Arquivos Diários: 11 julho, 2010

PROBLEMA CONJUGAL por hamilton alves / ilha de santa catarina

Maria e José se encontraram um dia em circunstâncias que nunca souberam se explicar. Pouco tempo depois se casavam.

Ele era jornalista, ela professora.

Tudo ia  bem no início com o casal. Até que um dia…

Na vida de um casal, seja qual for, há sempre um dia.

Esse dia não demorou muito.

José era homem prático, sem protocolos nem formalismos. Ao contrário de Maria, que era amante dos detalhes (aliás, como a grande maioria das mulheres).

Num certo dia, José entrou porta adentro informando a Maria que no dia seguinte, à noite, compareceriam a um jantar na casa do editor do jornal em que trabalhava. Se topava o convite.

Maria gostava de umas festinhas desse tipo para encontrar as amigas, algumas delas colegas de trabalho do marido.

No dia seguinte, antes de sair para a redação, José lembrou à esposa que tinham o compromisso do jantar. Deixou-lhe dinheiro para que comprasse um bom presente para o casal anfitrião.

José retornou cedo, fora de seus hábitos, à casa.

Sabendo que Maria levava tempo para se arrumar, enfiou-se primeiro no banheiro, dando todo o tempo para ela.

Quando foi a vez de Maria, demorou-se no banho. Quando deu com José na sala, estava de terno, gravata, lendo o jornal daquele dia, pronto para sair. Só à espera que Maria se arrumasse.

– Só agora que você saiu do banho? – perguntou, vendo-a embrulhada na toalha. – Vamos nos atrasar.

– Me arrumo rápido. Um instante só.

José já tinha lido todo o jornal. Até a seção de palavras cruzadas tinha resolvido quase toda.

– Mariaaaaaaaa! São quase nove horas!

– Não se apresse, meu bem. Há tempo para tudo na vida.

– Não podemos dar o vexame de chegarmos atrasados. É uma indelicadeza. Além do mais…

– …você é muito nervoso, espere um pouco… o mundo não vai se acabar por um pequeno atraso.

– Já pensou no congestionamento, na distância que tem de nossa casa até à do Demerval (nome do editor chefe)?

– Levou mais uma meia hora para dar-se por pronta.

Quando deu com José, estava de pijama, chinelo, lendo o mesmo jornal, tendo concluido as palavras cruzadas.

– Estás pronto? – perguntou-lhe.

– Estou, vamos pra cama!

Maria saiu porta afora, não sem antes arrancar a aliança do dedo e jogar na cara do marido. Pegou um taxi e foi dormir aquela noite na casa dos pais.

José, sem saída, foi resolver  palavras cruzadas.

SENHORES CORRETAMENTE VESTIDOS por jorge lescano / são paulo

SENHORES CORRETAMENTE VESTIDOS

(Fila de um homem só)

Projeto Descritivo da Coreografia

Duração do espetáculo: 30 minutos.

Técnica utilizada: Klaus Viana.

Música: Som ambiente das ruas e texto anexo em off.

Cenário: Rua(s) do centro da cidade.

Figurino: Roupas de passeio.

Adereços: Nenhum.

Senhores Corretamente Vestidos é uma pesquisa de aplicação da técnica Klaus Viana de Consciência Corporal à representação de situações dramáticas.

O corpo do bailarino-ator desenvolve, em momentos sucessivos, os movimentos básicos da dança: Projeção e Translação. O tema da obra foi retirado do cotidiano da cidade de São Paulo: uma fila, espécie de instituição informal brasileira. A expressão corporal dramatiza os personagens representando o figurino (ausente) mencionado no título, que vai se modificando a medida em que chegam outras personagens para se integrarem à fila-dança.

Do ponto de vista da seqüência de movimentos (coreografia), o projeto inova o conceito de dança. Aqui, o movimento não é “ilustrativo” da música, antes, contracena com o ruído das ruas – gravado quando apresentado em teatro –  e obedece às indicações do texto, que funciona como rubrica .

O bailarino constrói a figura indicada pelo texto, permanece estático por alguns instantes, permitindo que o espectador tome consciência da presença do personagem. Depois constrói a personagem seguinte deslocando-se para o lugar que lhe é designado. O vidro no qual se reflete a figura integra o ambiente – urbano: pedestres e veículos se encenado na rua; no caso de apresentação em teatro, o fundo do palco terá como cobertura espelhos ou outro material que permita a reprodução visual do intérprete e a inclusão da platéia no espetáculo. O efeito final da obra deverá sugerir uma seqüência de fotogramas, ou um friso em alto-relevo, observados da esquerda para a direita, segundo a ordem de nossa leitura. Na seqüência, sem interrupção, a “fila” é desfeita. O bailarino desconstrói as figuras em sentido inverso, da direita para a esquerda, como num espelho, retornando ao local da partida (princípio da fila) representando o personagem inicial.

