à raça humana e à natureza. Eu, mais do que depressa, rebuscava as respostas da Senhorita Legrand:

‘’Porque este Ser Criador e Gerador de todas as energias não se contrapõe a nenhuma criatura Sua, pois Ele é único. E, sabedor de todas as coisas, declarou que Satanás poderia pintar e bordar, mas que no fim, a vitória seria d’Ele! Porquanto um de seus nomes era O Senhor dos Exércitos! E jamais perdeu uma batalha sequer! Graver Satan! Queime!’’

Pairando o Anjo Maligno na Terra nestes últimos tempos, uma nova era se avizinha. Dentre tantos sinais da vinda de seu Governo, o que mais me apavora é que os homens terão que usar um chip na testa ou na mão. Este acessório altamente tecnológico será a Marque de la Bête, ou, a Marca da Besta. Sem tal chip, não se comprará e nem se venderá coisa alguma. É um chip de identificação. E os que forem contra a nova ordem estabelecida, estarão perdidos e condenados à morte por este que será o Grande Chefe das Nações. Deves saber que tais chips já estão sendo experimentados no Japão e na América, pois não, mon cher?

Este maligno homem, de espantoso poder, fará pactos políticos e econômicos com o Estado de Israel por sete anos. Entretanto, na metade deste tempo, ele se mostrará um traidor e assentar-se-á no trono de Salomon.

Israel, obviamente, declarará guerra ao Anticristo. Todavia, ele estará com a maioria das Nações sob seu controle, fazendo com que o mundo se declare inimigo daquele Estado. E as Nações o obedecerão porque, de fato, falaz e patranheiro, o enganador trará prosperidade e riqueza a todos! (Aguarde… preciso respirar…).

Nicole e Noelle gostavam muito desta parte derradeira, pois, assim como sua mãe, ansiavam pelos finais das guerras. E todas, sempre, tinham que ter fim.

A Senhorita Legrand parecia entrar em êxtase nesta hora – e até pronunciava línguas desconhecidas por mim – quando afirmava que o povo judeu clamaria! Finalmente chamaria por seu Dieu, um Ser tão desprezado e desacreditado por tanto tempo!

Eu ficava a imaginar esta guerra que reunirá tantas Nações… contra um único Estado. Só um poder sobrenatural para livrá-los.

Armagedom, que significa Montanha de Megido, é o nome de um campo de batalha, onde as Nações do Anticristo serão confrontadas por este Ser Guerreiro que virá em socorro de inexequível guerra. Jamais se terá notícia de confronto tão espetacular! Segundo a Bible, o próprio Dieu derrotará e julgará todas as Nações. As condenadas não serão dizimadas, mas lançadas fora, em lugar de desterro. (F-frio…)

Não cheguei a terminar a estória, pois ainda teríamos mais umas quartas-feiras para os estudos do Apocalypse; mas creio que entendera o suficiente.

E este foi o último dia em que vi meus filhos, já que Armand, verdadeiramente iracundo, entrou em um navio com seus irmãos, em busca das terras de Israel. Ele precisava conhecer esta estória de perto, disse à mãe, na minha ausência.  Entretanto, desconfio que meu filho queria mesmo era sair pelo mundo. E que sempre seria athée, meu adorável ateu.

Duas semanas depois, soubemos que foram massacrados por marinheiros como eu, dos quais me envergonho. Eu, Loup de Mer, traído por navais! Foi uma punhalada cruel nas minhas costas. Todos os meus filhos mortos de uma só vez era difícil de suportar. Minha esposa morreu de desgosto dias após a funesta notícia.

E eu me pergunto por que o racismo do homem alcançava proporções tão monstruosas. Por que, tendo um Dieu tão grandioso, eles ainda guerreavam entre si? Estaria Armand tão errado em não acreditar em nada?!… (pardom, a tosse).

Hoje, percebo que sempre falamos das guerras para buscar entender este explícito ódio do homem para com seus semelhantes.

Pensei em me despedir da Senhorita Legrand. Mas, decerto, ela nem perceberá a minha ausência. Eu estou de partida. Não para o mar, uma nova viagem. Pas, não!

Apenas encontro-me velho demais. Cansado ao extremo. Cego, já não enxergo meus livros. Eu morrerei, talvez, ainda esta noite. Como vês, tremo de frio sobre os jornais amarelados. Nada tenho para comer. Ainda assim, agradeço vossa atenção, mon ami.

Minha raça está em extinção. Hoje em dia, quase não se tem notícias de nós, Ratos, viajando em navios, ou vivendo decentemente, sem termos que passar fome e humilhação.

Só lamento não ter tido tempo para entender um pouco mais o vosso Dieu

Uma resposta

  1. Obrigada, editor J B VIDAL, por divulgar meu trabalho. Forte abraço a todos! 🙂

    Curtir

Deixe um comentário