Arquivos de Tag: literatura

O POETA MANOEL de ANDRADE concede entrevista para a Rádio UNESP FM

oscar dambrosio entrevista manoel de andrade para  o programa PERFIL LITERÁRIO da rádio UNESP FM  (UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA).

ESCUTE AQUI.


F E I T O U M C Ã O – por jorge lescano / são paulo

Em 30.5.99, conceituado jornal desta polis publicou 18 versões do primeiro período de A Metamorfose, de Franz Kafka. Os autores atendiam assim ao convite do órgão jornalístico. Jota L., por não ser escritor cotado na praça, ficou fora do páreo. Nos autos do espólio, no entanto, foi achado este texto de sua autoria.

“Essa é boa! – exclamou saltando da cama e apressando-se a enfiar as calças -. Que terá acontecido comigo?” – pensou a seguir. Não era um sonho, de fato, suas pernas, lamentavelmente finas, agitavam-se, impotentes, diante de seus olhos. “Que tal se eu dormisse mais um pouco e esquecesse toda esta estupidez?” – continuou a meditar sem se mexer da cama. Aquilo era absolutamente impossível, pois estava acostumado a dormir do lado direito e a situação em que se encontrava, de costas dentro da carapaça abaulada, impedia-o de virar-se para tal posição.

Do seu travesseiro volveu o olhar para a janela. Além da névoa e da chuva nas vidraças, podia observar à senhora idosa do outro lado da rua, que parecia olhá-lo com uma curiosidade fora do comum. Estava sentada muito ereta, com um pequeno chapéu de pele e um boá também de pele; exibia um pesado regalo, no qual o braço estava enfiado até o cotovelo.

Alguém devia tê-lo caluniado, pois em resposta ao seu toque de campainha ao lado da cabeceira, ouviu uma batida e em seguida entrou um homem que nunca vira na casa. Era magro, conquanto bem constituído, e usava um terno preto bem cortado, provido de um cinto e de toda espécie de pregas, bolsos, fivelas e botões, que dava à roupa uma aparência muito prática, embora não se pudesse precisar a verdadeira finalidade daquilo tudo.

“Quem é o senhor?” – soergueu a cabeça no leito. O homem se dirigiu à porta abrindo-a ligeiramente, como para prestar contas a alguém que evidentemente estava por trás dela. “Ele quer saber quem é o senhor?” Como resposta, ouviu-se no aposento contíguo uma gargalhada que soou como se viesse de várias pessoas. Embora o desconhecido não pudesse saber com aquela risada coisa alguma que já não soubesse, disse, como quem joga um livro sobre a mesa: “Não pode sair, está preso!” “É o que parece, mas por quê?” – e em seguida lembrou-se de suas pernas lamentavelmente finas agitando-se impotentes diante de seus olhos.

Tornou a avistar a senhora idosa que, com sua curiosidade senil, mudara de janela, postando-se na que ficava bem em frente para poder observar melhor.

Um dos senhores acabava de agarrá-lo pela garganta, o outro lhe enterrou a faca no coração e a revolveu duas vezes. Com os olhos mortiços, ele ainda viu as duas mulheres na janela escancarada apesar do frio, cada qual com o braço na cintura da outra, rosto contra rosto, vendo o desenlace, e bruscamente a mãe se inclinou para fora o mais possível, atirando os braços para frente enquanto a irmã afundava o rosto nas mãos.

A revista posterior do quarto denunciou a presença do livro sobre a escrivaninha; na página de rosto, liam-se as seguintes palavras:

“Quando o ungeheueres Ungeziefer acordou, ele ainda estava ali. Este, vendo que aquele movimentava seu ventre dividido em nítidas ondulações horizontais procurando a posição lateral, escapuliu-se, deixando uma pequena abertura pela qual se esgueirou para dentro o homem que ele nunca vira mais gordo.

“Vejamos – disse este para seus botões, fivelas, bolsos, pregas e cinto – Essa é boa!, onde está ele?”.

MIRANDO O RALO por lucas paolo / são paulo

Contarei aqui uma anedota que – tenho motivos para suspeitar – diz muito sobre o filme “A Erva do Rato” de Julio Bressane, sem necessariamente dizer muito sobre ele.

Estava eu no banheiro do Cinesesc tendo meu costumeiro diálogo pré-filme com o mictório (ou, porque não?, “A Fonte” de Duchamp), quando ouço, próximo ao lavabo, sinais daquelas típicas conversinhas anteriores ao filme. “Estou louco para rever o filme. Aparece a “periquita” da Alessandra Negrini inteirinha, linda.” – diz um homem que, de soslaio, só reparo ter cabelos grisalhos. [transcrevo sua fala de memória e sem preocupações maneiristas.] O jovem, que enxaguava tranquila e despreocupadamente as mãos, fica com aquele jeito-sem-jeito de quando não sabemos o que dizer, e dá a conscienciosa e marota risadinha.

O meu primeiro impacto é de assombro e curiosidade: o que leva as pessoas a (re)verem um filme? Arte? Entretenimento? A “periquita” da mulher-sensação de uma das últimas novelas da Globo? Tanto faz. Motivos são motivos. Não há motivo entre o céu e a terra, entre o Cinesesc e o Cinemark, que justifique ou deixe de justificar a ida ao Cinema. Indo ao cinema, o resto é justificável: justo.

Porém, ao achar que o papinho iria se manter na banalidade (fala boba = sorriso sem jeito), fui surpreendido. “Eu já tinha visto a Playboy dela, mas no filme é muito melhor.” – acrescenta o “senhor”. Uau!!! Um filme profundo e artístico consegue (re)significar cada coisa. Paro minha interpretação por aqui.

Gostaria de fechar a anedota contando o desfecho irônico dela. Nos créditos finais – que acredito que o nosso curioso espectador não ficou para acompanhar – aparece a constatação que há uma dublê. Não há cenas de ação, então – como pude supor e depois confirmei pesquisando -, a dublê é para as cenas e fotos de nudez mais explícita. Ou seja, nosso amiguinho deve estar acreditando, até agora, ter visto a “periquita” da Alessandra Negrini. Que ele possa carregar essa crença até a morte.

Enfim, acredito que, aqueles que assistirem ao filme, entenderão do que realmente trata esta anedota. Ou não.

21 DE ABRIL por sérgio da costa ramos / florianópolis

O barbudo é alto, tem cabelos longos e aparenta uns 46 anos, por aí. O senhor calvo tem cabelos apenas nas têmporas, os lábios são finos e abrigam um sorriso simpático. Aparenta uns 75 anos. Encontraram-se num abraço de longa efusão, pois nem se conheciam pessoalmente embora um soubesse do outro há séculos. Suas idades são meras referências, pois era as que tinham quando encarnados hoje, tanto o jovem quanto o mais velho, flutuam nas estratosferas celestiais.


Teriam conversa para mais de duas horas, que é o tempo mínimo de prosa quando dois mineiros se encontram. Mineiros e da mesma cidade de São João del Rey. Primeiro, relembraram a terrinha, que habitaram em épocas distantes uma da outra. Na procissão mais tradicional da cidade, a de Nossa Senhora do Carmo, o senhor calvo tinha lugar cativo sob o pálio – como autoridade que era. O barbudo costumava assistir ao cortejo enquanto garoto, antes de se mudar para Vila Rica. Tinha dois irmãos padres, mas ele próprio não pudera concluir os estudos, ficara órfão aos 11 anos.

Não foi um encontro qualquer, sobretudo porque consumado em alguma cápsula intertemporal. Dois filhos de São João del Rey, dois mineiros, dois heróis. Um, o “patrono cívico”da nação brasileira”, o outro, o “pai da Nova República”.

O mais moço (no momento da desencarnação) cumprimentou o mais velho com certa reverência:

– Dr. Tancredo! – quanta satisfação! Os meus respeitos! Lá de cima acompanhei o seu trabalho pela redemocratização…

– Tiradentes! Venha de lá o abraço do meu herói predileto! Conheço você desde o meu caderno do curso primário. Era você na capa e o Hino Nacional na contracapa! Como vai essa barba?

– Por aqui continua moda, o senhor sabe. O Mestre gosta de todos à sua imagem e semelhança…E o seu divertículo, como vai?

– Já não dói, depois que aqueles médicos torturadores de Brasília e São Paulo pararam de me costurar. E o seu pescoço?

– Às vezes ainda sinto um pouco. Naquele tempo a corda era das boas…

Trocadas as amabilidades, os dois vultos da história passaram em revista os últimos acontecimentos do Brasil e do mundo, os homens entregues à traição, às falcatruas, à desonestidade:

– Parece que a coisa tá feia lá embaixo, principalmente na política e na igreja…

– Na igreja? – espantou-se o barbudo.

– Pra você ver… – lamentou o careca.

– E no Brasil?

– Pra variar, a economia vai bem e o povo vai mal – como disse um dia um daqueles generais.

– Uma pena _ lastimou-se o Alferes. Uma insatisfação assim pode se transformar numa grande revolta.

– E o governo, insensível como todos, mantém a carga fiscal em alta. É “derrama” todo ano! Mais o Imposto de Renda, que tem o leão por símbolo.

– Nada a ver com o Avaí, espero _ atalhou o militar, que acompanhava os acontecimentos esportivos.

– Não! _ fez o doutor Tancredo. Falo de um leão de garras estatais, não de um lúdico bichano…

Ambos concordaram que alguma coisa precisava ser feita pela democracia brasileira, tão carecida de boas vitaminas, a coitadinha. Na qualidade de “santos” e de mártires, nem precisaram pedir audiência ao Senhor. Passaram por todos os santos e foram direto à sala de Deus, com quem privavam de grande intimidade:

– O Brasil, outra vez? – e o Senhor fez um ríctus de puro tédio. Do que se trata, agora?

– Muitos fichas sujas são candidatos…

– E o que devo fazer?

– Chama esses candidatos aqui pra cima…

– Impossível! Teria que matar metade do Brasil!

Passaram para a preocupação seguinte.

– E qual é? _ perguntou o Todo Poderoso, impaciente.

– Não é com o Brasil… – infelizmente.

– E com quem é?

– Com o Papa… JULIA BACK

PERSONAS por jorge lescano / são paulo

Dentre as minhas anotações esporádicas com que o Fado quis me punir, frustrando qualquer Destino de Escritor, no dizer d’O Outro, tirando as aliterações, que são minhas e ali estão para suprir suas rimas, há uma que por algum tempo satisfez minha modesta vaidade, expressão esta menos incongruente do que o senso comum tende a acreditar, o senhor não acha?

Encontrava eu na supracitada anotação, algo que o estilo sensacionalista  da Pálida História Universal do Fogo vulgarizou, se a senhora está me entendendo.

Aquele breve artigo hoje protege da poeira o fundo de alguma gaveta. Não guardo nenhuma ilusão sobre ele. Se fosse publicado, não faltaria quem o associasse, seja pela forma, seja pelo tema, com suas obras menores, como apreciam dizer os críticos quando escrevem sobre eles dA Pessoa em Questão ou d’O Outro, quero dizer.

De fato, eis que encontro no volume que Vladímir Vladimiróvitch, Volódia para os íntimos, dedica às suas memórias, o assunto que eu tão ardilosamente elaborara. Assim pensava em minha inocência de leitor incompleto de sua Obra Completa Mas obraS completaS não sugere que haveria ObraS IncompletaS, fessora?

Leitura vigilante nas estepes da noite. Noites insones pormenorizadas indiscretamente por ambos escribas em suas respectivas autobiografias Apócrifas!, seria o caso de dizer, e digo-o

Minha proverbial modéstia, Campeão Mundial da Modéstia, chamou-me um beatnik de nome esquecido, não admitiria que usasse publicamente uma data de significado meramente pessoal, as tais datas íntimas da crônica jornalística Por favor, madame, não confunda estas com os dias da mulher, por assim dizer.

Enfim, para ser claro, declaro que nunca tirei proveito do fato do meu aniversário coincidir, sem que eu tivesse nenhuma participação nisso, com os de Edgar Allan Poe, de Paul Cezanne, de Jota Watt, de Auguste Comte e de muitos mais, ignotos, preteridos, injustiçados pela mídia, para me tornar interessante entre os fãs que a bem da verdade nunca tive. Deixo que outros, tá me entendendo?, façam disso uma efeméride literária, que assim tratam tudo que lhes diz respeito nesta aldeia. Tal data, casual sempre, se bem que causal no caso, não encontrou albergue em minha Obra Incompleta (sic, senhor Raimundo Silva, sem gracinhas gramaticais – anotação (posterior?) acrescida por mão anônima(?) – N. do C.), inédita, como todo mundo virá a saber algum dia se o meu MB cumprir sua tarefa à risca. Não, damas e cavalheiros (é bom afastar vocês, vez por outra, da porta das casas de banho públicas – Ass.: Mão Anônima – N. do C.), eu, mais tímido que Volódia, mais modesto que Grishka, preferi tratar da  morte do Pai dos Filósofos, no dizer  do platônico Ficino. E deixem-me acrescentar, visto estarmos num grupo de adultos que, mais previsor que Xiko K., mais decidido que o macedônico Fernández, tomarei em minhas próprias mãos o Destino, por assim dizer, de tais rascunhos inconseqüentes! Aproveito a oportunidade para agradecer ao nosso analista do sistema o novo impulso que deu à minha vida, obrigado, Herr Doktor Young Froid!

A partir de hoje ninguém mais, eu disse NIN-GUÉM, virá a lucrar, em fama ou dólares marcados, com a obra d’Ele Eu Mesmo!

Sim, voltemos ao redil, meus fiéis e caros compatriotas, disse enquanto devolvia o Colt ao coldre, antes de oferecer uma rodada de tequila a todos os figurantes.

Pois então, eu nunca incluiria, como poderia vir a ser comprovado facilmente, se as minhas anotações viessem à luz de néon das vitrines, contra todas as disposições em contrário devidamente explicitadas no meu testamento, este sim a ser publicado em edição bilíngüe por um testamenteiro prestativo, nunca incluí, melhor dizendo, o fato desportivo de sempre ter escolhido jogar de goleiro no meu time, ao invés de correr como os outros rapazes, na pitoresca expressão de nosso diretor de cena, russo naturalisticamente. É bem verdade que entre meus papéis poderia ser encontrado um texto confidencial que trata do assunto sob um ponto de vista insólito À maneira de Anton Pavlóvitch, meu caro!, zomba já sabem quem. Nele, antecipo-me a declarar, evitando equívocos  difíceis de desfazer e qualquer aproximação temática com o livro de Piotr Manke, explicações a posterior soam sempre pouco convincentes,  não me detenho a analisar Os Pathos do Guarda-redes ao Por de Sol, antes, trato da deficiência qualitativa do último defensor da cidadela por excesso de senso de justiça. Não fossem meus artigos serem incinerados na pira comum do esquecimento coletivo, e convidaria o leitor virtual deste a conferir a verdade naquele.

Tenho por fórmula, vício ou princípio estrutural, ou tudo isso ao mesmo tempo, usar três itens, e/ou motivos, no mínimo, em cada um dos meus escritos. Mania inofensiva, inda mais sendo eu meu único leitor, os outros, já sabemos, eles os açambarcaram.

Desejo encerrar  minha participação neste magno evento com a coda de uma pecinha despretensiosa para violoncelo solo, o arco empunhado por mão inspirada, embora inexperiente, poderia escrever um deles, parodiando meu estilo lírico dos sábados à tarde e das festas juvenis, às que compareço no caráter de paraninfo.

Datas são motivo recorrente de Grishka, Vladímir Vladimiróvitch faz uso do tema musical de modo nem sempre importuno. Numa bagatela, curiosamente muito popular entre os tradutores, calha acontecer a dupla citação do título de uma sonata para violino e piano, citação bifronte, para falar com propriedade, e tanto russa quanto germânica. Grisha Gueorguévitich leva sua paixão pelo calendário ao ponto de datar uma dessas imprudentes notas americanas (sic) que têm valor muito diferente e o mesmo tamanho e cor, apresso-me a acrescentar. Tal imprudência, em sua hora, foi sábio conselho de economia de Henry Ford, o dos carros, ao então presidente dos USA, cujo nome lhe esquecemos.

Houve um compatriota nas noites de exílio, que para preencher a solidão, antes de ser capaz de comunicação com os nativos, segundo prezam dizer os anglo-americanos nos seus filmes de “aventuras”, como alguém recém chegado a Zembla, ou que sem notícia prévia aterrizasse em Tlön, dedicava-se a compor equações verbais. Por motivos óbvios, como a seguir se verá, guardo apenas uma, e esta incompleta. No caso, uma simples seqüência. Outras havia que por sua complexidade e número de componentes, seria impossível conservar de cor (vinham nomes antes de): O Henry-Henry James-James Joyce-Joyce Cary; seguiam-se outros nomes de escritores de língua inglesa e a seqüência tendia a se sintetizar: O Henry-James-Joyce-Cary, antes de passar para o segundo estágio, que permitia a convivência de diversas entidades na mesma instância: HenryFordMadoxFord, eis um nó que a memória se nega a desatar, and so on.

Porque intuo algo semelhante em relação a eles, disse abanando as mãos como se eu estivesse na sua frente e não atrás, como determina o regulamento Fora as costumeiras revelações indiscretas que sem pejo de ferir alguém despejam periodicamente na imprensa, visando uma publicidade de gosto duvidoso, se não descaradamente deplorável.

Por Alá!, exclama o oleiro, pois a argila resiste à pressão dos dedos, insiste em permanecer argila, nega-se à curva que em vão as palmas das mãos tentam lhe impor. Porque o tempo urge, ele é obrigado a apresentar os dados como o acaso os lança. Que o leitor se avenha, que se agarre como se agarrar possa, brada a pancarta fincada na arena deserta, à espera dos contendores, cada qual com sua razão e preferência.Lavamos as mãos, poderia ser o anúncio de sabonete que aqui promovemos a divisa, porque Volódia, na talvez única referência de Grishka, que até lhe esquece o nome, embora insista em que queria e queria se lembrar, e só vem a a ser identificado pelo jornalista que o entrevistava ao mencionar Manolita, título do seu romance mais popular, já que não seu melhor livro, atrevemo-nos a dizer, Volódia, dizíamos então, teria declarado, segundo a citação de Grisha, que pretendendo organizar uma antologia de páginas mestras da ruski literaturï, não consegue incluir nenhuma de Dosty Prosa russa, dissera Gueorgui Gueorguévitch na entrevista, mas eu gosto de tomar-lhe os modos, é minha pequena e secreta vingança. GG às vezes cita em galego e imediatamente transcreve a expressão do original anglo-saxão, já V.V. manipula o english, o Deutsch, o français, o ruski e num romance quatro palavras no idioma de GG, e depois (entre parênteses) a versão na língua em que o texto esteja sendo publicado, se bem que outras vezes o processo seja inverso. Volódia, numa das menções que faz a Dosty, poucas se comparadas com o número de vezes que a patriarcal figura do conde Liev Nikolaiévitch comparece à sua obra, lembra que Fiódor Mikhailóvitch é o autor de O Duplo. Por mera coincidência, percebe?, é o mesmo conto que O Outro cita em Cambridge, ao norte de Boston, faz questão de frisar, hum! Para completar a equação, sou tentado a acrescentar O Farsante e O Idiota e por que não Os Falsários?, este de autoria de MB, o que equivale a duas equações de segundo grau ou equação dupla: plural e autor novo na lista, este, por sua vez, poderá representar uma nova e tripla equação: judeu-“tcheco”-de língua alemã, condição esta  que o autoriza como possível matriz de outras equações. Para fim de conversa, sua conseqüência lógica aporta um título que poderá servir de corolário, caso renunciemos ao Mundo Antigo ou limitemos nosso campo de jogo ao calendário gregoriano ou a qualquer outra instância, todas arbitrárias, que exclua o plural e/ou os poetas latinos: A Metamorfose (Die Verwandlung). (Ufa!, esta foi de lascar. – Nova interferência, ou contribuição, como quiserdes, da Mão Anônima  – N. do C.).

