Ú L T I M O C A P Í T U L O por jorge lescano / são paulo
Ana cruza as mãos sob o queixo. Os cotovelos fincados na estante das partituras servem de tripé ao olhar, distante, e ao mesmo tempo, fixo no vidro da janela. Por cima do bosquezinho de pinheiros que isola a casa, nuvens arroxeadas semelham vastas cenografias em movimento.
As luzes do grande lustre, no centro da biblioteca, são acesas.
No quadrado de vidro reflete-se a cena vivida às costas de Ana. Por um momento ela tem a sensação de não estar ali, ou de ver e ouvir as vozes como se viessem de um romance. Não estivesse o vidro secionado em quatro triângulos por finas ripas de madeira, o brilho lembraria um aparelho de televisão. Sorri ao se imaginar personagem invisível. Para captar toda a cena inclina a cabeça sobre o ombro esquerdo.
As figuras se deslocam com soltura. Cada gesto afirma a familiaridade com o espaço e as outras pessoas. A luz é generosa para a observadora. Sem dificuldades percebe traços de fadiga e irritação nos rostos que não devem expressar emoções. Atendem a um compromisso e pretendem cumpri-lo com ar de negligência ou, quando menos, não demonstrando excessivo interesse no desfecho.
Ana sabe que cada um deles guarda motivos para desconfiar, invejar ou odiar os outros. Mesmo os casais têm receios do parceiro. Cada qual esconde uma culpa em relação ao seu par, ou desejos para cuja realização o outro é um empecilho.
Abelardo e sua irmã Beatriz mostram hostilidade recíproca sem se preocupar com as convenções. Camila, a companheira de Abelardo, finge observar atentamente os títulos dos livros fechados num móvel envidraçado. A atenção, no entanto, permanece presa aos acontecimentos. O cristal revela a cena às suas costas, incluindo a contemplação estática de Ana.
Num ângulo da sala está Drummond, o anacoreta, sóbrio no terno escuro. Talvez por causa da estatura elevada e do rosto de intelectual de início do século, gosta de não ser notado. Mantêm-se de pé, a cabeça calva inclinada, como se observasse as pontas dos seus sapatos. Camila sabe que ele preferiria não estar ali. Na outra extremidade, Fernández, o macedônio. Esta mistura de filósofo socrático e violeiro autodidata, duplica a imagem de Drummond. Indo de um para o outro, vagarosamente e como para consultá-los ou confirmar uma informação, Erikssen, o iconoclasta. Pressentem-se nele paisagens frias e desoladas. Seu aspecto´é de jovem envelhecido prematuramente ou de velho que se recusa a admitir a idade. Difícil acreditar que alguma vez foi criança. Ana não sabe o quê poderá vinculá-los aos demais, sequer tem clara a relação entre si. A presença dos três parece-lhe arbitrária, como se obedecesse ao capricho ou a uma secreta noção de simetria de algum encenador onisciente. Confia em que, após a leitura, ficará conhecendo as razões da convocação deles.
Genoveva deve apropriar-se de um segredo de Heitor. Ibraim espera ansioso que ela o prejudique na ascensão vertiginosa dentro da empresa para pular ao posto que considera seu de direito. Genoveva deseja-lhe sucesso. Desse modo a harmonia do casamento estará a salvo, pois não
duvida do reconhecimento do seu marido, para quem é indiferente se ela acrescenta uma nova traição às muitas que se obrigou a cometer em troca de um lugar na sociedade. Heitor não ignora o perigo e já arquitetou seu plano de defesa, que implica vários dos presentes.
Jéssica tem uma dívida e não poderá saldá-la no prazo estipulado. Não é improvável esta seja a última vez que use o colar de pérolas;para salvá-lo, tem a alternativa de ceder aos insistentes requerimentos de Beatriz, a qual não ignora a chantagem de Abelardo. Entre Jéssica e Lena encontra-se Kelly, a bela taverneira vinda do norte. Sua cutis morena e o cabelo negro contrastam com a palidez doentio das outras duas. Kelly sorri a alguém invisível para Camila. Talvez o sorriso apenas seja de satisfação por estar entre pessoas que sua origem social, até bem pouco tempo, lhe fazia ver como personagens de ficção. Lena leva o cigarro aos lábios e a luz rebrilha, rubra, na pedra do anel.
Múcio, Nemo, Otacílio; é quase impossível imaginar antagonismo entre eles, são como partes de um mesmo ser. Nemo, retratista da sociedade, é notório conspirador. Acredita-se que mais de uma associação, incluindo casamentos, teve fim prematura graças à sua arte oratória, capaz de destruir sólidas reputações. Múcio é seu discípulo ou valete, segundo alguns, sua eminência parda, na versão de outros. Em todo caso, espécie de sombra do pintor. Otacílio vive à procura de informações que o localizem nesse universo de interesses e forças opostas, no qual ingressou em virtude do seu nascimento. Alguma vez cogitou tornar-se artista. Talvez não seja de todo gratuito o comentário de que seu senso estético se realiza pagando as dívidas de Nemo. O futuro deste e do seu duplo poderá estar comprometido se Otacílio não agir com tato. Isto explicaria o comparecimento do trio à reunião e as mesuras de Nemo, que não pára de circular pela sala com sério risco de colidir com Erikssen.
