TEMPO BOM por sérgio da costa ramos /florianópolis
Costuma haver uma certa atmosfera de paz, as pessoas recuperam a cordialidade perdida no escaninho de algum burocrata. E há a solenidade ritual da montagem dos presépios. Feitos em casa, com areia fina, papel de embrulho pintado, barba-de-velho, conchas e espelhinhos representando lagos serenos, cercados pela rala vegetação verde de papel crepom.
O espírito do Natal costuma se refletir na cintura dos “fiéis” desses novos tempos. Se, durante a Semana Santa, o jejum é uma forma de penitência, uma espécie de luto pela morte do Redentor, no Natal o seu renascimento é comemorado exatamente por uma celebração antípoda – a comilança.
Imaginem se todo recém-nascido abrisse na família um tal apetite que demandasse a montagem de ceias, opíparos jantares e um festival de proteínas capazes de alimentar a Etiópia por um ano. Ia faltar proteína na terra e peixe no mar, o Menino teria que antecipar o milagre da multiplicação de pães e peixes muito antes de assumir a sua chamada “vida pública”.
Assim será o Natal. A pretexto de celebrar o Menino, daremos de mamar à Menina – isto é, a nossa barriga.
Na base do “Amém, Jesus”, vai todo mundo se forrando, o “renascimento” servindo de pretexto para justificar o pecado da gula – que é o vício de comer e beber com sofreguidão.
Estaremos todos absolvidos. Atire a primeira pedra quem não comeu e bebeu à tripa forra na Noite do Menino Jesus. E que não repetiu a ceia, no dia seguinte. A pretexto de elevar o espírito, ocorre a satisfação da matéria. O próprio Menino já deve ter se acostumado com o apetite dos seus adoradores. E todos os anos perdoa a volúpia dos glutões.
Ao longo da história, e, principalmente, da literatura, a boa mesa sempre esteve presente à boca dos homens de boa vontade e excelente estômago.
A melhor descrição em O Crime do Padre Amaro, de mestre Eça de Queiroz, é a dos talheres, pratos e pratarias na mesa do Abade de Cortegaça, um pio sacerdote, que deveria cultivar as virtudes da abstinência.
Ali se destaca o fornido jantar oferecido pelo abade aos colegas do clero: o caldo de galinha, a famosa Cabidela, uma invenção reivindicada pelo próprio sacerdote. E mais os “bacorinhos” (leitões) ao forno, o porquinho à moda da Bairrada, os vários tipos de bacalhau – o da batata aos murros e à maneira Gomes Sá.
E os vinhos, então? O escritor desfila diante da sede dos leitores os Paços do Cardido, os Covas da Ursa, os Quinta da Bacalhôa, os Duque de Viseu, os “lvarinhos e Ferreirinhas – todos brancos, secos honrados ou tintos de grande linhagem.
Em torno da manjedoura (que se deriva de “manger”), se reúnem os abades e todos nós – os fiéis – para imaginar os pratos que ainda sacrificaremos durante “as festas”.
Até lá comeremos tudo – até mesmo a “Crise”.
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