Meu Leitor, se tal entidade existisse ou viesse a existir, não deveria estranhar o tom deste depoimento. Tenho vivido a ambigüidade desde William Wilson até Veinticinco de Agosto, 1983, com parada obrigatória no estranho caso do Doktor Kafka und Herr Max Brod. Sou O Escamoteado, O Inominável Homem das Neves, segundo estamos cansados de ouvir!

Nesta altura parece que o texto deveria se juntar ao rol das obras que tenta desmascarar, salvando as distâncias, naturalmente Tal seria o caso, em verdade vos digo, se a palavra viesse à luz, meu Pai não permita. Ela explicaria de uma vez por todas aquelas e muitas outras falácias literárias, bastaria conferir a variedade de nomes  com que O Outro comparece  na escritura para saber que estão a falar de mim.

Não há necessidade de se estender sobre o número de vezes, que Volódia usa e abusa da figura que nos ocupa (Eu, hein?). Que eu saiba, nunca alude a GG. Ignorância? Vingança? Álibi? Hum! O Mundo Existe Porque Eu o Contemplo, o dístico, grafado em grave alfabeto antigo, resume a atitude deles a meu respeito. O célebre professor Jotabson respondeu à consulta sobre Vladímir Vladimiróvitch lecionar literatura: não se convidam elefantes para dar aulas de zoologia. A apropriação do pronome EU pelo narrador que estamos a tratar, parece-me suspeita, excessivamente enfática, declaradamente autoritária.O caso não poderia ser mais simples do que prevê nossa terapia, Herr Doktor? No que tange à minha vida particular sabemos a quê nos ater, não é verdade?, e o leitor não tem nada com isso (Leitor em caixa baixa, senhor Raimundo, pois é do comum que se está a falar, apesar da caixa alta do leitor desta frase, assim tratado por força das circunstâncias. – A Mão Anônima não se rende! – N. do C.).

Nada cobiço, sequer pretendo figurar na Obra de Alguém, apenas reclamo o meu quinhão do que quer que seja neste emaranhado de temas que não tem Todorov que desate. Justo é reconhecer, contudo, que Volódia foi mais generoso, deixando pelo menos um texto no qual ocupo o lugar de honra, honra entre aspas faz favor brigado, segundo é fácil deduzir de um trecho de conversação registrado em Volódia’s Dúzia, na nova ortografia de Pindorama, conversação na qual me acusa de ter levado a passear sábios cidadãos de Sião  por Belgrado-Berlim-Bruxelas, tome nota da letra inicial destas cidades, que está a pedir  capítulo aparte Por que não Adis Abeba-Azul-Aracaju, hein? E para confirmar o assunto em pauta, o qual seja descarregar nas costas de outrem o peso das conseqüências de nossos próprios erros, não é assim?, me atribui desígnios mesquinhos, e quando por fim se estabelece em Boston, outra vez a escarlate letra do substituto, e agora não é Edgar Allanitch Poesky, intrinsecamente ligado a quem vos fala pelo signo de Capricórnio? E naquela metrópole do norte, custava-lhe escrever Antofagasta?, acredita ter se libertado da presença homônima, eis que continua a receber mensagens da outra existência, da qual finalmente se livra concedendo ao chantagista o pequeno valor pecuniário por ele exigido, valor este, diga-se de passagem, que nenhum extrato da minha periclitante conta corrente chegou a registrar.

Eu disse, retomando o fulcro narrativo, que Volódia foi mais generoso, e não só pela modesta quantia paga mor de se ver livre da presença incômoda, ato tanto mais fácil de realizar visto ser apenas virtual, ficcional, como se dizia antigamente. Porém, peca do mesmo defeito de todos os anteriores. Atribui aO Outro o nome do narrador que, a bem da verdade, ficamos sem conhecer, visto V.V. se recusar a revelá-lo na peça literária sobre a qual estamos debruçadas com afinco, procurando concluir nossa tese de mestrado Ensaio ao Crepúsculo, Forjei este título poético hoje, ao alvorecer, enquanto Ele repousava olimpicamente nos braços de Morfeu e eu e minhas colegas de turma, umas graças!, retoiçávamos pelo campus universitário, longe do labirinto acadêmico e seus meandros burocráticos Russifique tudo, minha querida (moya dushen’ka)!

A sinonímia, mezhdu prochim (por falar nisso), tem se mostrado o recurso mais acessível para tratar literariamente a anomalia em questão, e que segundo o próprio Volódia, no mesmo volume de suas obras completas, o ilustre Doktor Herman Brink denomina singelamente Mania Referencial. Porque é desta rica variante de interpretação do universo que estamos a tratar, de maneira um tanto parabólica, se se quer, conforme sua natureza sutil, não do grosseiro Conheço você de algum lugar!, com que os motoqueiros e outros sátiros motorizados ou de veículos de tração a sangue, skatistas (sic! sic! sic!) e patineurs, mormente, costumam abordar ninfetas de melenas fulvas, ainda que artificiais, que sem segundas intenções transitam vespertinamente pelas veredas destes tristes trópicos Tem se insinuado no presente estudo que a sinonímia é o modo mais fácil de se atingir O Outro, será também a mais eficaz?Hum! por assim dizer, diz meu Orientador, desorientado. Por exemplo, exemplifica, Jota Cortazarévitch, dizia eu, continua dizendo, tentou uma variação que eu não estou certo de que seja a melhor,  mas enfim, é uma variante, e é disso que estamos a tratar, não é? Assim ele, com neopravdannay a zhestokost’ (crueldade injustificada), opta por uma alternativa em que O Original, por assim dizer, topa com O Outro em gestação, digamos assim, para variar. Destarte, O Outro, O Duplo, a bem dizer, é encontrado pelo original (atenção, Sr. Raimundo, na grafia de eu, o outro, original. Aspas e caixa baixa terão alternância com caixa alta e omissão de aspas, segundo o narrador ou o usurpador tomem a palavra. Está-se de facto a se cercar a fortaleza e conto com seus inestimáveis préstimos para levar a bom termo esta cruzada. De mais a mais, dispenso suas graçolas lisboetas, como já disse algures e nem é bom repetir, mor de pouparmos o leitor do censurável espetáculo de nossas desavenças. Aliás, para por em pratos limpos as nossas relações, desejo explicitar que se naquela lamentável história  durante o cerco de Lisboa, eu disse ao editor Não é morte de homem, foi porque tenho apreço por si e sou da opinião de que todos temos o direito ao pão de cada dia enquanto não se for convocado a comparecer à bela Estocolmo (Gamla Stan) às vésperas de seu crudelíssimo inverno (vide postais anexas). Facto este fatal, o da convocação, para os escribas e do qual, quer me parecer, futuramente nem os modestos revisores estarão livres, ora que até um autor de língua lusitana (deixemos assim, provisoriamente) foi contemplado com o galardão máximo da solene Academia Sueca (toda adjetivação é insuficiente ao se falar da Veneza nórdica e de suas instituições). Ficam a advertência e os meus cumprimentos, prezado senhor, e deixe-me rematar o parágrafo para ir dormir, que já são quase seis horas da manhã. Isto tem de bom o gênero anotação: não precisamos pedir desculpas ao leitor pela digressão (nem pela cacofonia! anota a famosa Mão – N. do C.) E foi assim, minhas crianças, que o Cruel Original, havendo detectado O Duplo na adolescência, pálida rosa amarela, decide-se pelo final do jogo dovol’no skucho (é uma pena!), e interrompe o processo evolutivo daquele que viria a ser Ele, se este não tomasse as devidas providências. Não me pergunteis de que jeito  efetua seu intento, satisfazei-vos com meu relatório e observai que o epíteto com o qual Ele é identificado nesta sentença, revela-se suficientemente explícito para merecer maiores comentários, pois não? Moral da história: mais uma vez o Doktor Young Froid e eu fomos ludibriados! Eto unizitel’no (é humilhante)! Aqui se interrompe o manuscrito ou, se houver continuação, não acerto a encontrá-la na barafunda de minha mesa. Passarei então ao datiloscrito, no dizer de Volódia, depois de um sono reparador e quero crer bem merecido.

Eis-me aqui, novamente, acorrentado e a remar ao ritmo do tambor, e neste mar, não é menor o perigo pelas vagas serem pátrias Po razschyotu do moemu (pelas minhas contas) tendes apenas mais dez minutos de consulta, interrompe-me cerimoniosamente o Doktor Young Froid, pretendeis tocar o barco a toque de caixa alta e baixa, ou preferis que peneiremos vossa infância? Quais as cores que vos inebriavam aos três meses de idade? Na escrita usáveis com dupla freqüência o signe de interrogação, como é aconselhável? Inquire o bondoso terapeuta, transcrevendo literalmente a construção e terminologia de sua língua mãe, aqui mencionada para não fugirmos demais do repertório dos seus afazeres Falemos de efemérides, peço-lhe para arredondar a deixa Seja, se tal é vosso íntimo desejo Ladno (oquei)!

Não quero abusar da paciência daquele leitor virtual para quem inconfessadamente todos escrevemos, protelando a revelação da efeméride à qual se alude desde o início deste relatório. Trata-se apenas do ano de nascimento dos recrutas Volódia Gueorguévitch e Grisha Vladimiróvitch, general, vide Nabor; Posliédnie Novosti, Paris, 1935 e ou Viesná v fialte, NY, Tchekhov, 1955. Segundo revelaram em seus respectivos ensaios de autobiografia, como se não soubéssemos de quem estão a mangar, hein, Herr Doktor? Se não puder russificar privatize, que está na moda, encoraja-me Vladímir Vladimiróvitch; Speak, memory. An Autobiography revisited, USA, 1947; também Georgie Gueorguévitch Burgov, An Autobiographical Essay, NY, E. P. Dutton, 1970  Zhivo (depressa)! Ambos autores decidiram que tal evento, o respectivo nascimento quero dizer Zhivo! Acontecido no penúltimo ano do século dezenove e por algum motivo que me escapa, é digno de menção. Georgie ou Grisha, que vem a ser o mesmo Zhivo! é mais enfático a respeito. De facto, reitera, em mais de uma entrevista, que 1899 não é o último ano do século, visto a série, toda série numérica decimal, encerrar-se na dezena. Meu não-leitor, por escassez de textos, gostaria de dizer Zhivo! poderá deduzir facilmente que tanto Grishka quanto Volódia centenariam seus nascimentos no ano que não tarda a ter início. Agosto e Abril respectivamente, repare na letra inicial dos meses. Por que, se fizeram tantos esforços  para encontrarem suas vozes literárias, se de distintas formas ludibriaram  minha vigilância, por que, é o caso de se perguntar Zhivo! negligenciaram a publicação deste dado e de outros que me reservo para melhor ocasião? Permita-me discordar do termo negligência, tanto Gê quanto Vô, utilizam o dado além da  constância biográfica. Volódia faz participar de sua festinha de aniversário Shakespeare e Shirley Temple, quanto a Grisha, basta retornar à página 4 deste relatório para encontrar uma referência ligeiramente disfarçada. Oh, sim, ai de mim! a senhora acaba de enfiar a unha na ferida com a precisão de um punhal maneirista na mão primorosa do madrigalista Carlo Gesualdo, príncipe de Venosa. É justamente esse trecho da  Memory de Volódia Vladimiróvitch que se insinua na primeira página  deste relatório E se a senhora quiser mais um dado revelador do complô, ei-lo, dois pontos, Volódia convoca Shakespeare em suas Memory, Grishka aloja na memory do mesmo bardo britânico a data do seu natalício, ligeiramente disfarçada, como monsieur A, está entendendo? Dupin pode facilmente deduzir Feche a boca e comprove  minha afirmação na Obra Completa, insisto, d’Os Outros Como vê quis supor um descuido inocente, Padre Brown, porém o tiro saiu pela retaguarda, isto porque testemunhas desqualificadas deram sua contribuição ao enredo, enredo no mau sentido, claro, e agora o leitor deles está mais perdido que cachorro em caminhão de mudança, que o meu leitor, se o tivesse, sempre saberia a quantas andamos e que estamos entrando na reta final ou cerimônia de encerramento do encontro fortuito de duas bengalas e uma máquina de escever sobre esta escrivaninha Zhivo! e que o texto conclui com um dos truques preferidos pelos velhos magos, o qual seja a duplicidade dos protagonistas e a incógnita do significado da revelação Perguntar-se-ia o meu leitor, qual a intenção ao desvelar, ou relembrar(lhe) tal efeméride Zhivo! Eis algo que estou incapacitado para responder sem admitir, a socapa, que o sentido talvez seja também uma incógnita para o redator desta Crazy’s Memory, pois em virtude das peripécias de nossas atribuladas existências, vemo-nos obrigados a ditar e transcrever, respectivamente, suprindo a visão ausente de um dos personagens, o desconhecimento quase total do galego do outro, salvo aquelas quatro palavras no capítulo de sua obra que dedica a esse idioma e que nesta pressa não atino a achar, e a precariedade pecuniária do terceiro, como já alguém revelou algures, temos dito! Bem dito, meu caro Jota Elle, e no tempo regulamentar!

Mozhno pridti teper’, bárin (posso ir agora, patrão)?

Exercício pornofinia PULP nº 8 – por ennio villavelha



“Hoje em dia, o campo da ficção está coalhado de narrativas sobre sensibilidades de uma criança que chega à maioridade numa granja de frangos, ou sobre uma prostituta que despe o glamour de sua profissão”.

John Cheever

“Um pouco mais e eles serão cúmplices. Ela vai lhe explicitar desejos, dos mais secretos. Vai lhe falar dos seios, das fendas, de sexo. Ela vai lhe excitar a textura, dar vida… Sua matéria. Vai lhe encher de fantasias, de gozo, de carnes. Ela vai lhe contar o proibido, o imoral. Vai lhe falar o que as bocas lavadas calam com pudor. Ela vai se despir da vergonha. Um pouco mais e eles serão cúmplices, ali mesmo, sobre a mesa da escrivaninha. A mão da mulher alisa o papel em branco. Mas recua”.

Cassandra Rios

Ser uma puta cheia de encantos, esse é o atributo para continuar participando desta vida. Puta é uma palavra de muito respeito, difícil de condicionar e pasteurizável com facilidade por bocas com hálito de cu por seres humanos com cabeça de porco e, também, por todos aqueles de banho tomado que usam lavanda com essência de rosas brancas. Palavra que nunca se aproxima do impiedoso démodé; mesmo assim fica embaraçoso se referir à pátria descrevendo-a dentro do que equivale uma puta, ou ter que descrever a um pai a qualidade de sua filha através de. Isto é, a preocupação aqui vai de peso a peso, pois cada um conhece os demônios que carrega e as salas que frequenta. Mas todos bem sabem que não há como definhar argumentações etimológico-faggot-cristão-analítico encima de uma puta, quero dizer, encima do vocábulo puta. Puta, puta,… Que gostoso.Muitas vezes as pessoas se quer desconfiam de determinadas lobas…

Saber vender é poder se vender, e é isso que a aristocracia e a plebe procuram por sobre a nata de seus desejos, pessoas vazias, mas com a carapaça bem grossa como um hímen de égua.

Neste quadro se encaixa Mina, com este nomezinho miserável que é uma estranha abreviação de Mariana, o tipo da mulher feia bonita. Com notório conhecimento do poder da lábia-majore muxibenta e pelancuda. Só sai de casa com calças que a deixa como um pedaço de carne embalado a vácuo, para poder desmontar o magistrado, o pessoal da obra, mulheres casadas insatisfeitas e todo o resto do mundo, inclusive os cães se dão sobremaneira muito bem com o perfume natural dela mesclado ao Chanel n° 5 fake. Carrega um curioso mullet preto que parece ter saído da cabeça do MacGyver, só faltando o papel de balinha o chiclete mastigado e então confeccionada uma bomba H.

Admite só a necessidade do vento encarregado de soprar em sua direção, o resto está garantido, o resto são insignificâncias que acabam revelando que todo homem e mulher tem o seu preço, exibindo um ácido corrosivo com uma segurança de dar nojo. Uma nódoa encima de qualquer coisa que valha a ética popular.

Diametralmente oposta à esquina onde reside Mina, funciona uma padaria bem limpinha com várias qualidades de pessoas e quitutes mil. Pendurado na parede adjacente ao microondas um quadro onde se vê a foto de um homem com o semblante áspero, barba e testa compridas, no seu paletó riscado à posteriori uma inscrição ilegível e impronunciável, carimbada roxa no sépia do papel e o nome Albert datado de1896 a 1927. Imagem deslocada estranhamente naquele espaço, porém notável até para a pessoa mais LSD25 do mundo. Notável. Nunca acendeu tanto a válvula da curiosidade volátil como foi com Mina. Aqueles olhos claros não identificáveis nos tons da foto. Serão azuis? Verdes? Ardósia talvez. Que ázigo era aquele um! Que tipo miserável com o olhar tão cheio de candura e segurança. Entretanto tratou de procurar os eufemismos antes de dejetar perguntas a esmo. Isso sem ter constatado que o dono da padaria e também dono da foto já manjava o rosto dela há alguns dias e sentia certo frescor tedioso impregnado, cara de quem vira a noite e sempre pega a primeira fornada de pão; para não comer. Além dos bicos dos peitinhos, além dos bicos dos peitinhos sem sutiã naquele frio matinal, toda porn gonzo, toda sexo propositalmente. Ohhhh que deve ter uma guilhotina entre as pernas, pensava o corajoso padeiro por desejar uma ferramenta tão perigosa ainda mais sob o domínio de uma mulher.

Repentinamente Mina perguntou para o primeiro que estava atrás do balcão que se aproximou:

Quem é aquele homem da foto?

Não sei não senhora, vou perguntar pro seu Ernesto – respondeu o funcionário.

Porra, você olha pra essa foto todos os dias e não sabe quem é? – retrucou, mas naquele tom “velhos amigos e a apenas um átimo de segundo te conheço”.