O velho Administrador da família deposita à sua frente, na mesa central, um cofrezinho de metal dourado. Ana vê como coloca, aos lados das mãos, um envelope de papel marrom e um pacote retangular, não maior que um livro em brochura. Um romance, pensa Camila. Um jogo de xadrez, acredita Ana.
Todos conhecemos a desmedida ambição destas pessoas, e Ana não é exceção – escreveu há tempos o Autor convidado. – Porém não somos unânimes quanto ao valor que atribuem à hierarquia social; são ambíguas como as manchas de nanquim de uma pintura chinesa. Isto faz com que as tratemos com deferência ou respeito. Podem ser perigosas ou aliadas inestimáveis.
Ana e o Autor convidado se aproximam do Administrador, que está ajustando os óculos. Os quatro espelhos triangulares do teto, dispostos de maneira a formar a cúpula interna de uma pirâmide, na qual o lustre cria iridescências de luxo e prazer, duplicam a localização de todos os presentes em torno da mesa.
Ao empunhar o estilete e o envelope, os dedos do velho Administrador tremem. Ana lhe adivinha a emoção. Também a sorte dele depende da leitura que se dispõe a iniciar, deduz Camila.
O grande lustre se apaga. Ouve-se um tiro e o som de um corpo que cai.
No laudo policial, a vítima está corretamente vestida e segura nas mãos um livro aberto no último capítulo.
A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER por joão henrique vieira / teresina
abriu a porta. entrou. pôs sobre a mesa o livro que trazia. ficou pensando. gozar de olho aberto ou fechado?
– oi meu amor
– olá minha querida
depois de uma conversa sobre como foi o dia. começa a conversa que vai desaguar no amor. na hora do gozo. a duvida. gozar de olho aberto ou fechado? no meio do sexo oral, sentindo todo o delicioso gosto do cheiro, se perguntava: olho aberto ou fechado. deslizava os dedos na barriga, sentia os arrepios. olho aberto? olho fechado? roçou o rosto no púbis, na barriga, entre os seios, mordeu o queixo, lambeu os lábios. olhou nos olhos de seu amor. fechar os olhos, abrir os olhos. um riso cínico no instante em que seu pau deslizava nas curvas a procura da buceta.
o deslize a dentro.
beijava. gemia. respirava. roçava. esfregava-se. ora de olhos abertos, ora de olhos fechados.
vinham os sussurros que antecedem o gozo. o frenesi. o não saber e ser guiado pelo instinto. aquilo que guia o homem quando ele pára de tentar ser racional.
olhos abertos. olhos fechados.
no instante do gozo fechou os olhos de desespero, sentido desmanchar-se dentro da fêmea. do amor. do sexo. do gozo.
dali a instantes estaria deitado olhando o teto. suado. deslizando os dedos nos mamilos, brincando de círculos.
– meu bem, o Milan Kundera está me enlouquecendo
– meu amor, você é doido, mas eu te amo.
depois que a amada caiu no sono. ele levantou e foi ao banheiro. lavou o rosto e se olhou no espelho. disse à própria imagem:
– tu vai ver Kundera, amanhã eu gozo de olho aberto.
voltou a cama. viu as curvas de um belo corpo. deitou-se junto. quase dentro. dormiu grilado. gozar de olho aberto ou fechado?
sobre a mesa repousava A insustentável leveza do ser
OTTO NUL e sua poesia / palma sola.sc
A LADEIRA
Quando desço a ladeira
Quando a subo
São dois momentos
Que parecem iguais;
É que tanto na descida
Quanto na subida
Há um componente
De significativa beleza;
Há umas árvores
E pássaros na ladeira;
Dir-se-á que isso
Há em toda parte;
Na ladeira, porém,
É diferente – árvores
E pássaros têm
O feitiço da ladeira.
-.-
PREMONIÇÃO
Apanha no ar
Ainda fresca
A idéia luminosa
A sombra indefinida
O resto que sobrou
Ao dia que se foi
A alegria que findou
A tristeza que ficou
A palavra consoladora
Com que se empolgou
A paixão que desvaneceu
Na tarde que esmoreceu
Uma leve premonição
Que tolda o coração
-.-
ERA UMA RUA
Era uma rua
Não tinha nada
Minha amada
Nela morava
Era uma rua
Que dava medo
Que assombrava
Como um degredo
Era uma rua
De pouca luz
Sem quase gente
Com uma cruz
Era uma rua
Sem muita paisagem
Tão sossegada
Parecendo miragem
Era uma rua
Onde te conheci
Em certo tempo
Ali nasci
Era uma rua
De muita flor
Nela se vivia
Com paz e amor
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