Arquivos Diários: 14 fevereiro, 2008

COXA de MÃE PROTEGE FILHO – conto de jb vidal

  baseado em fato real e os personagens existem e estão vivos.

o dia não lembro, ou melhor, a noite, mas o vento nordeste soprava forte, aliás, como sempre o faz  naquela época do ano, a época fora agosto de 1996.
                  acompanhava o nordeste uma chuva fina, daquelas que insistem em molhar os ossos. a região que recebia esta visita da natureza, era a Pinheira no município de Palhoça,  Sta. Catarina.
                  desde o início, a noite insistia em anunciar algo mais. tornava-se a cada instante mais encarrancada, ameaçadora, tipo mau-presságio.

                                                                     -.-
                 
                   sol, calor, chuva, frio, noites mal ou nem dormidas, o homem, determinado a chegar àquela casa no alto do morro da Pinheira, balbuciava pequenas palavras com grandes exclamações ao caminhar no acostamento da BR-101; pensava “ que porra! ninguém dá carona para alguém com mochila nas costas! o Cazuza tinha razão, a burguesia fede! filhos da puta!” mas, com o olhar fixo nos pés, como a temer que os perdesse, o homem seguia, e seguiu por uma semana, à pé, caronas de caminhoneiros, poucas, à pé. 
                   avançava. pés inchados, trôpego, o suor arregaçando os poros dava-lhe a sensação de que se desmanchava. o forte cheiro, de trilhões e trilhões de bactérias mortas, apodrecendo nos sovacos, na bunda, no saco, alcançava os pássaros em pleno vôo.
                  “comer! ah! comer! quando verei comida? deus existe? se existe para quê criou esta merda? se não existe, porque tanta gente mentindo que sim? as religiões são  mentiras organizadas? para que fim? ah! poder e dinheiro! Igreja e Estado! que dupla! sempre andaram juntos! objetivos comuns, dinheiro e domínio! esperança é mercadoria com prazo vencido! puta que  pariu! o quê que eu tenho com isso?  preciso é chegar antes que  morra de fome; eh! eh, eh, eh e se eu morresse e encontrasse com deus? ficaria com aquela cara de bunda olhando prá ele? sei lá!… mas, ele me perdoaria, afinal, é o que manda a gente fazer!” pensara, olhando a imensidão da estrada que desaparecia na garganta do horizonte.
                  nos restaurantes e bares encontrados no caminho – nada – quando o viam todos lhe davam as costas, os seguranças, pelo braço, o jogavam de volta à rua, os homens seguravam firmemente seus pertences de mão – chave da BMW, celular – as mulheres apertavam seus filhotes contra suas coxas.
                  que tipo de ameaça inspirava aquele homem com o olhar vencido pelos sofrimentos? vergado por um metro e oitenta de fome e solidão? quê poderia fazer com as chaves da BMW? dar uma voltinha no Batel? e o celular? ligar para quem? ah, sim, para Deus, poderia perguntar se no céu tem biguemeque!? jamais revelariam.
  

                                                                   -.-                  

                  da casa no alto da Pinheira, um outro homem, mais baixo mais forte, olhava o infinito por entre as nuvens que se tornavam ameaçadoras.
                  sempre foi dono de um olhar investigativo, desconfiado, atento.
                  no final daquela tarde balançava-se na rede da varanda. os olhos a buscar algo que não saberia identificar. lançou, por três vezes, o olhar sobre o mar esforçando-se para ouvi-lo além de vê-lo, não conseguiu, virando o rosto para o lado apanhou, de uma só vez, todo o vale, ficou nesta posição até olhar, de chofre, para o interior da casa. os pêlos do corpo levantaram-se.
                  teso, entrou e procurou alguém ou alguma coisa.
                  estava só a mais de um mês, mesmo assim, não poderia estar enganado, a sensação de presença era fortíssima. Fuzico, o cãozinho sem origem, que se autoproclamara guardião da área, passou a rosnar e latir em todas as direções; a respiração tornou-se ofegante, a musculatura contraiu-se e os pés mal tocavam o chão; procurou em todas  dependências, atrás das portas, embaixo da cama, saiu do interior e foi ao socovão –  sempre são surpreendentes – vasculhou tudo, nada.