Ernesto punheteiro. Nunca se saiu bem com as mulheres. Sofreu com traições de suas namoradinhas na fase púbere. As gurias se cansavam por ter ao lado não um possível homem em formação, mas sim um amigo sonso com a libido de um maracujá de gaveta. Confuso a cada frase, a cada passada de mão um empreendimento arriscado. Sempre fora delgado e meio corcunda, cheio de tiques nervosos, mas não de todo irrecuperável. Depois de adulto passou a comer mais e de maneira melhor as mulheres, mas elas sempre se queixavam que seu pau era muito longo e fino demais, ”não mete tudo não se não você me empala”, isso aquilo e aquela conversa. Talvez por isso cunhara predileção por mulheres com cara de puta.

Quando assumiu a padaria que era do pai, adquiriu uma mania para se divertir nos momentos que ficava ali sozinho, um estranho hábito de abrir a gaveta da caixa registradora para soltar traques fedegosos encima do dinheiro, depois a fechava com um chute comedido para não quebrá-la.

Olhou incontidamente aquela cena e logo se aproximou:

Bom dia!

Oi quem é aquele homem da foto?

Olha, eu perdi o rumo genealógico da minha família. Mas acho que era tio do meu avô, muito chegado, muito querido… Só mantenho essa foto ainda junto de mim porque um cara me ofereceu um dinheiro legal pela moldura, ele disse que voltava dentro de poucos dias, mas já passaram semanas e nada! Por sinal é uma moldura muito bonita. – respondeu Ernesto olhando fixamente para o rosto Mina como se dono fosse de um par de olhos de vidro. Nada de pestanejos.

Sem riscar um palito de fósforo Mina deixou evidente que tinha interesse naquele artefato vintage esquecido ali. Eurodólar, Cruzado, Libra, URV, HPV, nada distancia ou estraga seu interesse. Talvez igual a observar a massa de um bolo aviltar-se com vontade de comê-lo logo.

Seguinte, adorei o cara da foto e já que pra você é a moldura que interessa então que tal você me deixar levar foto?

MMMMMMM… Que tal a gente tomar um capuccino? Aí conversamos – respondeu.

Que tal a gente tomar um capuccino? Brincadeira! Eu quero uma cerveja, mais tarde, afinal a que horas tu sai?

A hora que você quiser!!!

Agora então! – vendo chover a exultação do peito de Ernesto.

Vou dar uma saída senhores, não deixem os pasteis esturricarem, o palmito é da Amazônia, nem falei… – gritou para o seu funcionário que ficou “enfeitiçado” com o naipe daquela singular, enxugou-a com os olhos tal qual seu patrão, porém discretamente, com certo pesar, como sempre fazem nesses lugares, não deu muita atenção para a origem do palmito, não mesmo.

Saíram da padaria sem perguntar nomes, tão resolvidos e tão assustadoramente rápidos quanto uma ejaculação precoce. Mina elaborou num instante o que fazer, onde fazer e o que fazer. Rumou obstinadamente para sua casa:

Adoro cerveja, só que to ficando uma barrigudinha.

Deixa ver… Bobagem, ta ótima – Ernesto já trincando suas náuseas.

Moro aqui pertinho, a gente pode tomar lá em casa mesmo se não for problema pra você. É?

De jeito maneira!

Parecia que já estavam cientes que foderiam como dois discípulos da putaria desregrada, vingança sexual contra si mesmos.

A penitencia acumulada pustulenta do prazer. É uma das virtudes dos excitados incontroláveis. Maravilha para o prazer imediato, maravilha para a enforcadora vagina que quer ser coagida num tribuno ao Nobre Arquiduque das Trevas, com dor e cólera.

Arreganha bem gostoso que é pra sangrar, tem que sangrar com socos – fermentou o pensamento do moço.Enquanto caminhavam, trocavam pequenos olhares envolvidos por frases suculentas. Imoralidades docinhas entre dois desconhecidos.

E configura-se então a particularíssima verdade universal. Eis aí mais ou menos o exemplo do instante em que todos traem diariamente uns aos outros, maridos e mulheres, beatas e padres, judeus ortodoxos e formigas, namorados e namoradas, poodles e menininhas. O calor sobe e só é preciso um motivo não pontual para que seja estabelecido um vinculo amigável tendencioso e se desenvolva uma relação velada, idiotizante e animal. E assim nos comportamos todos via de regra, sem exceções, neste sanitário social fodido e pastoso como um herpes-genital salobro. Há quem diga que a coceirinha é gostosa, quase como criar um bicho de pé.

Ao chegarem à casa de Mina, uma pilha de louça e nenhum copo esperando os recém sejam lá o que forem. Uma foto do Ronald Biggs 2×3 metros na parede dos fundos, garrafas, cordões-cheirosos, pezinhos de feijão plantados em latas de atum.  Sabor de casa de mulher solteira e desempedida dos compromissos jesuítas.

Seguinte, eu não sou do tipo que diz: Vamos entrando, mas, por favor, não repare a bagunça!.

Que isso, eu já percebi. Você tem um jeito bem…

…Bem o que, bem piranha é isso???

Foi o tempo de ressoar último acorde diminuto aumentado menor daquela voz, para que enchesse a boca dele com sua xoxota já sem calcinha, vestida até ali em uma saia curta de cetim magenta, e uma camiseta branca dos Miracle Workers. Deixou-o chupando, azeda ainda do suor e da porra de outrem da noite anterior. Enquanto a singeleza do capiau o fez pensar que era apenas precipitação de urina, de séquito de buceta. Há dias não via uma, então foi com sede, de maneira nenhuma anularia aquela situação quente, úmida. Estava gostoso ali. Sua língua não pararia. O bálsamo sexual chamou os órgãos para a foda. Um pé na cadeira e uma buceta projetada com vontade para frente, seguida de pródigas goladas nas cervejas quase que arrancadas da geladeira d’um lado, tomadas no gargalo mesmo.  Uma enfiada voraz, uma rolada maldosa, com tudo, quase na intenção de machucar – algumas leitoras sabem do que se trata – mas ela não deixou por menos, queria muito sentir por dentro um pau quente, não deixou de ser também para ela uma forma para aliviar a coceira causada por pequenos ferimentos.

Meteeee, meeeeeeeeeeeeeeeteeee, hummm, ouuuuuuuuuuuuuuuu, uaaraaa uou, uou. Pica, pica, pica, me pica vai, vai, come together right now over mêlée mete, te, ti, ti, ti… $%¨*&hjrg…

Depois de toda essa sistematização enfim Ernesto se voltou para o canto, enxugou as porras e o corrimento da donzela. Contemplou o post coitum, admirou.

Admirou.

. . . . .

Eeeeeee, e sobre a foto? Acho que seria uma boa se você ficasse com a moldura e tudo logo! Presente!

Caralho? Mentira?

Verdade!

Ai, muito obrigada!!!

Que isso. – falsa modéstia pairando.

Mina, realizou logo que a postura de Ernesto fora em demasia infanto-juvenil. Porra, o cara já tinha negociado a merda e me dá assim… Um malfeito! Partindo desta pequena serifa da personalidade de Ernesto, o subjugou ao valor de um quilo de merda – foi a primeira imagem que lhe veio naquele instante.

Vamos? – ponderou Mina.

Já?

Já sim, vamos lá buscar minha foto linda. Vou colocar naquela parede ali, do lado do Ronald Biggs.

Quem é esse aí?

Ninguém cara. Chega de questionário! – rebateu com uma raivazinha encantadora de puta que sabe ganhar fácil essas múmias com saco.

Vamos então. Olha que já deve ter pastel quentinho.

Delícia. Hummm. Eu quero comer uns vinte. Não, uns trinta!

Qual é o teu nome mesmo guria esfomeada?

É melhor eu dizer mesmo antes que eu morra de inanição. É Mina.

Mina? Tua mãe era criança quando te deu a luz ou era daquele tipo que gosta de ler as mãos dos outros, tem mandalas em todos cantos…

Nenhum dos dois. Meu nome é Mariana. E qual mesmo o teu nome, sujeito dos pastéis?

Ernesto. Prazer!

Pois é, o prazer se foi há alguns minutos! Mas foi um prazer sim, sem dúvida. – com esta rebatida sem sal mesmo.

Se eu notei?

É querido. – respondeu sebosa.

Em poucas semanas pastéis dados por afabilidade se transformaram em dinheiro, presentes, piranhagem. Gastos abruptos e desnecessários.

O pastel de palmito no pastel de cabelo e mais presentes, para a Vagina. Naquela altura não mais havia mulher/homem, só a buceta e o pau, nada de amor próprio em supino por todos os lados. Torrar tudo é quase gozar ininterruptamente, até dar febre!

O fosso do porém é que, tanto Mina quanto Ernesto não contavam com as contiguidades da cabeça do garoto que trabalhava na padaria (tanto para cima quanto para baixo, tanto para o bem quanto para o mal). Ali naquela função há uns dois meses antes de Mina tomar de assalto a única razão de ele ter permanecido no emprego: seu patrão Ernesto.

O garoto apaixonado por seu empregador, o que parecia particularmente estranho, pois enquanto jovem e aparentemente saudável, o veadinho poderia comer e ser comido por seus pares no mundo gay. Mas estava satisfeito, feliz mesmo por assim dizer, paixão ninguém escolhe como dizem as más línguas. Entretanto jamais deixou transparecer seu homossexualismo, mantido na mais misteriosa discrição.

Gerado ali um contrafeito. Além do que, dizem que os homossexuais-homens enchergam melhor que as mulheres, neste caso ao menos relativamente um pouco melhor que a moça em questão.

No final da manhã de um sábado qualquer Ernesto recrutou o garoto para ir até a casa de Mina entregar a ela o desjejum: pães, frios, uma cerveja escura. Ao se aproximar dela ficou surpreendido um bocado de si consigo, quase lhe sapecou um afrangalhado sopapo involuntário, daqueles que na meninice eternizam e efeminam o cidadão entre os amigos, mesmo que este já seja considerado o “ventilado” do bando.

Olha aqui sua vagabunda não pense você que sai ganhando todo mundo assim de lambuja! Conheço tua casca! Essa máscara aí cai fácil ouviu sua aproveitadora! – nesse momento endireitou-se e falou grosso, apesar da mediocridade do tema tratado.

Aí garotão, senta aqui – resvalou Mina respingando saliva.

Senta aqui é o caralho no seu cu! Puta rapariga! Sugadora!

Aaaeeh? – foi em direção a ele a todo vapor.

Olha some enquanto pode.

Vem se foder dentro de mim, vem… – novamente a moça fez troça com a irregularidade emocional do rapaz.

Vou!

E foi sim pra cima dela, inscrevendo nas costelas uma garfada que alcançou o osso perto do seio direito. Em prantos e com medo, enquanto Mina revidou, esmurrando-o acima da altura dos ombros, durante duradouros quinze minutos.

Iminente voltou para um diálogo de mão única, visivelmente abalado, com um papagaio dentro de si, falando até o que poderia vir a sentir por Ernesto.

Mina ouviu, mas não por piedade, ouviu por que lhe apeteceu ouvir, piedade é liberar uma rodada de boquete pra um grupo de adolescentes sem perspectiva de encontrar uma mulher fácil. Isso era nada além de curioso, e estranho de se ver.

… E é isso! – concluiu o garoto.

É isso. E você quer o que afinal? Olha aqui. Agora se você quer dar trepar com teu patrão diga você a ele!

Você quer é continuar usando o coitado do Ernesto. Isso não. Eu sou é doida por ele – falou o garoto

Doida?!!!? Demorou se consagrar, mas já liberou o canil com vontade eihn?

E daí, me deixa tá! Você fica aí achando que ganha todo mundo com essas camisetinhas de banda de rock e esse seu papo fiado? Aprendeu essa merda onde? Na classe-média? A mim não querida, eu não caio nesta armadilha não. Sou melhor que você.

Sou uma self-made girl babaca!

Vai tomar no cu com esse seu palavreado fodido. Você se fez foi sacaneando os outros. E eu não vou mais me trocar com você!

Ela o deixou seguir. Com a frieza da certeza de que ele não diria nada a Ernesto. Imprecou a si.

Ernesto, Ernesto!!! – Gritou o rapaz no corredor dos fundos da padaria. Sem que ninguém o visse. Mas a qualquer possível ouvinte transpareceria o cheiro do pavor, da coisa introvertida, passional.

O que foi rapaz, para de gritos aqui dentro da minha padaria porra! Ta ficando demente caralho! Logo você que nunca me deu problema, vai querer cagar agora? E que porra foi essa ai na sua cara, levou uma surra caralho?

Foi aquela mulher, aquela acomodada maldita. A sua Mina! Aquela mulher te usa como usa todos com quem ela cruza, aquilo é o Rei Midas das Sanguessugas.

Já estapeando e puxando o rapaz pela camisa

Porra, ela me espancou porque eu descobri que ela te usa, ela só faz isso, desde o começo.

Isso é problema meu.

Foram as pressas percorrendo o trecho não muito longo da padaria até a casa de Mina.

O guri nunca se dera a um desprazer tão fulminante e vergonhoso, sendo puxado pela camisa já suja de sangue, desmoralizado por um amor kitsch, dentro de seu mundo estava muita coisa arruinada, se doía por fora, mas dentro muito mais, por dentro eram ferrões de arraia conseguidos de maneira rápida e quase gratuita, uma idolatria por um babaca, concluiu penoso olhando por dentro e já atravessando cabisbaixo o portão de Mariana. Nesses momentos em que a cabeça enfraquece mas que não se mantem iludida para o mundo real, ou ao menos para o mundo que for imposto.

Ele veio me agredir! Ele foi lá te contar? – rosnou Mariana

Vem cá porra! Agora eu quero ouvir que porra de conversa é essa!!! Tu bate na minha mulher…

Ca-la-bo-ca – vociferou Ernesto, a cada sílaba um soco na nuca do guri.

Isso meu bem!

É isso nada! Que tu é puta eu sabia, quero na verdade… Só ta a gente aqui. – Correu e trancou as portas fechou as janelas e abriu uma cerveja.

Ta bom, esse cara aí é um veado! Ta doido pra cheirar seu rabo!

Tenho maior respeito pelos viados, até inclusive já comi alguns…

… Aí Mariana, já comeu um viado? – Há algum tempo Ernesto não sentia aquele calor, que só os sujeitos que transam com vacas e porcas sentem, dizem os zoofílicos que isso ocorre principalmente no furor de um final de comoção. E ele sentiu.

Não gente, por favor, não gente – garoto acossado por duas cobras, que se apreciavam dentro daquela situação.

Levantou com medo dos dois. Juntou-se ao Ronald Biggs por ali e pediu calma.

Não fica preocupado, esses machucadinhos saram logo.

Eu só to querendo de ir cara. Ela já falou qual era minha, e eu percebi também que sou eu quem estava sobrando todo o tempo – falou rasteiramente como quem pede perdão ao carrasco pelos pecados que não cometeu.

Era só excesso de zelo por seu objeto de amor que agora impetrava sua estada por mais um pouco, mesmo que de maneira não razoável.

Agora no infeliz momento onde não há pavimentação e que as piadas mais engraçadas se perdem com o ar rarefeito, resta a desesperança, pois esperança é coisa de gente manhosa, nessa altura ou é ou não é.

Enquanto os três semblantes assustados tentavam fugir dali, sem mais entender como aquele enxame havia se iniciado. Mina foi a única, com sua verve de rato atemorizado, a insurgir contra aquele desaforo esquizofrênico.

Reflexivas as seis garrafas que estavam perante seu derradeiro golpe de vista foram arremessadas numa lamborada só na cabeça de Ernesto. Com as rédeas do medo no comando. Ninguém ali imaginava onde findaria aquele momento, na fauna e flora intestinal pelo modo de como atolados em merda pura.

Cambaleante Ernesto retirou-se. Deixou Mina e o garoto confusos ainda mais. Após uma troca de soluços e olhares.

Nenhum deles ousou se mexer enquanto o revolto varava o portão.

Chegou em casa, lugar por muito não visitado. Foi ao encontro de uma flanela áspera socada dentro de uma almofada qualquer. Foi até cozinha e bebeu água direto da torneira, acendeu um filtro vermelho dando três fortes tragadas e o dispensou no chão sem o apagar.

Ernesto sugava da memória a lembrança de uma senhora que o havia elogiado dentro de sua padaria por um motivo qualquer relacionado à sexualidade. Lembrança que sempre o fazia derramar duas teimosinhas gotas de lágrimas. Orgulhava-se como a maioria das pessoas mesquinhas se orgulham de detalhes microscópicos.

O súbito fora reconhecer a paixão por Mina e pelo rapaz, não admitida a si mesmo na clausura do macho que gosta de outro, que em contrapartida adora a natureza feminina.

Olhou pra cima, abriu a boca no mesmo instante em que levou a mão com os punhos cerrados, com um calibre 22 já apertando o gatilho, e sentiu a bala sendo cuspida cano a fora até alcançar seu maxilar inferior.

Não surtiu o efeito devido. Espetou novamente a arma na boca, desta vez no fundo da garganta, balbuciando alguma coisa como: eu sei que você ta assombrado, mas vai dar tudo certo.

Mantendo-se sentado neste meio tempo.

Funcionou, mas levou alguns minutos para que a visão começasse a perder o foco até que de uma vez por todas enegrecesse.

O que era moral agora? Quem eram os amantes: Mina, o garoto, ou não também. Ainda teve a chance de pensar quão bom seria se as putas e enrustidos carregassem, mesmo que lá no cu-do-conde das vontades, o sentimento que jogasse fora o catarro cheio de condicionantes de personalidade, colocado diariamente em todas as correntes sanguíneas, para que ao menos estes ajudassem a lavar todas as almas absortas sofridas; tão bem quanto conhaque em boca de bêbado.

CRUSOÉ por hamilton alves / ilha de santa catarina

Lembro-me que, quando certa vez fiz esforço para fazer a leitura correta, em inglês, desse livro (ou melhor, desse personagem) de Daniel Defoe, “Robinson Crusoé”, Silveira de Souza, sempre simplificando as coisas, dizia-me:

– Leia Crusoé assim como se lê mesmo.

O encontro com essa obra de Defoe deu-se, para mim, de forma inusitada. Foi um acontecimento como o seria para qualquer outro que o encontrasse e o lesse em idênticas circunstâncias. Encontrei um exemplar, já velho, sem a capa, sem as primeiras páginas, num cesto de minha mãe, onde guardava petrechos de costura, carretéis de linha, tesoura, dedal, coisas desse tipo.

Empreendi a leitura de um jato, tal a forma com que a estória me enredou do começo ao fim de forma fascinante, com o naufrágio de Crusoé nas costas de uma Ilha, de como se salvou, de como marcava o calendário ou os dias que passava na Ilha fazendo um sinal de corte a canivete num tronco de árvore, de como construiu uma casa no alto para escapar ao risco de um animal feroz, de como voltava ao barco que naufragara para recolher coisas de que precisaria se utilizar na sua nova forma de vida e o fato mais empolgante, totalmente imprevisível, de seu encontro com Sexta-Feira, que desde então passou a ser seu único amigo na Ilha, de quem primeiro descobrira pegadas, constatando que não estava só ali.

Praticamente, essa obra de Defoe foi a primeira da literatura clássica (ignorava isso naquela época, entre meus doze ou treze anos), que li com um frenesi que dura até hoje. Foi, na verdade, um fato novo em minha vida meio insípida da adolescência (não tão insípida assim, pois o gibí à época era a minha leitura predominante).