Para a Ficha técnica

Texto: Jorge Lescano

Intérprete (Voz e dança): Jorge Balbyns

(sem título I)

señora primera la de lado al posta se ,vestida correctamente tan no ,señora otra ,señor primer del ,mire se según, atrás o lado al posta se ,vestida correctamente ,señora uma ;vidrio de puerta de la delante posta se vestido correctamente señor un:um senhor corretamente vestido se posta diante da porta de vidro; uma senhora, corretamente vestida, se posta ao lado ou atrás, segundo se olhe, do primeiro senhor; outra senhora, não tão corretamente vestida, se posta ao lado da primeira senhora; outro senhor, não tão corretamente vestido quanto o primeiro, se posta atrás ou ao lado, depende da escolha do observador, da segunda senhora; um jovem, meticulosamente desalinhado, se posta ao lado do segundo senhor, não tão corretamente vestido quanto o primeiro, como já foi dito; uma jovem, ligeiramente desalinhada, se posta atrás do jovem meticulosamente desalinhado, um cavalheiro, ao qual não é possível chamar de desalinhado, porém tampouco de corretamente vestido, se posta ao lado da jovem ligeiramente desalinhada; uma dama, sobriamente vestida, se posta atrás do cavalheiro ao qual não é possível chamar de desalinhado nem de corretamente vestido; um ancião aparentemente ébrio e mal-trajado e surdo, a julgar pelo modo de inclinar a cabeça, se posta ao lado da dama sobriamente vestida, a qual, por contraste simultâneo, começa a parecer  elegante e fora de lugar, o que provoca os protestos de algumas das figuras mencionada, que pretendem ter postergadas suas prerrogativas. No vidro fumê se reflete o tênue estremecimento dos presentes: os primeiros senhores corretamente vestidos cedem suas vagas às senhoras corretamente vestidas, ficando eles em segundo lugar; por motivos de equilíbrio, as damas sobriamente vestidas ocupam a terceira vaga, que antes pertencia às senhoras não tão corretamente vestidas e estas passam a ocupar o lugar que ocupavam os senhores não tão corretamente vestidos; para variar, o espaço que era ocupado pelos senhores não tão corretamente vestidos, agora pertence aos jovens meticulosamente desalinhados, e a seguir, por razões de coerência interna, as jovens ligeiramente desalinhadas continuam próximas dos jovens meticulosamente desalinhados. Aqui, porém, surge um garoto desacompanhado e ligeiramente desalinhado à par de uma garota desacompanhada e meticulosamente desalinhada. Ambos duvidam do lugar que lhes cabe. Se o garoto estivesse corretamente vestido, poderia ficar depois do jovem meticulosamente desalinhado, servir-lhe-ia de apoio ou contraste, ainda que pertencendo ao mesmo gênero, deste modo, a garota meticulosamente desalinhada, apesar de reiterar o sexo, deveria ficar antes da jovem ligeiramente desalinhada, de quem seria uma espécie de amostra ou redução, no que diz respeito à idade, e, simultaneamente, sua proto-síntese, do ponto de vista da indumentária. No entanto, também poder-se-ia trocar este arranjo e, entre outras alternativas, o garoto ligeiramente desalinhado ficaria depois da jovem ligeiramente desalinhada, a diferença de sexos compensaria a identidade do atributo; então a garota meticulosamente desalinhada deveria ficar antes do jovem em igualdade adverbial e adjetiva, ganhando ambos o contraste de gêneros. Trata-se de uma questão que deve ser sanada imediatamente, pois os cavalheiros aos quais não é possível chamar de desalinhados porém tampouco de corretamente vestidos, sentem-se como perdidos ao ignorarem os valores da nova escala, enquanto os senhores não tão corretamente vestidos continuam esperando, e a esta altura quase não é possível diferenciá-los dos cavalheiros aos quais não se pode chamar de desalinhados porém tampouco de corretamente vestidos, e mais além, quase avulsos, vê-se os anciães surdos e presumivelmente ébrios e mal-trajados. Instintivamente, a garota desacompanhada e meticulosamente desalinhada, se posta entre o jovem meticulosamente desalinhado e a jovem ligeiramente idem, criando assim a

ilusão de não mais estar desacompanhada. Como o observador poderia prever, o garoto desacompanhado se