                  voltou à rede, agora todo molhado pela chuva fina que começara a cair. estremeceu-se “ será de frio ou de medo”? perguntou-se em voz alta; lembrou da garrafa de pinga amarelinha que havia trazido de Morretes  e andou lentamente até a cozinha, notou que não havia mais que um gole. sorveu-o.
                  “ é preciso coragem para enfrentar o medo” gaguejou o pensamento, “ não há ninguém aqui, que merda é esta? o que está acontecendo comigo? será o fato de estar tanto tempo sozinho? não, um mês é muito pouco para alterar os sentidos; vou esquentar a janta e tratar de dormir, quero começar aquele trabalho bem cedinho”
                  foi o que fez, jantou e deu de comer a Fuzico. trancou as portas e janelas com cuidados além do costume. no banheiro, olhou-se no pequeno espelho mas seu rosto não cabia nele, afastou-se um pouco – “ agora sim” –  estava crispado, tenso, pálido, o que fazia a barba aparecer ainda mais. fitou-se por alguns segundos  “o que está havendo? que merda é esta?”com estes pensamentos encaminhou-se para a cama.

                                                                    -.-
                                                                  
                  noite alta. o homem, que saíra de Curitiba, há uma semana, subia o morro da Pinheira.
                  vento, chuva, raios. o corpo em pedaços.
                  a alma a ponto de abandonar aquilo.
                  roupa encharcada, mochila de arrasto, descrente de tudo, faminto, pés sangrando, enlameado, auto-estima perdida não sabe quando, fedendo no limite, prestes a crer em Deus como última saída.
                  buscava, durante os relâmpagos, avistar a casa; em uma fração de segundo, viu-a, uma sensação entre o prazer e a dor, tomou conta do seu frágil corpo ou do que dele restava.
                  a casa, às escuras. “ele está dormindo! ou será que saiu? foda-se, cheguei!” bateu na porta com as mãos, cabeça, joelho, nada! três, quatro, seis vezes, nada.                                                                                                                                                                             decidiu atirar-se contra a porta ao mesmo tempo em que, aos prantos , gritava  “ abre porra! porta! porra! porta! porta!” deixou-se escorregar até o chão.
                                                                      -.-                                                                 
                 

                    mesmo depois de estar deitado, o homem tremia, rolou-se na cama por muito tempo; os sons produzidos pelo vento e a chuva, já não eram aqueles ruídos que induzem ao descanso e ao prazer, naquela noite, eram acordes de marcha-fúnebre. olhos fixos no teto, adormeceu.
                 
                    o mundo parecia desabar, batidas na porta, gritos e batidas.  a insistência fez com que acordasse, ao mesmo tempo em que dava um pulo e se colocava em pé, transpirando aos cântaros indagou-se “ quem será? a voz é conhecida, será aquele cara com quem briguei ontem no Bar do Gaúcho? o que ele quer? o cara é louco, pode querer me matar! mas não foi pra tanto; se o prenúncio da morte é isto é uma merda! porra! reaja cara! és um homem ou um rato? puta que  pariu, sou um bosta mesmo! lembrar-me de ratos numa hora destas!”
                  jamais soube se era suor ou urina o que lhe escorria pelas pernas.
                 
                  respirou fundo, deu um urro, em razão do ar quente que aspirara lhe queimando os pulmões. a asma tem lá suas razões.
                 
                   pensou no pai, na mãe, nos filhos, nas mulheres que amou, nos amigos, arrependeu-se dos vinhos que não tomara, lembrou-se de uma garrafa que deixara pela metade no Bife Sujo – “vou acabar logo com isto!” – avançou decidido em direção à cozinha, abrindo a gaveta de talheres encontrou a melhor arma que havia na casa, um garfo com dois dentes de mexer em frituras. dirigiu-se para a porta. a meio caminho parou, como para montar uma tática de ataque “ ou seria melhor de defesa?” ainda voltou o olhar para Fuzico, que entrincheirado entre o fogão e a geladeira emitia uivos esganiçados.

                    engoliu nada e abriu.
          
                  a chuva fina, do inicio da noite, transformara-se em tempestade, não tinha noção de quanto tempo se passara desde a decisão de dormir. contra a luz dos relâmpagos, agora muitos, viu aquela figura alta, esquelética, assustadora que,  em pé, gritava:

– Kambé filho da puta, abre a porta Kambé!
                                          
