Arquivos Diários: 19 março, 2010

DE PLATÃO A ARISTÓTELES – por alexandre araújo costa

  1. Superando Heráclito e Parmênides

    Platão é provavelmente o pensador mais influente da filosofia. O modo como ele equacionou as questões da verdade até hoje representa um dos modelos fundamentais do pensamento filosófico.

    Porém, para compreender a importância do pensamento platônico, é preciso dar um passo atrás, e entender o modo como a questão da verdade foi colocada por dois dos mais importantes filósofos pre-socráticos: Heráclito e Parmênides.

    Eles ainda eram filósofos naturalistas, o que significa que estavam envolvidos no projeto de dar uma explicação laica para o mundo natural. Eles são anteriores ao movimento dos sofistas, que deslocaram o eixo das questões para a oposição entre a natureza e a sociedade e, com isso, possibilitaram o afloramento das reflexõessocráticas, que se concentram sobre o homem em sociedade (e não sobre o mundo natural).

    Uma das questões que eram fundamentais e até hoje continuam sendo, é a questão do movimento. Observando o mundo, nossos sentidos nos mostram que tudo está em constante transformação, e essa constatação fez com que Heráclito de Éfeso sugerisse que tudo é dinâmico. “Tudo se move, tudo escore (panta rhei). “Não se pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai…. Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos”.

    Em contraposição, na escola de Eléia, Parmênides afirmava que o ser é imóvel. Ele não conseguia admitir a idéia de que uma coisa simplesmente deixasse existir, passando do ser para o não-ser. Como toda transformação envolve uma passagem para o não-ser (na medida em que algo se que acaba), Parmênides terminou por sustentar que o movimento é ilusório.

    Por mais que os nossos sentidos nos indiquem que as coisas se movem, a nossa razão mostra que isso não pode ocorrer. Essa teoria soa para nós tão estranha quanto soou àquela época, pois ela contraria frontalmente o senso comum.

    Porém, ela foi defendida com alguns argumentos desconcertantes, especialmente por Zenão de Eléia, o pai da dialética. Ele desenvolveu a técnica de sustentar uma idéia por meio da refutação das refutações, algo que é fundamental no raciocínio jurídico. Se eu não posso comprovar a minha tese diretamente, posso ao menos desacreditar as teses contrárias, mostrando que elas são absurdas. E foi justamente isso que ele tentou fazer: se as teorias de Parmênides eram estranhas, os argumentos utilizados contra ele eram paradoxais.

    Isso ele faz por meio de dois famosos paradoxos, que tentam mostrar o caráter paradoxal das nossas impressões sobre o mundo. Embora o paradoxo da corrida entre Aquiles e a tartaruga seja o mais conhecido, o meu preferido é o paradoxo da flecha, que atualmente poderia ser atualizado como o paradoxo do cinema.

    Quando vocês assistiram agora ao filme, vocês viram imagens em movimento? A nossa visão diz que sim, que as pessoas se moviam na tela. Porém, a nossa razão sabe que isso é falso. Sabemos que o cinema é a projeção contínua de quadros estáticos, e que o movimento na tela é uma ilusão criada pelos nossos modos de perceber as imagens. Sabemos racionalmente que isso é uma ilusão, apesar de vermos o movimento.

    E o que nos leva mais próximo à verdade: a percepção sensitiva ou o conhecimento racional? A tendência normal dos filósofos é de desconfiar dos sentidos tanto quanto dos preconceitos, pois ambos nos ligam ao mundo das sombras. Porém, será que a única conclusão racional é a de que o movimento é impossível porque gera consequências racionalmente inaceitáveis?

    É nesse ponto que ingressa a estratégia platônica fundamental, consistente em dizer que nenhum desses dois pólos avalia adequadamente a questão. Heráclito tem razão em ver que o mundo físico está em constante transformação, mas isso que vemos não é a realidade inteira. Para além do mundo físico, existe o metafísico, composto por elementos que não mudam, e que justamente por isso são a própria estrutura da nossa compreensão.

    Ambos os mundos são igualmente reais, mas se diferenciam na medida em que acessamos o mundo físico pelos sentidos e o mundo metafísico apenas pela razão.

    2. A metafísica platônica ou de como o mundo não se explica por si mesmo
    A grande invenção platônica foi a metafísica. Enquanto os filósofos naturalistas buscavam explicar o mundo a partir de elementos com existência física (água, ar, quatro elementos, átomos etc.), Platão percebeu a insuficiência dessas tentativas. O que é a beleza? Os naturalistas buscariam responder essa pergunta a partir de referências a características físicas: cor, forma, simetria etc. Platão propõe uma resposta completamente diversa, que encontra sua expressão mais sistemática na teoria das idéias.