posta entre a garota acompanhada e meticulosamente desalinhada e a jovem ligeiramente desalinhada, resolvendo o impasse da seguinte forma: um jovem meticulosamente desalinhado, uma garota meticulosamente desalinhada, um garoto ligeiramente desalinhado, uma jovem ligeiramente desalinhada. A reciprocidade do advérbio dá um certo ar de família aos quatro elementos em foco e decide aos cavalheiros aos quais não é possível chamar de desalinhados, porém tampouco de corretamente vestidos, a se postarem ao lado das jovens ligeiramente desalinhadas; a seguir, os senhores não tão corretamente vestidos deslocam os anciães surdos e presumivelmente ébrios e positivamente mal-trajados para a curva, fora do alcance deste vidro. Ainda assim, os supracitados anciãos, atraindo o olhar do observador, se postam ao lado dos senhores não tão corretamente vestidos, fazendo com que este pareça corretamente vestido do seu lado e ambiguamente vestidos na transversal, uma vez que vizinhos dos cavalheiros aos quais, o que significa, para o observador, outra evidente violação da norma pré-estabelecida e que exige uma reordenação imediata. Para que as violações apontadas não fossem incorporadas à rotina pelos participantes do evento, tornar-se-ia necessário, em prol da simetria original, que o observador se postasse no vértice do ângulo formado pelos senhores não tão corretamente vestidos e o ancião surdo e presumivelmente e positivamente, e que uma senhora idosa e de figurino oposto ao do ancião, para compensar a ausência de reflexo, se postasse ao seu lado, antes do sol reproduzir a imagem dele no vidro fumê da lateral. Contudo, a anciã corretamente vestida não pode surgir pelo simples desejo do observador. Assim sendo, este, na impossibilidade de esperar, sob pena de que um senhor portador de guarda-chuva ou uma senhora de xale bordado, corretamente vestido ou mal-trajada (os), entravem o andamento, e para não interromper a seqüência, opta por  iniciar a série seguinte:  seguinte série a iniciar para opta ,seqüência a interromper não para e ,andamento o entravem ,(os) mal-trajada ou vestido corretamente ,bordado xale de  senhora uma ou chuva-guarda de portador  senhor um que de pena sob ,esperar de  impossibilidade na ,este ,se

POBRE CAMARADA ! por alceu sperança / cascavel.pr

“Que vantagem o camarada da periferia leva?”

Essa questão revolucionária foi formulada pelo então ainda vice-governador do Paraná, o engenheiro Mário Pereira, às vésperas da tensa votação que liquidou a possibilidade de criar o Estado do Iguaçu, em 1992. Ele depois assumiria o governo do Paraná.

Hoje, quando está de volta o enganoso discurso “desenvolvimentista” e anuncia-se aos quatro ventos que em pelo menos um trimestre o Brasil bateu próximo ao fantástico índice chinês de crescimento, lá vem ela de volta, a impertinente questão formulada então pelo nosso Mário Pereira: no que o crescimento que essa gente tanto festeja ajuda o “camarada da periferia”?

Há no Brasil lugares que crescem tanto quanto a atual campeã mundial em crescimento – a China. Vejamos o caso do Pará. Se você visitar Belém, contava esses tempos o jornalista Chico Santos, verá o charmoso centro cultural-gastronômico da Estação das Docas, o moderno estádio Mangueirão e largas avenidas, mas tudo circundado por muitos quilômetros de bairros pobres e favelas.

O Pará cresce acima da média nacional desde 1998. Até 2003 seu PIB acumulou aumento de 32%, contra escassos 13% do país. Na indústria, o Estado mantém o ritmo chinês: cresceu 12% contra 2,9% da média nacional nos primeiros quatro meses deste ano.

Mas a dinâmica desse crescimento é cada vez mais comandada pela indústria extrativa mineral para exportação, segmento que atrai muita mão-de-obra na implantação do projeto, mas emprega pouco na operação e não tem vocação distributiva. Faz eco à nossa suicida monocultura exportadora de soja in natura.

É como crescer às custas daquela monstruosa mancha de óleo da British Petroleum.

Sigo os dados de Chico, na falta de mais atuais. O PIB per capita paraense, em 1994, era de R$ 1.509 e em 2003 foi a R$ 4.367, mas entre os Estados brasileiros mais ameaçados pela fome, a primeira pesquisa do IBGE sobre segurança alimentar mostrou o Pará como o sétimo Estado com maior insegurança (54,3% dos domicílios), pior que Acre e Roraima. Toda essa riqueza e esse crescimento “chinês” não beneficiaram o “camarada” da periferia, portanto.

Que tipo de espetáculo é a economia crescer e o camaradinha continuar sofrendo e sem perspectivas? É o mesmo tipo de espetáculo que destruiu nossas florestas, poluiu as águas, semeou a desigualdades e a violência, enriqueceu meia dúzia e deixou um povo inteiro ao deus-dará.