                  Cláudio Kambé – que ali estava com o objetivo de recolher-se afim de operar seu ofício de artista plástico, usufruindo da paisagem e tranqüilidade do lugar,  lembrou-se dos filmes de vampiro e dando um salto para trás formou uma cruz com o indicador direito e o garfo sentenciando:
– vade retro Satanás! e soluçando entre lágrimas dizia “vade retro, vade retro, vade…” – baixa esse garfo Kambé que vou entrar! já com um pé dentro. Kambé recuando lentamente com o corpo todo a tremer pergunta:
– Batista é você? não, não é  possível que seja! você deve ter morrido,  isto é a alma penada!
– vai a merda Kambé, deixa eu sentar que estou quase morto, tu não sabes o que passei prá chegar até aqui.
– claro entra, entra, senta aí, não não aí não, senta naquela cadeira de praia você é puro barro, e que fedor! meu Deus! não é possível! isto só acontece comigo! fala Batista! começa a dizer o que veio fazer aqui seu porra! fala! porra! – sentando no sofá
– é o seguinte, meu amigo, mas antes de tudo, tu não tem algum rango por aí? tô mortinho”
– claro! mas vai falando enquanto eu preparo. Cláudio Kambé começa a mexer em pratos e panelas; “a fera já está domada” pensou Batista de Pilar com um leve sorriso no que parecia ser uma boca. 
– então…, é o seguinte, encontrei outro dia com o Rio Apa lá no Bife, ele tratava de um livro com aquele pessoal dele, e falei que estava querendo parar de beber, parar mesmo, mas que em Curitiba eu não conseguiria, tinha que me afastar de lá, sabe como é não é Kambé!? a mesma rotina, não deixa…, aí ele disse que se fosse essa a minha intenção realmente, que eu poderia vir para cá, aí pensei, pensei, e vim, é isso.
– é isso! é isso!? não é? seu demônio dos infernos! e eu? você não sabia que eu estava aqui? trabalhando! que precisava estar só!? concentrar-me, deixar fluir a inspiração, criar!
– justamente! pensei que seria bom para você uma companhia como eu, você pintando   e eu fazendo poesia…vai ser bom!
– vai ser bom porra nenhuma! maldição! rugiu Kambé servindo a comida.
– eu preciso parar de beber mermão, eu tinha que sair de lá, pelo menos por uns tempos.
– e eu que se fôda não é assim?  nisto não pensou! quer curar o teu alcoolismo me atirando na miséria? se eu não faço meus quadros eu não ganho cara! a tua presença só atrapalha! escuta aqui Batista! você descansa e amanhã se manda tá entendido?  estamos conversados!
                   as lágrimas do Batista salgavam mais a gororoba que comia de colher      
cheia, mastigando  com a boca aberta derrubava excessos de comida no colo, ainda encontrou forças para dizer:

– vai ser bom! e tu não vais ficar com a consciência pesada por não permitir que eu me trate.
– seu filho duma puta! quem é você para falar de consciência!? qual é a tua com relação ao meu trabalho? na verdade… não estás nem aí para o que possa acontecer comigo, se vou produzir ou não, o que te interessa é fazer o que queres, como queres, no momento que queres, egoísticamente, os outros, para você, são inimigos, responsáveis pela tua miséria e loucura! eu não tenho nada a ver com isso cara, é problema teu! essa é a tua opção de vida, ou o que de melhor ela te deu! assuma! ou te repense e vá a merda!
    
        fitou durante alguns segundos aquele homem curvado sobre o prato vazio,
pois  não havia mais o que oferecer, sentiu náuseas e foi para o quarto de onde gritou:

– toma banho, durma no sofá e amanhã te manda!” 
                  
  “ quê dia! quê dia! agora estou entendendo, estou entendendo toda aquela      
 aflição do fim da tarde!” os pensamentos em desordem se atropelavam “ filho da puta! consciência! que atrevido! não tenho nada a ver com isso! e o meu trabalho? aquela aflição já era a energia dessa carga pesada chegando! consciência! como se ele tivesse uma!” apagou a luz e adormeceu.
                  
                   porque dormia, não ouviu o ronco das tripas, nem viu um brilho estranho nos olhos daquela figura, em pé, olhando para a cama. ah se tivesse visto!
                  
                                                                    
                  passava  pouco das quatorze horas, quando Claudio Kambé terminou de arrumar suas malas. a chuva parara desde cedo. antes de sair cutucou o braço do Batista duas vezes, que roncava como se fosse uma moto-serra,  e fulminou:
estou indo Batista! espero que te  recuperes bem! abriu a porta e iniciou a penosa decida do morro ensaboado pela chuva forte.          
                  após percorrer algo mais que cinqüenta metros ouviu:

 – Kambé! Kambéééé!