    Suas reflexões apontam para o fato de que nós buscamos explicações e não apenas descrições do mundo. Não nos basta descrever o que acontece, pois o nosso logos tenta explicar os fatos segundo as suas causas, o que coloca Platão frente ao problema que descrevemos como o trilema de Münchhausen.

    A causalidade, como a validade, exige uma cadeia de relações que seria absurdo apontar para o infinito ou para uma circularidade. Por isso mesmo, Platão reconhece que a única forma racional de encarar o mundo é admitir que existem certos objetos não-causados, certas formas originais que estão na base do nosso pensamento.

    Frente ao trilema, Platão acentua a necessidade de desvendar as coisas em si, as verdades necessárias, os conceitos imutáveis, que podem ser colocados justificadamente na base das nossas cadeias de explicação do mundo. Essas coisas em si não são observáveis no mundo físico, mas sem elas não podemos dar sentido às nossas próprias experiências.

    Creio que o exemplo mais claro desse pensamento é a justiça. A observação dos fenômenos do mundo não nos capacita a distinguir o justo do injusto. Uma completa descrição de todos os fatos do mundo não nos tornaria mais capazes de fazer uma distinção ética. Por isso mesmo, se faz algum sentido falar que é injusto descumprir promessas, ou que é injusto condenar inocentes, então precisa existir uma idéia de justiça que confira sentido a essas percepções.

    Se essa justiça em si não existir, então todos os nossos discursos sobre o justo e o injusto não passam de coisas sem sentido. Portanto, a existência da justiça é uma necessidade racional, embora não seja uma evidência empírica. Assim, Platão sustentou que a nossa racionalidade exigia a admissão de que existe uma justiça em si, da qual todas as coisas justas participam de alguma forma.

    Essa idéia da justiça não pode estar no mundo físico, pois ela não é sensível (que pode ser apreendida pelos nossos sentidos), mas apenas inteligível (só pode ser percebida por meio da razão). Por isso, Platão postulou a existência de objetos que são reais, mas que não fazem parte do nosso mundo sensível – objetos dos quais somente podemos conhecer alguma coisa a partir da nossa razão.

    Assim, Platão admite a existência de dois tipos de objetos igualmente reais: os visíveis e os invisíveis, uns captados pelos sentidos, outros percebidos apenas pela razão. Com isso, ele conseguiu fazer uma aproximação entre teorias de Heráclito e Parmênides. Tudo muda, tudo flui, mas apenas no mundo sensível. No mundo das coisas invisíveis, tudo é eterno, nada muda, tudo permanece.

    Essas coisas invisíveis são as idéias, seres incorpóreos que somente podem ser captados pela nossa capacidade de raciocínio. O que é um quadrado? O que é a relação de anterioridade? De causa e conseqüência? O que é a beleza ou a verdade? No campo do direito, o que são a validade e a justiça?

    Essas são idéias que existem, mas cuja existência não se dá no mundo físico, mas no que Platão chama de lugar além do céu – um lugar que não existe fisicamente, mas que nossa razão nos diz que deve existir. Nesse mundo além do mundo (metafísico, portanto) estão todas as idéias, também chamadas de formas, os arquétipos ideais de tudo o que existe no mundo.

    Essa referência a um mundo das idéias é uma ferramenta muito útil de explicação da realidade. Talvez a mais útil que tenha sido inventada pelos homens. Ela nos permite falar da existência de coisas incorpóreas, cuja permanência dá estabilidade ao nosso pensamento: existe uma verdade, existe uma beleza, existe um bem.

    Além disso, essa teoria nos permite explicar o modo como conhecemos. Como sabemos diferenciar um quadrado de um retângulo? Apenas porque há uma idéia de quadrado, diferente de uma idéia de retângulo. Assim como há uma idéia de árvore, que nos permite identificar as árvores como participantes de um mesmo gênero. Nesse sentido, todo jusnaturalismo é platônico, pois apela para a existência de um direito natural imutável, perceptível pelo logos, que define as normas justas por natureza.

    Toda essa construção é bastante engenhosa. Foi Platão que primeiramente tentou – de forma racional – explicar o mundo físico a partir de um mundo metafísico. Para alguns, essa idéia pode parecer absurda a primeira vista, mas a colocação platônica ainda guarda uma força imensa: ou admitimos a estranha existência das idéias absolutas (de justiça, verdade e validade), ou admitimos que não faz sentido algum tratar da justiça dos homens ou da validade das normas.

    Por mais que seja difícil sustentar uma metafísica que não conta (nem pode contar) com evidências empíricas, é somente a partir dela que podemos falar de direitos universais ou de verdade objetiva. Creio que a intuição platônica é correta e que não podemos escapar da metafísica sem perder junto o significado dos fenômenos. Nossa condição humana é tal que a nossa racionalidade nos condena à metafísica.

    Mas não devemos perder de vista que, para Platão, a metafísica não é a ilusão, mas a luz. O conhecimento metafísico é que nos liberta das sombras da caverna, pois é ele que nos esclarece as estruturas universais do mundo.