Saí desse livro com outra visão de todas as coisas. Algo que me marcaria para sempre, de que jamais esqueceria.

Crusoé, Sexta-Feira, a sobrevivência na Ilha, a espera de que um dia pudesse encontrar algum barco que o descobrisse ali para levá-lo de volta à civilização, os fatos corriqueiros ocorridos na Ilha, tudo isso passou por muitos anos (até hoje) a ser um motivo de meu encantamento.

Mas o que me fascina ainda agora foi a forma como afundei nessa estória de Defoe, num quarto mal iluminado por uma lâmpada fraca, sem janela, em que levei dois ou três dias envolvido com as peripécias de Crusoé e seu amigo Sexta-Feira. Essa foi, sem dúvida, a parte da estória que até hoje me acompanha como um marco de fantasia sem igual.

OUTRA FACE DO MAL por zuleika dos reis / são paulo

Um dia desses, alguém que não sei – há várias pressuposições – armou-me, nas sombras, uma cilada, visando desestabilizar minha relação com outra pessoa. E o conseguiu, plenamente, talvez por saber onde estava a minha brecha na alma, porque eu reagi exatamente de acordo com o que este ser, que agiu nas sombras, esperava. Com a minha reação institui-se uma Grande Sombra entre a minha alma e a alma daquele outro ser profundamente amado.

Seria simples maldizer este ser que agiu nas sombras, dizer que ele é o mal – logo eu sou o bem, no caso, o bem sacrificado pelo mal. Foi o meu impulso primeiro, o meu impulso natural julgar assim.

No entanto, depois de passados os primeiros dias da dor mais acerba e irremediável, compreendi: Não houvesse na minha alma a tal brecha, por onde a ação daquele ser que agiu nas sombras poderia penetrar?

Por causa dessa brecha na minha alma, onde foi plantada a semente de uma dúvida espúria e terrível, acabei por acusar  um ser muito amado por algo de que ele era absolutamente inocente.

Agora, diante do estrago incomensurável, só me resta ficar à espera de um perdão que não sei se algum dia virá.

Escrevo estas coisas apenas para me refletir no espelho onde poderia projetar a imagem do rosto do bem, um rosto do bem duramente atingido pelo mal. Não posso ver-me assim, nem projetar sobre o outro a face do mal.

A vida vai muito além dos rótulos. Antes de crucificarmos ao outro, melhor seja crucificarmos a nós mesmos ou então instituirmos um Jardim do Perdão, no qual estejamos todos com a Face da Inocência original.

.

Na tarde de 23 de março de 2010.

SERÁ QUE EVOLUÍMOS? por josé antonio oliveira de rezende /são joão del-Rei

Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque a família toda iria visitar algum conhecido. Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de paraquedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres as visitas. Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos. Aí chegava outro menino. Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala. Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre. Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre. Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro… casa singela e acolhedora. A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha – geralmente uma das filhas – e dizia:
– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.
Tratava-se de uma metonímia gastronômica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite… tudo sobre a mesa.
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As gargalhadas também. Pra que televisão? Pra que rua? Pra que droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança… Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam…. era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade…
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida. Era assim também lá em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa.. A mesma alegria se repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta. Olhávamos, olhávamos… até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou e me formei em solidão. Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail… Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa. Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída!… – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.
Casas trancadas. Pra que abrir? O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos do leite…

Que saudade do compadre e da comadre!

.

Professor de Prática de Ensino de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras, Artes e Cultura, da Universidade Federal de São João del-Rei.

VENTILADOR DE PROMESSAS por sérgio da costa ramos / florianópolis

Todo candidato é um santo canonizado. Deseja sinceramente enxugar o suor do operário, lenir a mão do agricultor, adubar o salário do professor, consolar os sem-terra e os sem-teto, mitigar a fome dos descamisados, distribuir leite, emprego, felicidade, cartão de crédito e estacionamento para todo mundo.

São tão inconfundíveis os sintomas de uma candidatura quanto os suspiros de uma paixão. O candidato anda pelas ruascurvado, a apertar mãos, a fazer bilu-bilu em criancinhas e a ligar o seu pródigo ventilador de promessas.

Não se conhece homem mais puro e mais bem-intencionado do que o candidato. Mas há um certo mecanismo que, num determinado instante entre a eleição e a posse, transforma o bom candidato num Ali Babá, num Arséne Lupin, num José Roberto Arruda. Eleito, o sujeito começa a enxergar o erário como a permissiva bolsa de uma “viúva” indefesa.

E há, para dourar essa predisposição de assédio do cofre, o singular conceito ibérico de que os “recursos públicos” pertencem “a quem chegar primeiro”. O dinheiro dos impostos seria um bem de propriedade difusa e incerta, “não é de uma pessoa, nem de ninguém”, logo, “se eu pegar um pouquinho pra mim não será um mal tão irreparável assim”…

Dono de um mandato, executivo ou legislativo, o candidato, agora titular de representação popular, manda os representados às favas e vai tratar do seu patrimônio. Nada menos do que “assustadora” a lógica dos beneficiários do “mensalão”, descrita pelo seu primeiro delator, Roberto Jefferson:

– Alguns parlamentares chegaram para mim e disseram: vocês não vão pegar? Por quê? Por acaso são “melhores” do que nós?

Implícita na interpelação, a plena consciência de que se tratava de uma atividade marginal, e que eles, os “mensalistas”, sentiam-se ultrajados com a recusa de colegas que se atreviam a “posar de honestos”. Aliás, dentro desta mesma lógica do crime, uma deputada de Rondônia já dissera a um governador, igualmente facinoroso:

– Você sabe que o mundo é assim… Nem você nem eu poderemos mudá-lo.

Há candidatos que se acham corretos, e que se contentam com “recompensas” menos explícitas. Que mal há em indicar uma pessoa de sua confiança para uma estatal? E que mal há em conseguir, na próxima eleição, que os seus impressos sejam produzidos lá na gráfica dessa empresa, que é pública mesmo…

É o tal “paradoxo do brasileiro”, de que nos fala o economista Roberto Gianetti da Fonseca: “Ninguém pactua com o mar de lama, o deboche e a vergonha da nossa vida pública e comunitária. O problema é que o resultado final é esse que está aí!”.

Quantas CPIs serão necessárias para acabar com o “mensalão”? Poderemos colecionar dezenas, mas a “moral vigente” em nada se modificará se os parlamentares continuarem a aceitar “negócios” para saltar de um partido para o outro.

Sem uma reforma política que moralize o mandato parlamentar e garanta a sua integridade, os “mensalões” mudarão de nome, mas não de “práxis”. Sem uma reforma que valorize a agremiação política – em que esta comprove sua “densidade eleitoral” e não seja um mero partido de aluguel –, o Brasil pós-mensalão será apenas um sonho.

Resta-nos saber se os que se tornaram viciados em “mesada” aceitam reformar toda a estrutura, ou, como de hábito, contentar-se-ão em retirar o sofá da sala.

GAUCHE de hamilton alves / florianópolis

Dificilmente, aparecerá na cena da poesia brasileira (por que não dizer mundial) um poema que comece ou se formule assim:

”Quando nasci um anjo torto,

Desses que vivem na sombra,

Me disse: – Vai, Carlos, ser gauche  na vida”.

Embora sejam um poema por si mesmos ou por sua constituição, esses três versos constituem uma parte (a inicial) de um poema maior, de Carlos Drummond de Andrade, com o título ”O poema das sete faces”.

Alguns versos de Drummond se caracterizam por serem absolutamente portadores de uma voz nova. Sem dúvida, criou um modelo de conceber o poema, que não ficava mais adstrito aos rigores da rima ou do metro, mas que tinham uma organização ou arquitetura próprias.

Esses versos, estampados na abertura desta crônica, bem refletem esse estilo simples e direto, não subordinado a qualquer princípio de versificação conhecido. É por excelência uma coisa livre, que vai direto ao tema ou ao objetivo ou ao que se propõe.

Drummond esmerou-se nessa maneira de dizer sem rodeios ou sem artifícios. Criou uma linguagem poética, que jamais foi praticada entre nós ou mesmo, que se saiba, por poetas de outros países.

Só para citar um exemplo dentre muitos: a concepção de “José”, que considero um dos mais belos poemas da poética mundial, segue esse feitio de originalidade, tanto no que concerne ao fundo quanto à forma. Sucede que, quando um grupo de experts (não tão experts assim) julgou os melhores poemas do século XX, promovido esse juri por um jornal brasileiro, “José” não figurou entre os dez melhores do mundo, tendo Fernando Pessoa contribuído com dois poemas e Eliot com mais dois na lista dos escolhidos, em detrimento do valor insuperável de “José”, que ultrapassa sua condição de poema para se constituir numa proposta metafísica das mais belas que conheço.

“José”, além do mais, era a nova fórmula revolucionária que mudou a cara da poética nacional. Quiça, como disse, mundial.

O poema passou a ser concebido como nunca dantes houvera sido. A fórmula drummondiana trazia uma sensível mudança no tratamento do verso, uma espécie de mensageira de uma outra estética, em que uma simples frase, lançada ao ar, trazia em si a chave para abrir as portas da beleza.

DIÁRIO de ILHÉU – da BRAVA à SOLIDÃO – por ewaldo schleder / florianópolis

Florianópolis. Floripa. Este, aliás, um diminutivo perfeito; ablação semântica já consagrada pelo uso popular. Tanto como Curita ou Sampa – e certamente há outras urbes assim abreviadas mundo afora. Alcunhas não; como cidade luz, cidade canção. Nem capitais marqueteirizadas: da uva, do café, das flores, da batata, do agrião, do quiabo, do xuxu. Tampouco aquelas a revelar uma certa privacidade, uma incerta posse íntima, a exemplo do Rio, Porto, Campo, Cabo.

Floripa. Hoje já posso pronunciá-la, depois de cruzá-la de ponta a ponta. Longe de ser uma proeza, menos, uma pequena conquista pessoal; de justificado apreço; fruto da estrada alegre, regada a trabalho e ócio, de olhar as curvas dos cerros contornadas pelo céu luminoso da tarde quente. Essa a cidade-ilha que – mal conheço – corro e descubro. Da Praia Brava, extremo norte, à Praia da Solidão, extremo sul.

Sinto já saudade daquela montanha da Brava. Mas que apego esse?! , se aqui na Solidão tem morros por todos os lados?! Daí você vê como a dinâmica da vida sempre nos traz algo novo: basta querer que o novo chegue, antes de tudo. E ele vem nas formas do surpreendente, do inesperado: ele – o novo – surge no horizonte, como luz no meio do túnel, não feito uma corda no raso do poço.

Andar com alguma coisa leve na cabeça, pés no chão e mapa nas mãos. Atenção ao vento e às estrelas. Driblar sempre a condição de turista, de consumidor inveterado, ir buscar tão-somente o sossego do espírito, o repouso do corpo: esta carcaça única, tão sacolejada, a pobre, ao longo desses anos-luz todos.

Administrar a displicência, disciplinar a indisciplina, estudar a quietude do vazio, escutar, deixar de interpretações para apenas ouvir esse mantra natural e selvagem: o barulho do mar; das ondas a quebrar nas dunas molhadas. Abrir bem os olhos, respirar fundo, encher de nada o todo, completando de tudo o nada.

.

praia da solidão.

ilustração do site. foto livre na internet.

URUBU por hamilton alves / florianópolis

As únicas pessoas conhecidas que elegeram o urubu como sua ave preferida, segundo sei, sou eu mesmo e o pintor (médico) Semy Braga, que veio de me confessar, há pouco, quando o visitei em seu atelier/moradia, tal preferência.

O urubu é uma ave feia. Ou conceitualmente  feia. E, pior, comedor de cadáveres de tudo.

Mas, afinal, o que é feio?

Não há, na verdade, um conceito acabado de feiúra.

À parte essa questão estética, o urubu tem lá, sim, sua beleza. O preto de sua cor já é algo que o distingue, como se, a exemplo das criaturas humanas, andasse sempre a rigor.

No que se destaca é no voo, notadamente sob o vento sul, em que se pode observar o equilíbrio com que se mantém ao sabor do vento, mesmo quando sopra mais forte.

Mostra-se, então, um verdadeiro bailarino.

Quando me revelou simpatia pelo urubu, Semy não justificou essa escolha. Podia (ou pode) ter lá suas razões.

Certa vez, em Curitiba, vi um bando de garotos esmolambados, nas proximidades da Praça Osório, chutar um urubu, que certamente devia ter se chocado com um daqueles prédios altos e caído ao chão.

De onde estava, na frente de um bar, tomando um refrigerante, berrei:

– Não matem o urubu!

Foi por meu berro ou outra razão qualquer, vi o bando se dispersar – e o urubu sair ileso da perseguição.

Estou para propor ao Semy a fundação de uma entidade, que tivesse o nome de Sociedade Amigos do Urubu (SAU), em que outras pessoas, ainda que não tivessem maior simpatia ou amizade por essa ave, poderiam se filiar.

A sociedade teria por finalidade se informar melhor sobre alguns dados referentes ao urubu, como, por exemplo, se sua reprodução vem sendo satisfatória.

Preocupa-me muito o fato de não vê-lo tão numeroso voando por aí.

Creio que o urubu é uma ave destinada à extinção muito próxima. A comida deve-lhe rarear. Não há tanta carniça que possa encontrar fácil. As cidades estão ficando excessivamente urbanizadas, acarretando a coleta de refugos aproveitados pelos urubus.

Toda uma série de fatores pode levar a isso.  A consequência inevitável seria a ausência do urubu de nosso espaço.

Perder de vista o urubu seria a última coisa que poderíamos desejar.

Vou me entender com o Semy para ouvi-lo sobre o assunto.

CIDADE SEM “CIVITAS” por sérgio da costa ramos / florianópolis

Será que a velha definição latina de cidade ainda está valendo? Civitas-civitatis. Reunião de cidadãos, nação, pátria, lugar onde se respeita o direito do cidadão. Aglomeração humana de certa importância, localizada em área geográfica circunscrita, com numerosas casas próximas entre si e destinadas à moradia ou a atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e outras não relacionadas com a exploração direta do solo.
Hoje, a “cidade moderna” vai perdendo o seu significado institucional. Avança sobre todos os solos e tornou-se vítima de outras atividades sinistras, como o furto, o roubo, o assassinato.

Eça de Queiróz não gostava das cidades, como deixou claro no seu libelo contra essa “criação antinatural”, em A Cidade e as Serras. Na comparação entre as selvas, a verde e a de pedra, o monóculo do escritor só tinha olhos para a primeira:

Na natureza, nunca se descobriria um contorno feio ou repetido. Nunca duas folhas de hera se assemelharam na verdura ou no recorte. Na cidade, pelo contrário, todos repetem servilmente a mesma casa, todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação.

Dizem os pragmáticos que esse hábito de condenar as cidades e enaltecer a natureza é apenas “uma licença para a poesia”, uma chispa para o gênio criador do homem romântico. A cidade é a “realidade” – que a maioria das pessoas acha “um Inferno”, embora recuse o Paraíso do meio do mato.

As pontes de Floripa foram concebidas para um fluxo de 40 mil veículos/dia. Já recebem mais de 80 mil. Trata-se do próprio Inferno (Ro)Dante…

É o progresso, dizem. E o homem vai atrás, cada vez mais absorvido por esse mundo de gases, óleos, resinas e misturas químicas que envenenam os poros, a alma, a mente.

Sempre que o ser humano aspirou pela paz de espírito procurou um jardim – pois se ressente de um, desde que foi expulso do Éden. Não por acaso os lugares de paz e meditação religiosas se assentam em jardins: o claustro dos mosteiros, os canteiros das casas muçulmanas, as fontes dos jardins hindus, símbolos do Paraíso.

Sempre que se deixou subjugar pela cidade, o homem perdeu o melhor dos seus dons – a capacidade de continuar humano, como lamentou Eça, contemplando as vinhas da Serra da Estrela:

– Os sentimentos mais genuinamente humanos se degeneram nas cidades. Nelas, os rostos humanos nunca se olham.

Muitas vezes, não se olham para não testemunhar a violência. Transita pela internet uma denúncia preocupante. A de que Floripa há muito deixou de ser um jardim de paz. A cada grupo de 100 mil habitantes, nada menos do que 3.926 já teriam sofrido perda patrimonial por furto – números que, proporcionalmente, equivaleriam aos desumanos prontuários do Rio e de São Paulo.

Dou a Floripa o benefício da dúvida, recusando-me a aceitar para a Ilha o mesmo e cruel destino de cidades que lhe são irmãs em beleza natural, como o Rio de Janeiro.

Mas o sinal vermelho está ligado. Assaltos no Sul e no Norte da Ilha. Até na doce Santo Antônio de Lisboa. Recentemente, ladrões aterrorizaram o bucólico “Caminho dos Açores”, para a suprema indignação do pioneiro, major Manoel Manso de Avelar, antigo senhor daquela pacífica freguesia.

É como se a graciosa vila açoriana tivesse perdido a inocência, como no romance de Edith Wharton –The Age of Innocence.

O Manoel Manso ameaça abdicar de sua mansuetude, descer de seu celestial mirante e “justiçar” os que ali perturbam a paz secular.

Um Manso “furioso”, condenando a omissão dos que deveriam zelar pela segurança pública:

– Ai de vós, autoridades inertes, mandatários sem voz de comando!

PRAEMONITIONE e SESSÃO À MEIA LUZ – de raymundo rolim / morretes.pr

Praemonitione

Primeiro desceu as escadas correndo feito um maluco. Depois andou oito quadras e meia sem respirar direito. Precisava a qualquer custo vencer os próprios limites. Titulara-se no trigésimo quinto e sexto idiomas – aramaico e dravídico – que passou a falar, escrever e arriscava-se mesmo a compor alguns poemas nessas línguas, que de tão antigas estavam quase a morrer. E já pensava numa nova loucura, quando algo lhe tocou o ombro. Estremeceu. Voltou-se lento, vagaroso, temeroso, na direção da mão que fendia o ar e se transfigurava numa coluna de fumaça branca. Pressentiu que dessa vez seria ele a reencarnação final de Copérnico, o novo papa; e não um outro!