– é lá embaixo, à direita, e o dono é conhecido por Gaúcho!
            um leve sorriso amenizou a descida de Cláudio Kambé.

A AJUDA de SÃO JORGE ao PADRE – conto de tonicato miranda

O homem se acercou da cabine, meio tímido, se ajoelhou, arrumou o paletó e disse:

__ Padre, eu pequei.

Dentro da gaiola de madeira de mogno escuro trabalhado, o padre afirmou:

__ Certo.

__ Qual certo o quê, está tudo errado! – exclamou o homem, irritado.

__ Calma, homem!

__ O senhor me pede calma porque não sabe o que fiz.

__ É isto mesmo, estou aqui para saber o que o senhor fez e lhe absolver deste crime dos diabos.

__ E agora esta, quem disse que eu cometi um crime. E que conversa é esta de chamar o nome do proscrito?

__ Desculpe-me, esta é apenas uma forma de expressão, meu senhor.

__ … e eu não sou senhor coisa nenhuma, Senhor é Deus, e o padre deve saber muito bem isto.

__ É claro, meu filho, Deus é o Senhor de todos nós.

__ É isto mesmo, Deus e somente ele pode aliviar minha dor, me conceder o perdão.

__ Deixa comigo, meu filho. Eu vou…

__ Pera lá, não sou seu filho, nem lhe dei esta intimidade, padre.

__ Meu filho é outra forma de expressão.

__ Está certo. Vamos começar tudo novamente.

__ Está bem, estou ouvindo, siga adiante…

__ Como é? Então o senhor sabe?

__ Sabe o quê? E olha que quem está agora me chamando de senhor é o amigo.

__ Amigo?? Estou perguntando porque o padre pediu para seguir adiante e quem segue adiante é camioneiro, exatamente o que eu sou. Então como o padre sabia?

__ Eu não sabia de nada, siga adiante é outra forma de expressão. Vamos lá, confesse logo seu pecado, homem. – adiantou o padre já um tanto irritado
__ Padre eu pequei porque atropelei um homem e não prestei socorro. Com a velocidade que vinha e naquela curva da estrada, nem vi direito.

__ Isto é grave, meu filho. Mas ele morreu?

__ Não sei dizer. Uns amigos que encontrei depois num posto de gasolina, uns 50 km adiante, me disseram que sim. O mais estranho é que dizem que o homem morreu com o braço estendido fazendo aquele gesto de recolhimento de dois dedos e o dedo central esticado.

__ Vou pedir para você rezar dez padres nossos e cinco atos de contrição. E mais: terá de acender umas doze velas a Nossa Senhora dos Desvalidos para que possa purificar a sua alma, meu filho.

__ Mas padre, já estou ficando irritado, e quando acontece isto, não respondo por mim. Os padres nossos e as velas estou de acordo, mas os atos de contr…

__ Esta bom, meu filho, não precisa ficar irritado. Eu retiro os atos de contrição. Se quiser rezo os padres nossos por você. Espere, deixe que lhe diga, vou interceder por você junto a São Jorge – que é o senhor dos motoristas. Vá em paz, meu filho, acenda as velas.    – E o padre pensou com seus botões “Meu São Jorge, você que tem capa e lança, galopa ligeiro sobre um cavalo branco, proteja-me deste dragão. Prometo rezar cem Ave Marias até o entardecer”.

 – esta coisa que o senhor disse aí. Não sei fazer isto não. Pede outra coisa ou então entro dentro dessa cabine e nós vamos dar um jeito no pagamento do pecado. Não agüento mais esta culpa estourando igual a foguetório dentro do meu peito.

__ Vá com Deus, meu filho. – E o padre acrescentou ao seu pedido para São Jorge “Proteja-me dos camioneiros mal humorados”. Lembre-se que todo dia tenho de atravessar esta estrada que passa aqui na frente da paróquia para ir lá para o convento. Saudações aos outros santos de sua predileção. Até qualquer necessidade!