    3. Aristotélicos e Platônicos

Platão era um mestre da linguagem literária e da construção de alegorias. Os seus livros tinham uma estrutura narrativa, pois ele escrevia na forma de diálogos, normalmente protagonizados por Sócrates, que foi o seu mestre.

Já os escritos de Aristóteles são grandes compilações das aulas que ele proferiu em sua escola (o Liceu), quando voltou a Atenas, com cerca de 50 anos de idade. Embora essas anotações muitas vezes não formem um discurso linear, elas se tratam da primeira grande tentativa de sistematização do conhecimento.

Mas a grande diferença entre Platão e Aristóteles não estava apenas no estilo da escrita, mas em suas linhas de interesses. Platão era um estudioso da matemática, e sua capacidade de abstração permitiu que ele formulasse os conceitos metafísicos que constituem o seu maior legado. Já Aristóteles era concentrado no mundo empírico, nos dados da experiência. Diversamente de seu mestre Platão, ele foi um grande naturalista, um conhecedor dos fenômenos físicos, com interesses que hoje seriam entendidos como científicos, e não filosóficos. Essa clássica distinção de perspectivas tem seu retrato mais célebre no quadro “A escola de Atenas”, de Rafael.

Tal como Platão, Aristóteles também valoriza o estudo da metafísica, vista como o conhecimento das causas primeiras, dos princípios primeiros e imutáveis, do ser enquanto ser. Porém, as chaves de compreensão utilizada por Aristóteles não apontam para a pressuposição de um arquétipo fora do mundo físico, e sim para um estudo das características intrínsecas do próprio ser. Assim, a metafísica aristotélica assume a forma de uma ontologia, ou seja, de um estudo acerca do ser (ontos em grego).

A principal distinção aristotélica nesse âmbito é a diferença conceitual entre substância (ou essência) e acidente. A substância é aquilo que dá identidade a uma coisa. É da essência do homem, por exemplo, ser racional. Um animal que tivesse todas as características do homem, mas fosse irracional, não seria um homem. Em oposição à essência, temos o acidente. Vocês estão fazendo uma pós-graduação em direito, mas isso é um acidente. Vocês poderiam estudar administração ou artes cênicas, e isso não os tornaria essencialmente diversos.

A segunda diferenciação é entre ato e potência. Todo homem – assim como todo objeto – tem uma série de potencialidades. Qual a diferença entre um cego e um homem de olhos fechados? O primeiro não tem o sentido da visão, enquanto o segundo apenas não o exerce. Uma muda de feijão é feijão em potência – ela tem a possibilidade de gerar feijões, mas o exercício dessa possibilidade depende de algumas condições. Apenas quando gerar a semente ela será feijão em ato.

O bronze é uma estátua em potência – necessitando de outras causas para que se transforme em estátua. O pensador de Rodin é uma estátua em ato. Com isso, Aristóteles promoveu uma reconciliação entre os filósofos naturalistas e o platonismo. Os primeiros acreditavam que o princípio do mundo era a matéria. Platão afirmava que era a forma. Aristóteles une os dois elementos e afirma que é a combinação entre forma e matéria que dá individualidade aos seres.

Mas Aristóteles não remete a forma para um mundo das idéias à parte do mundo físico, pois as coisas do mundo são efetivamente forma e matéria ao mesmo tempo. Assim, enquanto os pensadores de linha platônica tendem a ser racionalistas que privilegiam o estudo abstrato das idéias, os aristotélicos tendem a construir suas abstrações a partir da observação dos fenômenos empíricos.

Esse tipo de distinção entre as sensibilidades permanece sendo uma boa chave de compreensão. Pensemos em um problema jurídico, como a definição do que é o interesse público. Uma aproximação possível seria buscar os diferentes ramos do direito que tratam do interesse público, para construir com base nessas observações particulares um conceito geral. Essa aproximação, que passa da análise de fatos individuais e conclui pela formulação de categorias gerais, é o procedimento indutivo.

Essa é a aproximação tipicamente aristotélica, que um platônico certamente sentiria como limitada. Ocorre que, para buscar o que é interesse público em cada ramo do direito, precisamos partir de um conceito anterior acerca do que seja interesse público. Sem um conceito prévio, não podemos identificar no mundo as suas ocorrências. Assim, um pensador platônico tende a partir de um esclarecimento do que é o interesse público em si, para compreender as decorrências necessárias desse conceito. Com isso, há um primado do pensamento dedutivo, que parte de certas concepções gerais e abstratas, para extrair delas as suas conseqüências particulares.

Assim, existe uma forte possibilidade de que os platônicos acusem os aristotélicos de certas ingenuidades conceituais e de generalizações indevidas, enquanto os aristotélicos tendem a acusar os platônicos de exageros no idealismo e na abstração.