Sessão à meia-luz

Sabia e muito bem, que teria de se apressar, se não quisesse chegar atrasado para a sessão de “desencarne”. Bem, pelo menos era este o nome que davam lá nas sessões, num bairro que ficava longe, na periferia. Chegou e foi logo convidado a ficar no canto esquerdo, ao lado da médium, que respirava de modo esquisito, pressionando o ar e bufando feio. Pediram-lhe que se sentasse e não cruzasse mãos ou pernas, que fechasse os olhos. Ficou um pouco ressabiado. Sabia das muitas histórias de “receber o santo”, e que nesse estágio, as pessoas faziam coisas horríveis, como girar, rolar no chão, falar com voz que não a própria…eu hem, pensou! Logo ele que se achava o próprio santo e de modo algum carecia de receber um outro -. E também, não era muito chegado a isso e não confiava em santo alheio a não ser no próprio. Possuía os seus, sabia-lhes os nomes, os milagres, data de canonização etc. e tal. Bem, já estava ali no escurinho mesmo, não custava fechar os olhos. E de certa forma, lhe fora gentilmente solicitado. Com aquelas velas fraquinhas, manteria uma frestinha, uma nesga de olhar a bisbilhotar o recinto, no caso de algum imprevisto. E foi o que fez. E aí, foi quando viu mãe Maria. Sabe-se lá por que, segurava e vinha com uma faca enorme para as suas bandas. O homem levantou, desatou a correr, derrubou muitas imagens de São Jorge e outras tantas de exus e outras que nem sabia quem ou o que eram. Disparou porta a fora. Tamanha inquietação não lhe permitiu reparar no bode preto que estava amarrado ao seu lado, resfolegando feio. Ele, o bode, era o objeto do desencarne e não ele, o convidado. Ficou para uma outra vez, uma outra sessão que ele sabia, de antemão, jamais estaria lá.

O QUE PODE HAVER POR TRÁS DA PERVERSIDADE – considerações sobre “O GATO PRETO” / por lucas paolo – são paulo

Dentre as inúmeras abordagens possíveis do conto “O Gato Preto” de Edgar Allan Poe, interessa-nos tratar aqui da ambiguidade do sentimento de culpa que o narrador demonstra ao longo do conto.

Começaremos apontando alguns pressupostos que guiarão esta abordagem. Em seu ensaio “A Filosofia da Composição” – trata da construção do poema “O Corvo”-, Poe diz: “É bastante óbvio que todo enredo, que mereça este nome, deve ser elaborado até o fim antes que o autor escreva uma só linha. Só tendo em vista, constantemente, o final da história é que podemos dar a um enredo seu indispensável ar de consequência, ou causa, fazendo com que os incidentes, e especialmente o tom, apontem, o tempo todo, para o desenvolvimento da intenção.” Portanto, podemos presumir que Poe, também em “O Gato Preto”, havia concebido todo o enredo antes de se pôr a escrever o conto, e que tendo em vista o direcionamento dos fatos, ele guiou sua escrita nas condições necessárias para se atingir determinado tom.

Mas qual seria esse tom em “O Gato Preto”? Obviamente o da perversidade. E seguindo a linha de raciocínio de Poe, podemos apontar o terreno do conto como sendo o do mistério ou da superstição.

Porém, a perversidade do narrador não traz consigo sentimento de culpa, apenas medo. Sinais de medo esses que, apesar de parecerem uma reação lógica ao terreno do mistério e da superstição, podem ocultar o intuito prévio de cometer o assassínio e o receio ou medo da condenação – da justiça do homem ou de Deus.

Para averiguar estas questões, podemos citar novamente um trecho de “A filosofia da composição”: “Duas coisas são, invariavelmente, necessárias – primeiro, uma certa dose de complexidade, ou, mais propriamente, de adaptação; e, em segundo lugar, uma certa dose de sugestão –  uma corrente oculta, mesmo que indefinida, de sentido. É esta última, em especial, que confere a uma obra de arte grande parte daquela riqueza (para usar um termo convincente da linguagem coloquial), que nós temos a tendência de confundir com o ideal”, ou seja, podemos supor que há neste conto, como em “O Corvo”, um toque de sugestão, de indefinição que ampliam o sentido. Investiguemos no conto o sentido do medo, da culpa e da perversidade que o autor tenta nos impingir.

Com relação ao assassinato da mulher, o narrador não demonstra em nenhum momento sinais de remorso. “Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo” – evidenciamos aqui que, após o furioso ato, o narrador não sente culpa, apenas preocupa-se em esconder os vestígios de seu crime. Assim, após emparedar o corpo, o narrador procura o gato e não o encontra, e mesmo com “o peso daquele assassínio” sobre sua alma, o narrador regozija-se com o sumiço do alvo primeiro de sua perversidade e consegue dormir tranquilo – “O monstro, aterrorizado, fugira para sempre de casa. Não tornaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava.”

O narrador procura dissimular culpa com relação às atrocidades cometidas com o gato, todavia essa culpa é vista por ele como pavor ou medo do animal, e pode ser entendida  como receio do narrador em assassinar a mulher e ser apanhado. “Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse.” – algum tempo após ter enforcado o gato, o narrador sente algo em relação ao terrível ato, mas este sentimento, claramente, não é remorso. Depois de determinado período, o narrador encontra outro gato, o qual substitui o anterior. Esse também acarreta maldade no personagem e em situações de proximidade o narrador relata o seguinte: “Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas sobretudo – apresso-me a confessá-lo -, pelo pavor extremo que o animal me despertava.”, somos levados a pensar que o que impede o narrador é um medo ou pavor, porém, podemos averiguar em outro trecho que, talvez, este medo esteja relacionado a outras questões –  “Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso -, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível – que minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!”. Lembrando que, na época em que, possivelmente, se situa o conto, a pena para alguns crimes era a forca, pode-se intuir um medo diferente no narrador do que um medo supersticioso do sobrenatural.

Portanto, no conto, o narrador comete um ato de inacreditável perversidade, este não é, como pudemos perceber, carregado de culpa e remorso, todavia o narrador carrega o conto de mistério e superstição – encarnados na figura emblemática do gato preto –, o que nos leva a crer que o assassinato da mulher não é, de forma alguma, premeditado e sim um consequência dos eventos nefastos e nebulosos que se relacionam com o gato. Porém, se for admitido, sem muitas presunções, que em Poe há uma corrente oculta correndo junto à trama tão detalhadamente elaborada, pode-se inferir que um outro sentido subcutâneo está presente na trama e que este dá uma “riqueza” especulativa ao conto que, com certeza, Poe desejava.

GALO, CABRA, URUBU, JEGUE, ETC. – por hamilton alves / florianópolis

Paulo Mendes Campos conta numa crônica que tinha um filho (hoje, certamente, será um adulto), que adorava bichos de todos os tipos e feitios. Quando acontecia de sair à rua com ele, surpreendia-lhe o fato de, desaparecido por alguns instantes, trazia consigo um siri, um papagaio, um passarinho qualquer, até ocorreu que certa vez trouxe (descobrindo não sabia onde) uma pequena tartaruga, que logo recebeu um nome de batismo do garoto. Com ela conviveu durante muito tempo até que um dia a tartaruga, para seu desespero, tinha desaparecido. Ficou inconsolável. Telefonou para a avó lhe perguntando como faria com a perda da tartaruga, se não havia jeito de lhe conseguir outra.

Com insetos era a mesma coisa. Tinha em caixas de todo o tipo alguns exemplares deles, principalmente borboletas.

O que bichos interessam hoje às crianças?

Lembro que, certa vez, os jornais de Nova York noticiaram que um garoto, quando viu uma vaca, ficou deslumbrado. Nunca imaginara que podia existir um bicho assim.                            Suponha-se se visse uma girafa, um elefante, uma zebra, seu espanto, certamente, seria bem maior.

As crianças das cidades populosas e modernas não têm mais como conviver com bichos, ainda que insignificantes do ponto de vista de suas proporções físicas.

Gato, cachorro, ainda dá para ter no ambiente doméstico.

Sempre quis ter um galo à volta de mim.

Uma vez, numa viagem a Orleães, vi um galo branco na estrada, parei o carro e saí para pegá-lo. Cerquei-o, mas pulou uma cerca e fugiu. Como era lindo! O poeta Augusto Frederico Schmidt, com quem troquei algumas cartas, três ou quatro, quando estava no auge de sua fama, não como poeta, mas como homem público, fora ministro de JK, possuía um galo branco esplêndido em sua casa.

A cabra, por exemplo, é o animal da minha paixão. As cabras conviveram muito de perto comigo na infância. Lembro-me que, quando caía chuva rala, baliam até mais não poder, amarradas com cordas em touceiras de capim. O balido de cabra tem um conteúdo de paz e purificação sem igual.

Sobre aves, é claro que o galo tem minha simpatia, mas o urubu (o nosso nunca assaz louvado urubu, ecologista emérito) leva meu voto. Pode ser feio, mas nenhuma outra ave faz melhor suas acrobacias aéreas (descobri há pouco que  é também da preferência do pintor Semy Braga).

E, para terminar, pensei certa vez em trazer do nordeste um jegue, que acho uma simpatia insuperável de animal.

Teríamos, de certo, muito que nos dizer em nossas horas neutras e silenciosas.

GRANDE OTELO por hamilton alves / florianópolis

Grande Otelo (ou Mário Prata, como fora registrado quando nasceu) foi dessas pessoas destinadas à glória. Não foi apenas um grande ator, no teatro ou no cinema, mas foi também um grande humorista. Formou com Oscarito uma dupla invencível nesse gênero que, sem dúvida alguma, exige um talento especial.

No cinema, fez vários filmes e em todos sempre se saiu com êxito. Mas marcou definitivamente sua presença na sétima arte fazendo o personagem principal de Macunaíma,  colhido da obra de Mário de Andrade, que, por sua vez, tornou-se um marco da literatura nacional.

Quando Orson Wells veio fazer um filme no Brasil, que acabou, por vários motivos, não dando certo (teve acessos presumidamente de loucura ou de manifestações de alcoolismo), notoriamente quando, hospedado no Copacabana Palace Hotel, o mais grãfino à época do Rio, jogou todos os móveis do quarto em que se hospedara, por manifesto mau gosto, segundo ele, pela janela, caindo dentro da piscina ou muito próximo, Grande Otelo foi sondado para fazer um dos papéis do filme. Orson (comentava-se) encantou-se com Otelo. Esse episódio (o do Hotel), dada a fama de Orson, só rendeu-lhe maior popularidade, pois deve ter alcançado destaque na imprensa mundial.

Tive dois momentos com Otelo. Um, no Rio, quando o encontrei numa das ruas do centro, num momento em que sua fama atingia as culminâncias. Não chegamos a trocar sequer um cumprimento. Nem me aproximei dele para tentar uma abordagem como jornalista profissional que era então.

O outro foi aqui mesmo na Ilha.

Otelo se preparava para entrar num  auditório de estação de rádio, que estava superlotado. Aguardava o sinal de entrada em cena perto de uma escadinha, que dava acesso ao palco.

Otelo não se mostrava bêbado, no sentido de cambalear ou revelar tal tipo de conduta. Mas rescendia a cachaça (ou álcool) por todos os poros.

Nem precisa dizer, foi entrar no palco e a platéia vir literalmente abaixo.

Saiu-se como de rotina: bem.

Encantou o público, como encantaria qualquer platéia.

Era um ator portentoso e versatilíssimo.

TAKE THE “A” TRAIN – por antonio menezes / são paulo

“Chuffa, chuffa, chuffa. Choo choo. Woo woo.”
Kurt Vonnegut Jr

“Por que os trens do Metrô não podem apitar como as locomotivas a vapor?” pensou Júlia enquanto esperava na plataforma. “Seria divertido”. Sorriu. De qualquer modo, quando se tem dezenove anos, e se está no primeiro ano da faculdade, pode-se perfeitamente pensar tais coisas. Como também esquecer o bilhete magnético nas páginas de um livro. E então ter que comprar outro, e logo reencontrar o primeiro e pensar: “Que tonta que eu sou! Agora tenho o bastante. Que bom!”

Na mesma plataforma, mas pelo menos dez minutos adiantado, estava Fábio. Mais velho, vestia um terno xadrez desalinhado, o jornal tentando escapar da pasta, o guarda-chuva portátil de prontidão. Fábio gostava de jazz e justamente naquele momento recordava uma de suas músicas favoritas: “Take The ‘A’ Train”, de Duke Ellington.

Fábio admirava o Metrô: sua racionalidade concreta de aço escovado; seu elegante e democrático piso de granito polido. Mesmo assim nunca lhe ocorreu associar uma coisa com a outra. Duke Ellington eram as noites de piano solo de sábado e as manhãs de domingo com a orquestra a todo volume; o Metrô era o cotidiano, de segunda a sexta, no que havia de mais imediato e permanente.

Fábio tinha ainda o curioso hábito de evitar as escadas rolantes. Não por medo. Certa vez perguntaram-lhe: “Por quê?” “Não sei. Não se deve evitar esse tipo de esforço”, respondeu. “E pelo menos nisso obedeço à minha cardiologista”, acrescentou. Daí enfrentava com resignação as longas escadarias. “Não sou melhor do que ninguém.” E até gostava desse exercício de paciência na contra-mão de toda pós-modernidade e suas decepções.

Finalmente, o trem chegou e ambos (e todos os demais) embarcaram. Júlia desceu na Sé, enquanto Fábio desceu na Paraíso para seguir até a Consolação. Também poderia ser o contrário (as vantagens da ficção) e os trens do Metrô poderiam de fato apitar como queria Júlia e terem a letra A e Duke Ellington como queria Fábio estar com Júlia. Se ao menos, também ele, pudesse encontrar um bilhete esquecido nas páginas de um livro, como uma flor.

VIÚVA ASSEDIADA por sérgio da costa ramos / florianópolis

A proprietária do dinheiro público é, também, pública mulher, muito assediada nesta época de pré-campanha: é a Viúva, que tem fama de ser rica e de ter a chave de um cofre recheado, por cujo conteúdo almejam todos os ordenadores de despesa, especialmente os que compram panetones.

Por ser público, entendem alguns dos chamados “representantes do povo”, o dinheiro é de todos – e de ninguém. É de quem chegar primeiro…

Sabendo que a impunidade é um direito muito “humano”, no Brasil, os arrecadadores de campanha assediam o cangote da Viúva, sequiosos por sugar-lhes a carótida – e sentir o inebriante perfume de mulher.

A Viúva é um sucesso. Fabrica um dinheiro sem dono, nem lastro, mas nem por isso inválido ou imprestável para os “tesoureiros dos partidos”.

Ela, a herdeira de todos os impostos, pode exibir várias formas, várias máscaras, vários disfarces, mas a sua bolsa é inconfundível. Ninguém resiste em afundar a mão naquela sacola mágica, tão generosa e tão elástica – pois de lá sempre vem uma boa pescaria.

A Viúva é mulher quase oblíqua, que os políticos cortejam de esguelha, pois não convém dar muito na vista – logo agora que a “Opinião Pública”, essa desmancha-prazer, anda de olho nos alcances e na insopitável “mão boba”. Os tribunais de contas – casas de políticos regenerados – gostariam de diminuir o assédio à dissimulada senhora, mas é sempre muito difícil controlar a volúpia dos necessitados de uma graninha para a campanha. Querem passar a mão na Viúva até mesmo com a autorização de uma lei futura – e bandida: a que regulamentará o “financiamento público de campanha”, mais uma brecha para enfraquecer o chamado último reduto das posses da assediada senhora.

Todo mundo quer transar com a Viúva para ver se das dobras do seu sutiã escorre aquele dinheiro leitoso, farto e sempre disponível. É só fazer o movimento de sucção e ir mamando. A teta da Viúva é tão pródiga quanto o úbere de uma vaca holandesa ou os seios da Gradisca, aquela sensual criatura de Fellini em seu Amarcord.

Dinheiro, principalmente o ganho biblicamente, com o suor do rosto humano, é gasto sempre com parcimônia, pois foi muito difícil de ganhar. Já o da Viúva pertence a um “câmbio” à parte. Quando burocratas das comissões de licitação abrem as chamadas “concorrências”, o câmbio geralmente é duplo, para a mesma moeda. O dinheiro da Viúva compra muito menos, pois para “ela” os preços são outros, muito mais caros e proibitivos.

Alguém está pagando por esse leite derramado, pois, como gostam de dizer os economistas da escola de Chicago, “não existe almoço grátis”, nem mamada (ou mamata) eleitoral sem um custo – o conhecido Custo Brasil.

Alguém está pagando a conta, mas esse alguém não tem cara. Ou como aquele velho ator, James Cagney, tem mil caras, que é a melhor forma de não ter nenhuma.

Ninguém, nem mesmo aqueles hábeis desenhistas da polícia, acostumados a dar vida ao rosto dos suspeitos, se arrisca a fazer o “retrato falado” desse desconhecido, o contribuinte, o marido oculto da Viúva.

Mas desconfio que ele pode ter a minha cara, leitor. Ou a sua.

Em qualquer hipótese, é a cara de um tolo.

OS CINCO SENTIDOS ( ANTIGO CONTO DE NATAL) – por zuleika dos reis / são paulo

– Papai Noel não veio…

– Veio, mas já foi embora.
-… não veio…

A voz desolada sobe, pequenina, e é assim recolhida por uma das janelas do sexto andar. No meio, a fala impiedosa.
O olhar, através da janela, percorre o musgo que recobre o muro do fundo do prédio, por onde subiu, com dificuldade, a pequenina voz, o muro por onde se alastra o verde úmido, com trilhas para formigas e outros insetos. Do lado oposto, janelas laterais se alongam ao sol.
OS PASSOS INVISÍVEIS.
Noventa graus à esquerda: os livros se aninham, calmos e distantes. Os passageiros. Papéis recolhidos nos envelopes e nas pastas repousam, por ora, do olhar que cotidianamente os vasculha em busca de indícios, em busca de respostas para as perguntas que a memória gostaria de esquecer.
AS CIDADES MEDIEVAIS.
… não veio…
A voz, retornando, mais pequena ainda, tentando  aceitar o fato irreversível: Papai Noel veio, mas, já foi embora.
As mãos pegam, ao acaso, o livro mais próximo. Na página, o dedo pousa de leve. ONTEM. A palavra salta, junto com a lembrança da outra, na língua incompreensível que, dos cinco, só Elisa conhece. No quarto permanece o cheiro dos pêssegos e na boca ainda o gosto do chocolate suíço, presente de Rubem.
Cento e oitenta graus. Lentamente, os olhos se erguem até se encontrarem no espelho: Ana vê o próprio reflexo. Onde o rosto de Daniel?
O ESPELHO.
Márcia, a louca de Daniel, em algum lugar… melhor não saber.
Elisa, perto do polo norte, onde nasceu Papai Noel.
Daniel, há algumas horas daqui,no solar diante do vale verde.
Rubem, do outro lado desta cidade.
Ana, os olhos no espelho onde nunca viu o rosto de Rubem, seu companheiro, seu amante.
Os dedos tateiam a superfície fria em busca da abertura por onde Alice passou para o Outro Lado.
OS CHAMADOS.
O vinho. As taças púrpuras. A boca de Daniel.
Em algum lugar, perto do polo norte, Elisa se lembra de que, há quase um ano, estava nesta cidade, com Rubem.
Em algum lugar… melhor não saber… Márcia… melhor não saber…
Há algumas horas daqui, Daniel tenta se lembrar, mas, também o rosto de Ana lhe escapa do espelho.
Do outro lado desta cidade, Rubem caminha; talvez entre num bar, para tomar um expresso; mentalmente procura uma palavra de encaixe perfeito no texto que a aguarda; quem sabe pense em Elisa cujo olhar, neste instante, se perde na neve, ou em Ana, que se lembra das formigas.
Aqui, os olhos já se desviaram do espelho.
ANTIGAMENTE, O MURO DOS FUNDOS DO PRÉDIO FOI BRANCO.Há muito tempo, também o musgo começou, verde e fresco.
A voz infantil não regressou. Dos outros cômodos do apartamento, o silêncio compacto como um monolito.
O quarto inteiro pulsa aqui do outro lado desta cidade há algumas horas no vale verde lá onde Márcia esteja perto do polo norte, onde nasceu Papai Noel.
Amanhã, quando ele estiver a caminho, de volta ao seu longínquo país, com a mesma roupa vermelha e a mesma barba branca, as infinitas pequenas formigas continuarão, para sempre, a percorrerem a trilha onde, certa vez, o muro dos fundos do prédio foi branco, antes que o musgo verde e fresco tomasse conta de tudo.