__ Está certo assim, seu padre. Até logo, Obrigado.

CHAVES PARTIDAS por helena sut

Como uma percepção tardia e inquietante, o pensamento é dominado pela imagem de chaves quebradas. A mão anônima me entrega os pedaços. Com os olhos trêmulos, observo o brilho do metal, dividida entre a perplexidade e a angústia. A lembrança do fragmento do sonho não revela a continuidade, apenas me devolve a chave partida e domina o presente. Restituíram-me as chaves, mas já não encontro os cadeados ou as fechaduras. Sou guardiã de uma ruptura definitiva que não poderá ser descerrada com a lembrança. Sou refém de uma percepção onírica que abre algumas fechaduras na tentativa de se encontrar como o todo.

Perco-me numa primeira interpretação. As chaves partidas poderiam ser o tempo desvirginado, a imortalidade ou a morte; a impossibilidade de dar corda no relógio, a negação ao domínio do tempo. Mas por quê as chaves retornam como reflexões recortadas, como uma interrupção metafórica para as amarras do esquecimento? Por quê quebrar as peças se não há engrenagens badalando a consciência?

As interrogações acompanham as fluentes aflições. Chaves? A memória é rastreada, alguma chave perdida, alguma chave reencontrada… O tempo percorre o leito em busca das fontes primárias e do destino liberto dos cursos: um território clandestino que fecha a estratégia contra as próprias fraquezas, um horizonte ostensivo que dispersa o olhar com o brilho do fragmentado artefato de metal. Sou a chave partida ou a fechadura que não se encontra? Sou o recorte do sonho ou a narrativa não concluída denunciada num ato falho?

Tantas chaves sem encaixe são entesouradas na gaveta da cabeceira. Troquei alguns segredos ao fechar portas, desisti de destrancar algumas confissões…

Novos questionamentos montam e desmontam realidades como princípios e desfechos poéticos. As chaves de um poema que não escrevi, as chaves de uma leitura que abandonei, as chaves de uma decisão que não assumi, as chaves de um olhar que não retribuí, as chaves partidas que não me deixam esquecer…

Com chaves falsas tento encarcerar o que não domino, guardar a sete chaves os segredos denunciados nos fragmentos e completar as reticências olvidadas com um novo parágrafo a ser reconstruído em novos portais. Talvez amanhã a realidade desperte para ações destrancadas e jogue ao vento a vida sem obstáculos.

O VERDADEIRO PROBLEMA de HILLARY com MARTIN LUTHER KING por barbara ehrenreich.

Os direitos civis dos negros não foram conquistados por homens (ou mulheres) trancados em escritórios. Foram ganhos por um movimento de massas de milhões de pessoas que marcharam, ficaram sentadas, suportaram prisão, tiros e surras pelo direito ao voto e a transitar livremente.

Barbara Ehrenreich*

No começo pensei que era outra trapaça branca com a cultura negra e a criatividade: os Rolling Stones apropriando-se do Bo Diddley beat, Bo Derek praticando esporte com o cabelo cheio de trancinhas e agora Hillary, dando crédito a Lyndon Baines Johnson para votar a lei de direitos de 1965. Se essa honra já foi concedida a um branco, LBJ era uma curiosa opção desde que passou toda a convenção democrata de 1964 manobrando para evitar que o Partido Democrata pela Liberdade do Mississippi conseguisse ocupar sequer uma cadeira dos dixiecrats. Segundo os critérios de Clinton, em 1972 deveríamos ter confiado em que Richard Nixon ia legalizar o aborto.

Mas o comentário de Clinton sobre LBJ revela algo ainda mais preocupante do que a surdez racial: uma teoria da mudança social que é tão elitista como incorreta. Os direitos civis dos negros não foram conquistados por homens (ou mulheres) trancados em escritórios. Foram ganhos por um movimento de massas de milhões de pessoas que marcharam, ficaram sentadas, suportaram prisão, tiros e surras pelo direito ao voto e a transitar livremente. Alguns eram estudantes e pastores, muitos eram agricultores pobres e trabalhadores urbanos. Ninguém tentou ainda fazer uma lista com seus nomes. Também é problemático, evidentemente, que se reduza o movimento pelos direitos civis a dois nomes: Martin Luther King Jr. e Rosa Parks. O que aconteceu com Fannie Lou Hammer, que chefiou a delegação do Partido Democrata pela Liberdade do Mississippi na convenção de 1964? E com Ella Baker, Fred Hampton, Stokely Carmichael e centenas de outros líderes?

A teoria da história das grandes personalidades pode simplificar a escrita de livros didáticos, mas não lança luz sobre como a mudança realmente ocorre. Os direitos das mulheres, por exemplo, não foram obtidos por Betty Friedan e Gloria Steinem enquanto elas tomavam chá. Tal como Steinem seria a primeira em reconhecer, o movimento feminista dos anos setenta fincou suas raízes em volta de mesas de cozinha e de cafés, impulsionado por centenas de milhares de mulheres anônimas e fartas de serem chamadas de meu bem no trabalho e de serem excluídas dos trabalhos “de homens”. As estrelas da mídia, como Friedan e Steinem fizeram um brilhante trabalho de proselitismo, mas precisaram de um exército de heroínas anônimas para encenar os protestos, organizar conferências, repartir pasquins e difundir a mensagem para a vizinhança e os colegas de trabalho.

Mudança, este ano, é um grito de guerra democrata, mas se eles não sabem como ocorre a mudança, não estão preparados para promovê-la por si mesmos. Um caso ilustrativo é o plano de “reforma sanitária” de Clinton, de 1993. Ela não fez nenhuma viagem pelo país para ouvir o que as pessoas tinham a dizer a esse respeito, nem teve reuniões televisionadas apresentando comoventes testemunhos locais. Em vez disso, juntou durante meses uma tropa de especialistas e palacianos em reuniões a portas fechadas, algumas rodeadas de tanto segredo que até os próprios participantes foram proibidos de usarem lápis ou caneta. Segundo David Corn, de The Nation, quando Clinton foi informada de que 70% dos americanos pesquisados eram favoráveis a um sistema de pagamento individual, respondeu com sarcasmo: “agora me diga alguma coisa interessante”.

Poderia ter feito as coisas de maneira diferente, de um modo que não deixasse os 47 milhões de americanos sem cobertura sanitária que existem atualmente. Poderia ter começado percebendo que não ocorrerá nenhuma mudança real sem a mobilização das pessoas comuns que querem a mudança. Em vez de seqüestrar a si mesma com economistas e consultores de negócios, poderia ter se reunido com organizações de enfermagem, grupos de médicos, sindicatos de trabalhadores sanitários e advogados de pacientes. E, depois, poderia ter ido até a população e dizer: estou trabalhando por uma mudança séria na forma de fazer as coisas e será necessário vencer duras resistências, ou seja que vou precisar de todas as formas possíveis de apoio.

Mas ela fez do seu jeito e acabou com um plano de 1300 páginas do qual, de um lado e de outro, ninguém gosta e que ninguém sequer compreende, o que demonstra que a mudança histórica não é feita pela garota mais elegante, mesmo que ela divida a cama com o presidente. Da mesma maneira, ignorou o movimento contra a guerra desta década e perdeu, com isso, um incalculável número de votantes democratas, feministas incluídas.

Eu gostaria de pensar que Obama, com sua experiência na organização da sua comunidade e com sua insistência em estimular as pessoas, entende tudo isto um pouco melhor. Mas, seja qual for o presidente eleito este ano, não haverá nenhuma mudança real de cunho progressista sem um movimento social de massas para trazê-la, seja pedindo contas ao presidente ou à presidenta, seja impondo a ele, ou ela, uma verdadeira prova de fogo. E um movimento social não começa na cúpula. Começa exatamente agora, com vocês.
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*Barbara Ehrenreich é uma jornalista norte-americana de grande reputação como pesquisadora das classes sociais nos EUA. Esta atividade de pesquisa tem ocupado toda sua vida desde que se infiltrou, usando um disfarce de si mesma, na classe operária que recebe salários de miséria, em seu já clássico Nickel and Dimed [Por quatro centavos], um relatório exaustivo das enormes dificuldades pelas que passam muitos norte-americanos que precisam trabalhar duramente para sair adiante.

Depois, anos mais tarde, repetiu essa operação colocando o foco na classe média, mas desta vez, para sua surpresa, não acabou trabalhando de incógnito entre trabalhadores, senão que, basicamente, teve que tratar com desempregados mergulhados no desespero de terem sido expulsos do mundo empresarial. O resultado desta recente incursão é outro livro, mais recente, Bait and Switch. The (Futile) Pursuit of the American Dream. [Gato por lebre. A (fútil) busca do sonho americano]. Atualmente dedica muito tempo a viajar por todo o país com o propósito de contar suas experiências para diversos públicos que compartilham suas mesmas vivências. Escreve freqüentemente em seu blog e está muito envolvida em montar uma nova organização dedicada a articular os desempregados de classe média.

Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores

carta maior.