DOUTOR CAVALCANTI por hamilton alves / florianópolis

Dos médicos pediatras mais conhecidos ou mais populares ou mais respeitados profissionalmente ou mais procurados, a seu tempo, especialmente por pessoas pobres, o nome do  doutor Miguel Cavalcanti andava por toda parte.

Qualquer sinal de doença em criança, fosse o que fosse, uma amigdalite, asma brônquica, problemas intestinais, etc., acabava, inevitavelmente, no consultório do dr. Cavalcanti, ou era chamado às pressas em algum lugar da cidade, fosse onde fosse, para atender um cliente. Subia morro, ia nas favelas, não tinha lugar onde não pisasse seus santos pés, no combate a enfermidades terríveis, num tempo em que os recursos terapêuticos da medicina ainda engatinhavam. O doutor Cavalcanti tinha que inventar (ou criar) soluções.

Em uma palavra, o doutor Cavalcanti era humano da cabeça aos pés.

Era comunista e não sei se arrastava na sua ideologia também a idéia materialista, envolvendo a descrença na providência divina.

O dr. Cavalcanti era ele mesmo um santo e impossível imaginar que não tivesse alguma espécie de fé qualquer.

Seu comunismo talvez decorresse de se deparar inconformado com as clamorosas injustiças do mundo, ainda hoje existentes e nunca serão satisfatoriamente extirpadas, certamente.

O fato é que houve um tempo nesta cidade que o nome do dr. Cavalcanti andava de boca em  boca, como se fosse um demiurgo (ou mesmo um curandeiro contemplado com o dom da cura).

Era nortista, de algum daqueles Estados miseráveis do nordeste brasileiro, de onde veio para o sul, depois de fazer a Faculdade de Medicina no Rio.

Onde morou num quarto, dividindo-o com Rubem Braga, soube-o pouco depois que morreu por via de uma crônica em que o “Sabiá da Crônica” narra esse fato referido ao amigo “Cavalcanti”, “com quem morei num quarto aqui no Rio”.

Quando recém-casado, chamei o dr. Cavalcanti para atender um filho, o primogênito, atacado de amigdalite, com febrão de 40 graus. Era um modestíssimo funcionário público a esse tempo. Deve ter reparado pelo aspecto da casa de que socialmente era pouco menos que classe média.

Atendeu meu filho, receitou-lhe uma medicação, perguntou, a seguir, onde era o banheiro, lavou as mãos, enxugou-as, enquanto fui buscar o talão de cheques para pagar-lhe a consulta.

Procurei-o aqui, ali, por toda parte.

Notei que sumira, como o vento.

Esse era o humaníssimo dr. Cavalcanti, grande amigo de Rubem Braga.

S E M – por jorge lescano / são paulo

S  E  M

Para os meus Colaboradores

No livro póstumo Seis Propostas para o Próximo Milênio, do escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985) – série de palestras que não chegou a pronunciar nas Conferências Norton –, o autor refere que teria gostado de compilar uma antologia com os contos mais breves do mundo. Ilustra a idéia com a que se dá como a mais famosa das narrativas do escritor mexica-guatemalteco Augusto Monterroso (1921-2003):

O dinossauro

Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.

A intenção de Calvino se viu frustrada por não encontrar outras peças com a brevidade e qualidade desta obra prima.

O escritor brasileiro Luiz Arraes compôs 40 variações sobre o texto do mexicano em Tentando entender Monterroso. Na abertura deste livrinho (cabe no bolso da camisa), depois de citar O dinossauro, comenta que ele é tido como o conto mais curto jamais escrito, e afirma: Não é. O conto Nada,  de Raimundo Carrero, publicado na Antologia dos contos mínimos, merece esse título.

Não conheço esta obra, contudo, pelo contexto em que está inserida, imagino que se trate de um conto concreto, isto é,  título e conto são uno:

nada

Se assim não for, proponho a minha leitura como re-escrita dele ou variação do tema.

As bem humoradas variações de Arraes me estimularam a competir com a criatividade destes autores. Creio que consegui escrever o conto mais breve em pelo menos duas línguas (literaturas): portuguesa, castelhana:

S E M

S I N

A sonoridade produzida na leitura corrida das duas versões é um benefício extra que o aproxima da poesia. Valerá a pena tentar o registro de SEM no Livro dos Recordes?

O Dr. Marcelo Pasquali qualifica SEM tão perfeito quanto Jorge Luís Borges A invenção de Morel, do seu amigo Adolfo Bioy Casares, e diagnostica com precisão de goleador: a obra está irremediavelmente excluída da competição Nobel pois não pode ser traduzida para o sueco, requisito sine qua non.

A dileta amiga do autor, Dra. Carminda André, depois de algumas considerações sobre certos aspectos da obra em pauta, informa que hordas de esclarecidos leitores já estão fazendo circular um abaixo assinado em favor da inclusão da mesma no Guinness. A autor agradece e se dispõe a participar desinteressadamente dessa democrática empreitada em favor das Belas Letras Pátrias.

Contagiado pelo espírito da coisa, o Prof. Abrahão Freitas adaptou antigo slogan das célebres Pílulas (não pastilhas, cápsulas, drágeas, comprimidos) do Dr. Ross: Chiquitito pero cumplidor!.

Do seu conto SEM/SIN se pode comentar que além da sonoridade em qualquer idioma, mesmo que não tenha qualquer sentido em chinês (a conferir), essa sonoridade, por certo, provocará impressão especial, afirma o poeta e escritor (sic!) Raul Longo, e aproveita o ensejo para aditar uma anedota sobre seu amigo Luiz Arraes.

Grave falha na versão anterior de SEM, aponta o Dr. Maurício Ayer, e diz que SIN é pecado, culpa, maldade, transgressão, falta, ofensa, na língua da rainha Vitória. Nada mal para um monossílabo!

O Leitor Anônimo (como tal assina) envia sua colaboração que, para dizer o menos, sofre de algum didatismo, como os filmes norte-americanos que nos impingem moralismo e seu Código Penal sob o pretexto de cinema onde sempre triunfa o Advogado de Defesa, exceto nas histórias de Al Capone, graças a Deus. Incluem-se aqui seus esclarecimentos apenas para não trair o espírito democrático dominante na Comunidade Internacional, da qual o autor de SEM pretende vir a fazer parte assim que descobrir o que seja ela: SEM, tem o mesmo som do número CEM no idioma da Martona, Melhor Futebolista do Mundo em 2009, versão venusiana, pela quarta vez consecutiva. SIN, nome do Celeste Império na língua de Kung-Fu-Tzu e  Shih  Huang-ti.

Anos atrás Raul Longo recebeu uma breve carta da Bélgica. Uma estudante de lingüística procura hospedagem em Florianópolis para residir durante o tempo que dure sua bolsa de estudos. Ela assina Sien, a grafia soa como o número 100 em castelhano. Agora Raul, Sien e a carta são parte de uma narração em andamento. Atualmente, o autor desta resenha traduz um conto que tem a Bélgica como ponto de partida, na carta de Sien acredita ver certa continuidade temática. Na literatura toda coincidência é controlada, construída, matuta enquanto levanta andaimes sem planta do edifício, a menos que o edifício seja de andaimes: textos desconexos de um diário ideal, que de fato registre o processo mental do autor. Sente-se como o personagem de Jarry, que foi estudar francês e acabou aprendendo belga. Sien esclarece que seu nome se pronuncia Sim e não sabe explicar porque.

Rogério Rodrigues, apesar de ator e dublador confessa ter ficado Sem palavras e cumprimenta o autor respeitosa se não ironicamente. Sua mudez não é empecilho para que continuemos pois até agora ninguém sabe como isto vai acabar!

Na biblioteca da escritora Zuleika dos Reis encontro o livro com o anacrônico título Os cem menores contos brasileiros do século; São Paulo, Ateliê Editorial, 2004. A página 79 deste volume contém o conto de Raimundo Carrero citado por Luiz Arraes, cujo título correto é Quatro Letras. Ei-lo:

Quatro letras

Nada.

Assim sendo, parece que a minha versão de nada é mais breve e, obviamente, não pode nem deve ser considerada plágio, apenas variação do mesmo tema (ou da ausência dele).

Houve um erro deliberado, piada que não funcionou, e um terço da extensão do conto mais curto do mundo teve que ser sacrificado, o que ganhou em brevidade perdeu em intensidade. A atriz Marcela Salzstein, que ainda não leu estas notas, diz: pode ser o mais curto mas tem a maior das apresentações.

O autor desconfia que existe uma sutil relação de motivos ou sub motivos entre todos os livros da biblioteca universal; por que alguns deles coincidem em determinado texto? Para relaxar, decide ler um  conto. Há uma  mulher que mente  através de  uma fotografia:  Oh, eu sei –disse  ela pegando a foto

com as duas mãos. — Gosta? Faz tanto tempo. Estou na Bélgica, fazendo Wagner. A obra é de Ricardo Piglia, título: O fim da viagem. O conto que está traduzindo é de Marco Denevi, também autor argentino, o triângulo amoroso parodia o humor melancólico de Tchekhov, a anedota acontece numa viagem de Ostende a Bruxelas. (Enviar cópia da tradução aos amigos para que não me acusem de maneirista.) Os escritos dormiam espalhados numa teia invisível, por que Georgie os reúne precisamente agora?, quer saber o homem de Praga. Narra-se uma viagem ou um crime, que outra coisa se pode narrar?, diz Piglia. Ler é muito perigoso. Se viver é fatal, a literatura é arte de alto risco. Flecha em busca do alvo no escuro. Deve-se escrever segundo a lógica secreta da vida, a estrutura interna do erro, as bifurcações da linguagem. Evitar toda aparência de realidade. Depois acrescentar a carta, a viagem e a residência da bolsista em Florianópolis. O resultado será diverso do realismo: o cotidiano aperfeiçoado pela ficção, fato autônomo, auto-suficiente e mais duradouro que o evento histórico, tal o objeto estético.

O Dr. Marcelo tece a crítica minuciosamente, como a aranha tece seu ninho. Recupera antigas conversas com o autor na calma e clara intimidade do seu estúdio (dele, Dr. Marcelo Pasquali) na rua Lovegreen. Traz à baila o sisudo realista Tolstoi, o alegre mago Joyce, o irônico e sutil Tchekhov, o mirabolante Macedonio. O escriba receia que seu ego esfarele sob tal massagem. Subitamente lembra que Bustos Domecq participou do último encontro e sorri a meia boca.

Na versão anterior subsistem resíduos de instâncias eliminadas na presente, reconhece o autor, embora a Dra. Carminda André afirme não perceber diferenças entre uma e outra. Ele atribui sua confusão a distrações, esquecimentos, trocas inadvertidas e suspeita sintomas de senilidade (precoce, quer acreditar). As aliterações podem ser um aviso. Sem ser hipocondríaco admite que a freqüência desses percalços deveria merecer mais atenção de sua parte. Promete-se que esta será a penúltima versão definitiva da obra, que de simples conto está se transformando em internovelet, gênero precário no seu juízo, caso exista.

Os comentários contaminam o enredo, modificam a trama. A narrativa seria urdida com os e-mails supracitados, a síntese da carta postada na Bélgica e as confidências de Raul pela internet. Suspeitamos um romance truncado entre a moça de cabelos de linho e o poeta que lhe deu albergue. Ela seria tímida, pálida e silenciosa, a ele nada custa imaginá-lo alto, esguio, belas madeixas negras a se debruçar sobre a fronte trigueira, olhar melancólico, como se já conhecesse o destino que lhe está reservado. O caso teria acontecido à beira-mar. No crepúsculo vespertino, Sim, translúcido cristal de Flandres, esvai-se, deixa em pós de si aura de tulipas. O resto é silêncio, rubrica o inglês em rubro.

Se vale a pena a poesia SEM ser registrada no Guinessssss?, indaga Joana Toda Pura, com cerveja!!!!!! kkkkkkk, responde. Promete ficar torcendo pelo Jorjão e se despede Feliz com sua visita. Bjs.

Atenção!,o computador acusa nova mensagem. Leitor retardatário propõe um conto ainda menor que SEM: NÓ. Assim,  não faltará quem sugira E (Y) como narrativa. Antes, arquivar o tema.

Continuam chegando insistentes contribuições (mais uma, de Lucas Paolo). Ele diz que “ “ superaria E (Y) em brevidade. Reproduzimos a proposta para não trair o sistema desta obra, contudo, o leitor atento poderá perceber facilmente que além de ser maior (três toques no teclado), viola a poética de SEM, ao tempo que cria novo sistema ou temática (do silêncio expressivo, pode-se dizer). Grato, L.P.

Agora, CHEGA! Publique-se!

CONVERSA DE HOMEM E MULHER por hamilton alves / florianópolis

Acho curioso quando um homem e uma mulher, casados, amantes, namorados ou amigos se defrontam frente à frente em qualquer lugar, num bar, num restaurante, num café ou outro semelhante com esse propósito de por as coisas que têm para se dizer em pratos limpos. Ou que não seja isso, mas para confrontar idéias ou até mesmo dificuldades que possam ter em qualquer plano da vida.

Não só é apenas curioso, mas sem dúvida há um certo fascínio nisso.

Hoje, à tarde, por exemplo, enquanto numa mesa próxima de um desses casais deglutia um lanche, fiquei observando os dois, ele mais do que ela, que estava de costas para mim. Por isso, me dificultava acompanhar a expressão de seu rosto. Me pareceu tratar-se de assunto que revestia alguma seriedade pelo modo como o homem franzia o sobrecenho, como a olhava longamente através das lentes dos óculos para de vez em quando por o olhar em cima da mesa, onde ficava bolindo com uma coisa ou outra, como se assim quisesse pesar ou encontrar o rumo para o que dizia. Enquanto ela me parecia expectante ou atenta ao desenrolar do discurso.

De qualquer modo, mostrava-se ele mais palrador do que ela.

De que assunto tratavam?

Havia expressões, como conseguia ouvir uma que outra, que compõem qualquer papo, seja de que natureza for, como, por exemplo: “o problema é o seguinte” – dizia ele, a certa hora.

Erguia os olhos, contemplava a cara da mulher.

Parecia convencido de toda a verdade de suas palavras. Um homem ou uma mulher traem, sem querer, tantas vezes, aquilo que querem que assuma aos olhos do outro um tom de autenticidade. Ou de honestidade. Nunca somos rigorosamente verdadeiros ou honestos no que dizemos a outras pessoas em qualquer circunstância.

Mas aquele homem, ao dirigir-se a sua interlocutora, me parecia que estava absolutamente convencido de que tudo que dizia era palpável, tanto quanto a luz do sol.

– Por essa luz que nos ilumina estou sendo verdadeiro. – parecia dizer.

Como bem o reparava, tinha o dom de imprimir aos seus traços fisionômicos uma confiança absoluta.

Quando me ergui de meu canto, andei alguns passos. Voltei-me para ver o rosto da mulher. Parecia-me dessas criaturas simplórias, que engolem qualquer lero-lero.

Ou estaria muito enganado.

Mas mais que tudo, valeu-me o espetáculo do que vira, desse encontro ou desencontro de duas almas num bar, num restaurante, num café ou em qualquer lugar desse tipo.

FAMOSAS e FORMOSAS – por sérgio da costa ramos / florianópolis

Essa volúpia de ser bela e famosa está levando as mulheres a uma atitude robocop. Claro, beleza é fundamental, já dizia aquele decreto poético de Vinícius de Moraes.

Mas convém não exagerar. Parece haver entre as mulheres jovens – e entre as nem tão jovens assim – um compromisso “mortal” com a aparência. A qualquer preço, mesmo ao custo da perda de identidade. Elas admitem metamorfoses estéticas que as transformem até mesmo em outras pessoas, desde que sejam belas.

E ninguém quer ser a Susan Sontag ou a Clarice Lispector, mulheres belíssimas, mas, antes de tudo, “mulheres-cabeça”.

No máximo, aspiram ser apresentadoras de tevê, como Adriane Galisteu ou Luciana Gimenez.

Tudo começa com um peito novo. Depois, vem uma lipo na barriga, um bumbum novo, um lábio a la Angelina Jolie (ou a Brigitte Bardot nos tempos idos) e pronto: uma versão feminina de Frankenstein estará em gestação.

Como a Miss Brasil de poucos anos atrás: Juliana Dornelles Borges, gaúcha de 22 anos, metro e oitenta de altura e confessas 20 plásticas. Ela própria já nem sabia se era Juliana ou Anajúlia. Ou se, dentro do seio turbinado com 250 ml de silicone ainda batia um coração. A moça só confirmava ter feito “duas dezenas de intervenções cirúrgicas” para ficar com a forma que hoje exibe.

Ora, nem Mary Shelley, a criadora de Frankenstein, teria tido ideia mais “reformadora”, aplicando em sua humana besta nada menos do que 20 alterações no projeto original.

Primeiro, Juliana corrigiu suas orelhas de abano. E o orgulhoso autor da reforma geral, o cirurgião Almir Moojen Nácul, foi enumerando as benfeitorias que acumulou na cliente: colocação de 250 ml de silicone em cada um dos seios; lipoaspiração do abdômen, alta cintura e costas; remoção, via lipo, de gorduras localizadas acima das nádegas; extração de três sinais do corpo e do rosto; preenchimento de “clareiras” em regiões de tecido mole por substâncias siliconadas; escultura com silicone para preenchimento das maçãs do rosto, visando torná-las mais pronunciadas; modelação do queixo, pelo mesmo método, para torná-lo arredondado; preenchimento da linha que contorna a mandíbula, para acentuar a separação entre rosto e pescoço; e recheio do lábio superior, par torná-lo mais carnudo – ufa!

Juliana ainda se viu na obrigação de perder peso e afinar a cintura. Com um novo rosto e um par de seios “zerinho”, a robô resultante pôde, afinal, comemorar o título de Miss Brasil com sua supermamãe.

Em vez de Exupéry, Juliana lê, provavelmente, a revista Mecânica Popular. Ou, num arroubo de sofisticação, Expedição ao Planeta Terra e Odisseia no Espaço, de Arthur C. Clarke, o “Exupéry” da sciece fiction.

A nova valorização dos seios grandes não partiu da Associação de Bebês Lactentes, nem da multinacional Parmalat ou de Anita Ekberg, a “peituda” feliniana de A Doce Vida. Partiu de um novo senso estético que reclama mulheres mais cheinhas, assim como as Maja de Velázquez ou as gordinhas de Peter Paul Rubens, o gênio holandês das mulheres opulentas.

Também eu saudei a redescoberta do seio nos desfiles de modas, com as “taças mais cheias” de Gisele Bündchen e Ana Cláudia Michels. Mas está claro que, nesta matéria, há espaço para as explicações de Freud: de tanto se sentir perdida e insegura, a humanidade está precisando de um consolo “oral”, o seio materno.

Inventor do silicone em 1904 –embora com outros propósitos –, o médico inglês Kipping jamais imaginaria que a principal utilidade de seu invento seria adubar essa plantação de melões em hortas planas.

RIQUEZA por hamilton alves / florianópolis

O homem morava só numa rua estreita, numa casa de madeira, pintada de azul, com detalhes em branco (os beirais eram brancos) e parecia ser plenamente feliz.

Para configurar melhor seu patrimônio, possuía duas cabras e um cavalo, de que se servia para puxar uma carreta pequena, com a qual vendia uma ou outra coisa (latas de bebidas e papelão), com que melhorava sua parca renda, que era constituída de uma pensão modesta.

De todas as casas vizinhas, a dele era a mais simples. Tinha um quarto, um banheiro e sala e cozinha conjugados.

– Onde estão suas cabras?

– No pasto aqui perto.

– E o cavalo?

– Também está lá.

– Você dá água para o cavalo e para as cabras?

Fiz-lhe essa pergunta porque sabia que era meio desligado.

– Acabei de dar água para eles.

O cavalo e as cabras, recolhia-os ao entrar da noite numa pequena estrebaria, que construiu ao lado da casa – e que, como fiquei sabendo, tem sido motivo de protestos dos vizinhos, devido ao cheiro que emana do local.

A casa era cercada de objetos que vendia (papelão e latas de bebidas).

Unira-se a uma senhora já de idade (mais velha que ele) para ter uma companhia. Mas o deixou por causa de seus modos de vida, segundo  confessou a pessoas amigas.

Ao que se notava, no contato com ele, ter ou não uma companheira era-lhe indiferente.

Era um sábado quando o entrevistei, indo e vindo de dentro de casa, para onde levava uns pacotes de compras para se abastecer.

Sem que lhe formulasse qualquer pergunta, confessou-me que vai vender as cabras.

Quis saber como foram parar com ele.

– Tinha uma cabrinha que deu cria, com dois cabritos.

– E o cavalo, o que pretende fazer com

ele?

– O cavalo é para puxar a carreta.

Deduzi que um homem que possui duas cabras e um cavalo, no mundo de hoje, de que mais precisará?

A MALA DO MALA por charles farias / são luis.ma

Pescando na Internet coisas que meus seis leitores (um de Bora-Bora, dois de Oeiras, no Piauí, dois de Icó, Ceará e minha querida mãezinha) não têm tempo de ir buscar, achei a matéria que transcrevo agora: “O endereço Is this Your Luggage mostra os looks de gente que perdeu a mala e não se preocupou em buscar. O blogueiro Luna Laboo arremata valises não reclamadas e publica na rede o guarda-roupa alheio.”

Lembrei-me do mais recente amigo de infância que conheci, o Elesbão “Podeixá”. Tem este apelido herdado de sua profissão: carregador de malas no Aeroporto de Brasília. Era com esta frase que o estabanado profissional pedia para carregar as bagagens dos incautos que aterrissavam na Capital dos Sonhos (deles, claro!).

Numa bela manhã de sol, numa de minhas obrigatórias escalas pelo Planalto Central, resolvi tomar o último café no Brasil, ali no Palheta, antes de continuar meu vôo para o exterior (é, amigo, quer queiram quer não, Paraguai ainda é deles, os paraguaios) quando vejo Elesbão. Foi logo segurando minha Vuitton que sempre levo a tiracolo e dizendo: Pódeixá, que carrego pra “vocelência”. Iniciamos o diálogo que se segue:

– Aê, Elesbão, tá me desconhecendo, mermão? Falei tirando meu Paco Rabanne da cara.

– Nãããããoooo!!! Charlão??? Vem de onde? Ta indo prá onde? Sim, porque daqui tu queres é distância, pelo que te conheço. Comunista como és…

– Não. Não sou mais comunista, não. Derrubei meu muro ideológico. Dobrei em quatro minhas cortinas de ferro. Mas a distância…Bem, ainda a quero. È só uma escala. Vou ao Paraguai. Comprinhas para o final do ano.

– Sei. Vuitton, Paco Rabanne. Versace para madame Charlão. Então tens tempo para batermos um papo?

– Tenho, sim. O avião entrou em conserto e não sei quando me chamarão.

– Então estás só no avião?

– Não. Tem mais dois passageiros. Um que está vindo da embaixada do Brasil em Honduras, um tal de Zapata, Zapatalaia, Zé Issua Laia, sei lá, e vai pedir asilo em outra embaixada do “Cara”, e uma zinha dona de um puteiro pras banda de Currais Novos, no Rio Grande do Norte. Mas diga lá, o que tem feito, além de carregar malas no aeroporto?

– CBF.

– Do Havelange, do Teixeira?

– Qual! Quem sou eu, um pobre torcedor do Vasco. No máximo junto com o Miranda…

– CBF é o quê?

– Confusão de Bagagens e outras Fuleragens…

– Seja mais explícito, Elesbão.

– Esse negócio de explícito só conheço sexo. Mas vou ser mais claro. É o seguinte: Aqui no aeroporto tem mais autoridade que no Congresso. Eles chegam na terça e na quinta já estão de volta. Usam mais o saguão do aeroporto que seus gabinetes. Fazem tanta confusão com as bagagens que igual só vi na Constituinte, só sobra pra nós. Chegam a esquecer malas e mais malas no saguão. Então nós, da CBF, pegamos as malas e levamos prum cafôfo que temos em Ceilândia. Lá aguardamos a reclamação, que chamamos, só de fuleragem, de “um rigoroso inquérito”. Quando há o tal “rigoroso inquérito” aí devolvemos, com as desculpas que “eles” nos ensinam diariamente: “não sabíamos, não lembramos, não sabemos do que se trata, deve ter sido nossa secretária, estão usando politicamente o caso, não assinamos isto”, estas coisas. Mas, sem antes fazermos o nosso próprio “rigoroso inquérito”, ou seja o baculejo do que tem lá dentro.

– Ôps! Então deves ter umas boas histórias pra contar…

– Sô! Se tenho… Um dia um Zinho lá esqueceu uma mala cheia das “verdinhas”, do “alface” das “Tomás Jefferson”…

– Dólar?

– Fala baixo.

– Devolveram?

– Não. Tamos aguardando o Barbosinha, aquele do STF, julgar o caso. Se ele for condenado nós devolveremos. Se for absolvido, nós repartiremos pelos sócios da CBF, assim teremos cem anos de perdão…

– E o Sarney?

– Esqueceu uma 007…

– Fala. O que tinha dentro? Elesbão? Volta aqui, Elesbão. Peraí, cara. Diz só pra mim…

– Tá. Umas pastas.

– O quê continham?

– Papéis.

– O quê tinha escrito nas capas?

Elesbão, sussurrando no meu ouvido: “DÊ Ó ESSE ESSE I Ê S”

– De quem? Elesbão? Volta aqui, rapaz. Pelamordedeus, volta…

Jamais reencontrei Elesbão. Tenho sempre recebido cartões postais dele. De Las Vegas, Saint Tropez, Punta D’Leste de Maldonado, Cancún… É, acho que esta ele devolveu sem ser preciso um “rigoroso inquérito”.

CARNES e APERITIVOS por sérgio da costa ramos / florianópolis

Festa dita pagã, o Carná é carne. Ensaios nas escolas de samba e gritos de Carnaval são os aperitivos. E a eleição das Rainhas e suas principescas mulatas é o bota-gosto. Nos salões e nas churrasqueiras, a comida está na brasa, no maislato dos sentidos.
É a permissão para transgredir quase todos os códigos, com a promessa de uma remissão feita de cinzas, na quarta-feira.

No primeiro dia da Quaresma, o Todo Poderoso chama suas ovelhas tresmalhadas e as unge com as cinzas purificadoras, que esterilizam o germe da devassidão, entranhado na carne. Começa então o grande jejum, especialmente de carne vermelha – a preferida de todos os churrascos dominicais.

Quem nunca abusou da carne num domingo pré-carnavalesco, que atire a primeira “demão” de sal grosso. Dizem que o diabo adora uma picanha mal passada, temperada com o sal de Sodoma, o mesmo sal que petrificou a mulher de Ló – aquela que, morrendo de curiosidade, não podia “olhar pra trás”.

Isso não quer dizer muita coisa, a não ser que boa parte da humanidade mantém uma certa intimidade com o Tinhoso, quando as carnes liberam aquele cheirinho irresistível, que se desprende das brasas e domina todos os ambientes e todos os palatos.

Irônico como todo demo (não confundir com o partido político), o próprio “Marrom que fuça” descamba para a galhofa:

– Mais cinzas na tal quarta-feira depois da festa? Nada disso. Tudo o que os homens precisam é de mais “carvão”. Que é pra picanha ficar um pouco mais passada. Afinal, nem todo mundo é vampiro, como eu…

Vendo as fotos da grande anarquia nos jornais, chegaremos todos à óbvia conclusão de que o Carnaval é um “espeto corrido”: nele, a carne se revela nua e crua na churrasqueira dos bailes. A carne dança. Avança. Balança. Provoca. Revela. Convida. A carne abunda na vitrine frigorificada do Carnaval, livre das amarras morais e entregue aos “radicais livres” da devassidão.

“A carne é fraca” – já descobrira o apóstolo Matheus, provavelmente na madrugada de uma terça-feira gorda, entre Zara e Betsabá – foliãs que encontrou no Grande Gala de Herodes…

O tríduo que se instalará no dia 13 é, antes de tudo, uma improvável estatística do IBGE: nele não há desemprego, nem déficit habitacional, nem inadimplência ou excesso de cáries. O que há é a almejada felicidade coletiva, como se o Brasil, num passe de mágica, amanhecesse transformado nas Ilhas de Thomas Morus e Campanella – dois conhecidos endereços de todas as boas utopias.

Fora o ranger de dentes entre as escolas de samba na hora da apuração dos votos, o Carnaval quase não enfrenta discórdias. Ao contrário, Momo é um “pacificador”.

O Carná é um claro armistício. É anárquico, mas não prega a luta de classes, antes as aproxima e entrelaça. Pode até ironizar a autoridade constituída num bloco de sujo. Mas não conspira contra o Estado. “Intica” com o governo, mas não organiza passeatas contra os Palácios dos mandatários.

Na Quaresma, a festa se transforma em penitência. Bem me lembro da semana de “cinzas” no Colégio Catarinense, anos 1960. O venerando padre Werner ouvindo confissões, corcunda e exausto – um “vovô Gepeto” lidando com os pequenos Pinóquios.

Intrigava-me o fato de que o padre se interessava mais pela quantidade do que pela qualidade do delito “pecatorum”. Exigia detalhes estatísticos dos pecados cometidos em nome da lascívia:

– Quantas “vezes”, meu filho?

Os pequenos penitentes, reféns carnavalescos dos hormônios de Onã, o bárbaro, reduziam drasticamente os “juros” daquela operação:

– Uma vez só, seu padre…

A absolvição saía barato. Por meia dúzia de Ave-Marias deixávamos a condição de pequenos Satãs para ingressar no Paraíso dos coroinhas da Cruzada Eucarística.

O Anão da Catedral – por tonicato miranda / curitiba

NÃO SABE DIZER QUANDO TUDO COMEÇOU, mas lembra que aquela idéia lhe ocorreu numa tarde ensolarada, dois anos atrás. Como uma sezão incontrolável, a idéia brotou na cachimônia, criou corpo, enraizou-se, tomando conta da sua vontade. Era preciso levá-la até o fim. E ele assim o fez.

Tinha algo a ver com sua estatura e as pontadas sarcásticas que lhe dirigiam as pessoas. Agora que a idéia virara realidade sentia-se bem; vivia um sentimento de vingança aprazível e um ar superior. Apalpava o próprio fêmur e sentia que crescia, junto com toda sua espinha dorsal. Imaginava-se com dois metros de altura, até mais. Talvez quinze; não poderia dizer ao certo.

Quando aquela idéia lhe tomou de assalto ainda tinha vergonha de seus cento e dez centímetros de altura. A idéia era simples. Ao olhar a primeira vez lá para o alto viu que os anjos que ali estavam deveriam ter sua altura. Tudo estava ligado a esta breve constatação.

No dia seguinte, como mais um, atravessou a praça, cruzou a rua em miúdos passos, entrou na Catedral. Dissimulando mesmo sem precisar procurou observar a arquitetura interna do templo, os desvãos da nave da igreja, na busca de detalhes e de uma escada para o alto. Cruzou a passarela situada em frente à imagem do Cristo ao fundo, benzeu-se, realizando breve genuflexão com seu joelho esquerdo, caminhando em seguida até o canto direito da igreja.

Esteve por menos de uma hora ali dentro. Às seis da tarde voltou. Pôde perceber que a catedral cerrava suas portas às dezenove horas. Saiu dali, passou numa papelaria do outro lado da rua, comprou uma agenda. Durante duas semanas anotou cuidadosamente todos os hábitos dos fiéis, do pároco, dos mendigos e de todos que penetravam regularmente naquela Casa do Senhor.

Com um amigo artista plástico que trabalhava no Solar do Barão, espaço cultural de formação e exposição de trabalhos de gravura e artes plásticas de Curitiba, obteve informações sobre como realizar um curso de escultura em pedra. Passou a frequentá-lo.

Em casa ficava horas e horas nu, em frente ao espelho, desenhando-se. Não saberia calcular quanto gastou com papéis e lápis especiais. Embora aquilo estivesse lapidando-lhe o parco salário, não havia mais como abandonar a idéia.

O primeiro molde, após a conclusão do curso de escultura, até que não ficara de todo mal. Via-se que progredira. Não se reprimia. Dizia de si para si que estava realmente ficando bom. Seu quarto há muito já apresentava nova fisionomia: estava uma loucura. Eram papéis e papéis espalhados pelo chão; pregados nas paredes; e até no teto, sobre a cama. O tema, sempre o mesmo: ele. Ele nu, do primeiro ao centésimo décimo centímetro. Junto a tudo isso, pedaços e pedaços de mãos, pernas, meia-bundas, rostos. Eram pedaços de orelhas, narizes etc. Todos esculpidos em barro.

Suas mãos já haviam criado calos e uma decisão tornara-se inadiável: era preciso mudar para uma chácara. Ia começar a fase mais difícil: tinha de fazer uma peça em tamanho natural, e de pedra. Antes, porém, era necessário fotografar o modelo. Isto é, a escultura original.

Assim, um ano e meio após aquela idéia, adentrou a igreja, oito minutos antes de ela fechar, numa tarde cinzenta de Abril, escondendo-se debaixo de uma mesa onde são acesas lamparinas e velas para Nossa Senhora Aparecida. Juntou quatro oratórios em linha, encostou a mesa à parede e aquietou-se. Chegou a rezar uma Ave-Maria, misturando desculpas e pedido de auxílio à sua intenção profana. De onde estava podia perceber parcialmente o movimento no interior do templo e considerava que sua segurança somente estaria afetada se alguém afastasse um dos oratórios. Ficou ali por mais de duas horas.

Caminhando em direção ao altar principal da igreja virou-se e olhou para cima, em direção ao grande órgão lá no alto. Certamente estava ali a passagem para os níveis acima dos balcões da catedral. Voltou a caminhar para a entrada da igreja e tentou abrir uma porta de madeira situada ao lado da imagem da padroeira do país. Estava fechada. Lembrou-se de outro nicho, ao lado da porta onde havia um portão de ferro. Saltou o portão e, diante de uma grande escada de pintor, decidiu escalá-la. Já no alto notou que havia um alçapão no teto. Forçou-o e, sem dificuldade, abriu-o. Ficou de pé no piso do primeiro andar, por trás do grande órgão. Movido pela curiosidade, foi até o parapeito do balcão. Percebeu que alguém caminhava com uma lanterna na passarela central da catedral, lá embaixo. Silenciou os movimentos atrás de três tubos do grande órgão e meia hora mais tarde continuou sua escalada.

Do lado direito da porta de entrada, no que imaginou ser uma das torres da catedral, subiu por uma escada e deparou com uma janela muito comprida. Era ali. Sua certeza jamais lhe havia surgido com tanta força. Destravou a lingueta da fechadura, forçou a janela para o alto e a abriu, descortinando a noite escura e as luzes da rua. Equilibrando-se, caminhou por estreita platibanda ao lado da torre e pulou. Ficou por breves instantes suspenso com as duas mãos segurando o beiral do telhado principal da nave da igreja. Com dificuldade, aprumou-se e subiu as duas pernas no beiral. Refeito do susto, reiniciou a caminhada, desta feita com cuidado de gato. Logo atingiu os ornamentos do frontispício. Preparou sua câmera e o flash; tirou as fotografias. À uma da manhã já estava de volta no interior da catedral. Às seis horas e quarenta e sete minutos saía da igreja feliz e realizado, no rumo do quarto escuro que montara em sua chácara.

Reveladas as fotografias passou a estudá-las com afinco e iniciou a fabricação da sua escultura.

Quarenta dias depois da primeira aventura voltava ele à catedral, carregando numa carroça emprestada ao polaco Stanislaw que morava perto de sua chácara, a escultura de pedra feita à sua imagem e semelhança.

Assim, às três da manhã atravessou toda a extensão da Rua Cruz Machado, indiferente aos olhares das putas que faziam a noite por ali.

Às seis horas e quinze minutos conseguiu colocar sem ser muito observado a sua escultura para o interior da catedral.

Através de artifício semelhante ao da experiência vivida quando fora fotografar a imagem original, escondeu a nova estátua embaixo da mesa situada na frente de Nossa Senhora Aparecida. Saiu da igreja por volta das sete horas, retornando a ela às dezoito e quarenta e quatro minutos. Pretendendo para si melhor sorte do que a vivida anteriormente foi abrigar-se num nicho ao lado esquerdo da entrada da catedral, lá onde tem um vitrô com a imagem de São João Batista. Ficou ali, atrás de uma coluna.

Silenciou por exatas três horas e vinte e sete minutos. Era um fervoroso crente dos horários quebrados. Assim, às vinte horas e doze minutos sacou para fora seu corpo gêmeo, retirando-o de sob a mesa e da companhia dos oratórios. Munido de cordas, pranchas de madeira e de uma roldana, improvisou um andaime e através de subidas e descidas ao alçapão, levantou seu corpo de pedra ao piso dos balcões.

Foi uma tarefa árdua que lhe consumiu quase sete horas de trabalho. No entanto, às cinco e trinta e dois da manhã a nova estátua já ocupava o lugar da antiga escultura. Às seis e quinze o antigo anjo já estava deitado no carroção do polaco, e ele e o cavalo seguiram modorrentos pelas ruas, no rumo da chácara, debaixo de uma garoa fina, inteiramente abençoados.

Agora, lembrando-se daquela aventura, debruçado sobre a janela daquela privilegiada sala de escritório, ali na Praça Tiradentes, encantava-se ao ver as pessoas pararem e sorrirem para as duas estátuas presas no alto da Catedral. Valera à pena tanto esforço. Não ligava mais se o chamavam de tampinha de garrafa. Seu orgulho nu voava por sobre a cidade. Ele era o mais alto entre tantos que cruzavam a praça aos seus pés.

DE JEITO… por omar de la roca / são paulo

Puxei o cordão, e a cortina se abriu. Havia paisagem atrás.Mas o dia estava encoberto e eu prestei mais atenção ao céu chuvoso do que as arvores e as flores.Fechei as cortinas como se isso fosse afastar as nuvens carregadas.Olhei para a cama,para o corpo que ainda  sonhava.Me deitei com cuidado puxando as cobertas devagar.Não que estivesse frio,mas
como se me escondendo daquele tempo encoberto.Ela se virou,abriu os olhos brilhantes,e
tornou a fechá-los.Aconcheguei-me e ela passou o braço por cima do meu peito.Me dificultava um pouco a respiração mas eu não queria perder o momento mágico daquele toque.Mas precisei tira-lo e usei como desculpa afagos e beijos percorrendo-o.Ela resmungou qualquer coisa e se virou.
Encostei meu corpo no dela e comecei a falar baixinho sobre chuvas que teimavam em cair
quando precisávamos de sol.De trovões assustadores em lugar da respiração das ondas do mar.
Falei de luzes fortes,de chuvas cortantes,de brisas e garoa fina.E ela fingia que não ouvia.
Meu dedo percorria agora as costas dela,sem pressa,sem cócegas.E quando ameaçava descer até as profundezas insondáveis,apertava seu corpo contra o colchão,impedindo a passagem.
Parei e comecei a falar que queria deitar me com ela num campo florido,num vale iluminado onde a claridade penetrasse fundo na escuridão dos cantos escondidos. Incendiando pétalas, abrasando pedras, fervendo o lago. Mas logo lembrei me da chuva,e tudo tomou tons de cinza.
Mas ela dormia agora.Que bom,pensei,pelo menos não ouviu sobre o cinzento.Ai disse a ela que queria tomá-la numa praia deserta,de areias brancas.Onde o ritmo das ondas quebrando se confundia com o ritmo de nossos corpos procurando dançar juntos.E depois que a bussola parasse de rodar,orientada, nos deitaríamos olhando as gaivotas passando rápido,as palmeiras agitadas pelo vento contando novidades que dele ouviam.Mas o vento também trouxe uma nuvem,e precisamos nos cobrir de frio.Agora ela sonhava e se agitava.
Deitei-me com os braços ao longo do corpo.E ela,como sentindo falta da conversa,do aconchego,acordou.
Fingi que dormia,mas ela sempre sabia pela minha respiração.E começou e brincar comigo,me apertando o nariz,de leve,por saber que eu não gosto.E descobriu meu pescoço e peito querendo brincar com meus pelos.E eu fingia dormir.Quando ela me descobriu mais,fingi estar irritado e peguei a mão dela,afastando-a de mim.Mas era só brincadeira,eu queria mesmo que ela me tocasse, olhasse nos meus olhos.E segurei sua mão com mais jeito,fazendo-a percorrer as trilhas obscuras.Logo ela se chegou da maneira certa,fez o movimento certo,colou-se a mim e assim ficamos.Contei de novo a ela as estórias de praias distantes,ilhas perdidas em oceanos perdidos,chuvas invertidas,perolas roubadas,trovões silenciosos,conchas brancas e coloridas,pedras que se soltavam fácil do chão.cavalos correndo a beira mar,pássaros voando sem tiras prendendo as patinhas,folhas verdes e acobreadas,flores brancas que se abriam quando passávamos.Mas tudo isso em uma palavra,num gesto,num olhar,que o movimento exigia silencio e concentração.Ate a palavra final.

A RECLUSÃO DE SALINGER por hamilton alves / florianópolis

A reclusão a que se submeteu, depois que editou seu best-seller “O apanhador no campo de centeio”, o escritor J. D. Salinger, que veio a falecer há pouco, em Cornish, New Hampshire, EUA, que certamente não esperava que colhesse tanto sucesso como veio a ocorrer, é de certo modo explicável.

Houve um ensaísta que, no necrológio do escritor, ressaltou a questão de que o que deve ter ocorrido é um fenômeno que frequentemente acontece com produtores de arte (ou produtores em geral): o bloqueio da produtividade. Ou o que chamou, no caso de Salinger e de tantos outros renomados escritores, de “writer’s block”, bloqueio da escrita ou do ato de escrever.

Não creio que seja esse o fato que explica o caso específico de Salinger. Ele mesmo se referiu ao desejo de isolamento, de escrever só para seu prazer, ou de esconder-se, de não querer mais contato com os projetores da fama ou com pessoas, jornalistas, dar entrevistas, que, na verdade, tiram em grande parte o sossego.

Numa saída de supermercado, em Cornish, cidade pequena e de poucos habitantes, um fotógrafo se aproximou dele para colher alguns flagrantes. Recebeu, em troca, inesperadamente, umas braçadas largas de Salinger, cuja cena foi mostrada numa reportagem de jornal, em que aparece com o rosto convulsionado de revolta.

Deve ter sido uma cena cômica, que causara certamente ao espectador muitos e bons risos.

Particularmente, entendo Salinger.

O anonimato é algo que, para algumas criaturas, torna-se de visceral valor. Há quem o cultive de forma obsessiva. A privacidade, para tais indivíduos, tem uma importância maior que qualquer outra coisa. Sua vida não pode nem deve ser devassada minimamente. Uma entrevista, uma foto, seja o que for desse tipo, põe tudo a perder.

Certa vez, vi um homem conhecido no meio da multidão. Também ele uma ilustre personalidade entre tantos outros seres comuns.

Parecia-me revestir certa beleza o fato de estar só, embora reconhecido como pessoa de destaque,  procurando esquivar-se de uns e outros, seguindo solitário seu caminho ao destino que bem houvesse de escolher.

Tudo o que Salinger amava, mais, quem sabe, do que sua literatura, do que seu “alter ego”, Holden Caufield, era seu intransigente anonimato. Daí ter erguido um muro inexpugnável à frente de sua casa, sempre rodeada de curiosos, fotógrafos, jornalistas, em Cornish.

Ali era o reduto de um homem alheio ao ruído do aplauso, de prêmios, de academias, do bulício da fama, essa senhora detestável, como lhe chama outro recluso, Milan Kundera.

CLETO DE ASSIS e “PILOTO DE BERNUNÇA” / curitiba

Saudade no papo da Bernunça

No segundo dia do ano ainda recebi presente de Natal. Quando visitei o bom amigo J. B. Vidal no seu recanto sempre acolhedor, lá nos Ingleses da ilha do Desterro, ganhei dele um livro autografado pelo autor, com um nome incomum: Piloto de Bernunça.

Para quem não sabe, a Bernunça ou Bernúncia é um dos bonecos do auto popular do Boi de Mamão, a versão catarina do Bumba-meu-boi nordestino. Ela tem uma cabeça enorme, lembra um dragão, na sua simplicidade artesanal, e engole gente à medida que a dança vai se desenrolando.

No primeiro momento, pensei que se tratava de um estudo folclórico, mas ao folheá-lo percebi logo ser de uma coletânea de crônicas, assinada por um consagrado escritor catarinense, Sérgio da Costa Ramos, e ilustrada pelo nosso querido amigo Dante Mendonça, em edição realizada pelo Vinicius Alves. Como férias convidam ao descanso acompanhado de bons livros, deixei de lado os que havia levado a Floripa e iniciei a leitura do livro de Sérgio.

Eu estava em uma casa na praia do Meio, em Coqueiros, exatamente a região que abrigou parte de minha infância e foi emocionante percorrer o passado descrito nas crônicas e relembrar personagens ilhéus que também conheci na década de 50, quando retornei a Florianópolis para estudar no Colégio Dias Velho. Quase no final do livro, encontrei a crônica Coqueiros era assim. Lembro de Coqueiros apenas como uma faixa de praias coleando os morros ao fundo, estes com poucas residências e misteriosas furnas formadas por superposição de pedras enormes, local constante das brincadeiras de meninos. As praias, naquela época, eram limpíssimas e, sem os ventos do Sul, eram piscinas espelhadas para onde vinha boa parte da população da ilha, uma vez que os balneários hoje badalados não eram facilmente acessíveis. A praia da Saudade era o point dos mais jovens. Nada de asfalto, com o lembra Sérgio: “O ‘gostosão’ – frente embutida e motor ‘pra dentro’ – subia a Filipe Schimidt, a rapaziada em pé no corredor, recendendo a óleo dos bronzeadores, resposta ao Verão que chegava. O trajeto incluía passagem sobre o assoalho de taboas da ponte – e, depois, sob a sua estrutura, na estrada de terra que serpeava até o aclive da igrejinha, ponto em que o ônibus ‘esvaziava’, bem em frente ao Praia Clube”.

Foi esse um dos cenários de minha infância. O Praia Clube era uma sede praieira do Clube 12, se não me engano, e era o último edifício do lado norte. À sua frente, ficou em construção, por vários anos, a base de um trampolim. Na pequena elevação a seu lado ficava a residência do polêmico jornalista Manoel de Menezes, pai do também jornalista Cacau Menezes (que não deve lembrar, certamente, pois era bem pequeno, mas chegamos a brincar juntos muitas vezes, com suas irmãs Kátia e Mirela).

Apenas um reparo: a igrejinha a que se refere Sérgio ainda não havia sido promovida a tanto. Era simplesmente a Capela e dava nome para a região, como um subdistrito de Coqueiros. Que começava no Saco da Lama, logo após um prédio da Marinha, passava pela Palhocinha, chegava à Capela, descia para a praia da Saudade, seguia até a praia do Meio, depois Itaguaçu – a bela Itaguaçu semeada de pedras, onde também havia uma pequena capela – e, morro acima, ia até a praia do Bom Abrigo, escondida ao pé do morro. Dali em diante era território estrangeiro, que só podia ser penetrado em companhia dos pais. Se fôssemos adiante, passaríamos pelo Abrahão e seguiríamos até São José e Palhoça. Mas isso já era viagem intermunicipal. O ônibus de Coqueiros só chegava até o Bom Abrigo.

Eu morei em Coqueiros (onde nasceu minha mãe) em duas épocas distintas. A primeira, na praia da Saudade, lado sul. Era só atravessar a rua e estava de cara com o mar. Menino criado no frio da serra catarinense, eu não respeitava nem o vento Sul do inverno e causavam espanto nos vizinhos os meus banhos malucos, eu sozinho na praia para aproveitar as ondas maiores, ainda pequenas em relação às do “mar grosso”, como contavam meus pais.

Obrigado, Sérgio, por essa viagem a um passado onde, como disse mestre Ataulfo, a gente era feliz e nem sabia.

Mas seu livro também me premiou com passagens gostosíssimas, como na crônica sobre o “espírito galhofeiro” do florianopolitano, sem perder oportunidade para tascar um apelido em todo mundo, sempre aproveitando características invulgares da vítima. Lá assisti a desafios de apelidos, nos quais os dois contendores trocavam “elogios” mútuos, para fazer gargalhar a platéia improvisada. Ato que só terminava quando a genitora de um dos apelidantes era subitamente lembrada e a brincadeira corria o risco de acabar em briga.

Na ilha nada escapava a esse humor espontâneo. Sérgio lembrou que o assoalho da ponte Hercílio Luz era pavimentado por grossas tábuas de madeira. Creio que o piso foi uma das únicas contribuições materiais brasileiras na construção da ponte, inaugurada em 1926, pois toda a sua estrutura foi fabricada nos EUA e de lá trazida pelos engenheiros projetistas. O assoalho tinha que ser consertado periodicamente, em razão do tráfego já mais pesado, naquela época. Em uma dessas reformas (creio até ter sido a primeira tentativa de asfaltar a pista de rolagem), quase na cabeceira da ponte, chegando à ilha, formou-se um degrau de dez ou quinze centímetros, que ali permaneceu por muito tempo, pois as obras foram paralisadas, talvez por falta de verba. Os veículos eram obrigados a dar uma paradinha e, em primeira marcha, descer vagarosamente o degrau, como hoje se faz nas lombadas rodoviárias. Mas os ônibus, bem mais pesados, não podiam evitar o salto, que sacudia todos os passageiros. Não era raro formar-se um coro de vozes para acompanhar o rotineiro evento e o humor logo deu nome ao degrau: era o “soluço da ponte”…

Também me lembro de outros apelidos engraçados. Um rapaz que tinha o rosto provavelmente marcado por crateras herdadas de uma catapora, recebeu rapidamente o apelido de “areia mijada”. E outro, com um problema nos olhos que o obrigava a manter um dos dois semicerrado, ficou conhecido como “olho de espiar garrafa”.

Ah, linda Florianópolis, onde ficaram meus passos de guri e por onde passeio a minha saudade, de quando em quando. Saudade adoçada por Sérgio da Costa Ramos e suas crônicas, bom presente de Vidal neste começo de ano.

CANARINHO DA TELHA por hamilton alves / florianópolis

Ainda estou bastante abatido com o acidente ocorrido com o Tisio, que neste momento encontra-se entre a vida e a morte numa UTI de uma clínica de cachorros.

As últimas notícias que recebi de seu estado geral não foram nada animadoras; muito ao contrário, terá, ao que tudo indica, disse-me a veterinária, poucas chances de sobreviver.

Há quatro dias que está assim entre a vida e a morte.

– Se resistiu até agora, há esperança de melhora. – disse-me a veterinária

Mas ainda que melhore ou ainda que volte a viver, não será certamente mais o Tisio de outros tempos, alegre, vivo, brincando com seu jacaré de borracha, que procurava estraçalhar com os dentes, nem nos fará as festas costumeiras quando o surpreendia à porta da casa de manhã cedo.

Estava nesse estado de geral abatimento, debruçado ao muro da sacada, quando um canarinho da telha dos mais típicos de sua raça trepou num galho da árvore fronteira, perto do comedor de pássaros. Teria certamente se abastecido de alpiste antes de empoleirar-se no galho.

Fiquei a olhá-lo, longamente, a examinar os detalhes de sua beleza, com amarelo, verde, azul, a cabecinha de um amarelo mais vivo, quando lhe ouvi dar um trinado:

– Que tens, homem, com essa cara triste?

– O Tísio…

– Quem é o Tisio?

– É o meu cachorro…

– O que tem ele?

– Sofreu um acidente e está entre a vida e a morte.

– Eu, por acaso, não valho nada? Será que não mereço tanta atenção quanto o Tisio? Ou tanto amor?

– Claro que sim, sem dúvida.

– Então por que tanta amargura? Vivo praticamente em função de vocês, homens. A beleza existe em toda parte. Sou um mensageiro dela para lhe trazer alegria.

– Bem sei, bem sei!…

– Esqueça o Tísio por uns momentos e me desfrute, mesmo que seja nesse canto resumido a pequenos chilreios.

O canarinho desceu de novo ao comedor; dali saiu em desabalado voo a perder-se de vista.

Deixou-me mais animado de que o Tisio volte de novo a conviver conosco. Mas mesmo que o perca (não será uma compensação, certamente), o canarinho da telha virá ali todas as manhãs para dar cor e vida ao cenário.

D O I S V E L H O S por jorge lescano / são paulo

O ancião maltrajado, aparentemente ébrio e surdo, a julgar pelo modo de inclinar a cabeça, deixou um pacote de supermercado sobre o banco e sentou-se à minha frente, sem me olhar. Lembrei-me dele de cócoras no umbral do açougue, lia uma folha amassada do Butantã Zeitung. Parece estrangeiro, talvez por ter os olhos claros. Encontramo-nos às vezes, ao eu andar por este lado do bairro. Suspeito que não tem moradia fixa.

Ficou alguns instantes quieto, os olhos no espaço. Depois retirou do bolso a página de jornal dobrada várias vezes e um maço de cigarros quase vazio. Notei que era da mesma marca que eu fumo, embora não fosse impossível que as marcas do maço e dos cigarros não coincidissem.

Os dedos grossos não conseguiam separar as paredes de papel. Enquanto o indicador da mão direita escarvava a abertura, a mão esquerda apalpava o maço querendo adivinhar-lhe o conteúdo. Um ou dois cigarros, não mais, concluí.

Olhávamos para frente, indecisos.

Deixei que alguns cigarros lhe caÍssem na mão espalmada. Colocou-os no seu maço e guardou o pequeno volume no bolso interno do paletó.

Por que oferecer cigarros? Porque avaliava a situação sem pedir auxílio?

Deveria ter agradecido /? Deveria ter  agradecido /? Porque lia momentos antes?

Um leitor sempre interessa, especialmente aquele para o qual a rotina parece ser a ausência do mundo. Talvez seja assim, no entanto (seu gesto de virar a página também faz parte de nossa leitura), o mecanismo (hábito?) de ler permanece. Porque se identificou com o outro num futuro não longínquo? Oferecer cigarros apenas para ter sobre o quê escrever (?). Não é improvável que este rascunho já estivesse no horizonte do gesto. Ou porque são iguais na leitura?

Ele acendeu o cigarro que permanecera oculto na mão esquerda. Depois de alguns segundos concentrado em fumar, perguntou se era quarta-feira. Confirmei em silêncio. As sombras já apagavam nossos contornos e eu mal percebia seu rosto através da fumaça. Sentia-se obrigado a conversar ou queria se comunicar com alguém?

Não esperei para saber, peguei meu jornal e o pacote com meu jantar – pão e margarina às quintas-feiras – e fui embora; minha solidariedade não inclui o diálogo. Prefiro ler  nos fins de tarde.

A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS – por enéas athanázio / florianópolis


Sustentando que só flanando pelas ruas, em contato direto com o povo, se pode conhecer uma cidade, o escritor carioca João do Rio publicou, no início do século passado, um livro tão interessante quanto raro nos dias de hoje – “A Alma Encantadora das Ruas” (1908). Perambulando sem cansaço pelas ruas, praças e becos, conseguiu captar a vida urbana ao seu natural, a fisionomia da cidade, as pequenas profissões e atividades do povo miúdo, seus dramas, paixões e alegrias, tornando-se um dos mais autênticos intérpretes da alma carioca e contribuindo para que se tornasse conhecida. No seu rastro viria, pouco depois, Lima Barreto, pintor de uma paisagem ocupada por seres sofridos mas que sabem desfrutar os momentos de fugidia felicidade. E Jorge Amado, mais tarde, prestaria idêntico serviço a Salvador. Ambas as cidades muito devem à literatura; foi ela que contribuiu de forma decisiva para que se divulgasse o modo de ser de seu povo e sua filosofia de vida.

Surge agora, em outro recanto do país, um romancista de fôlego que se propõe a enfrentar idêntico desafio em relação à sua cidade de Teresina, a chamada “cidade verde.” Trata-se de Oton Lustosa, escritor piauiense que acaba de lançar o romance “Vozes da Ribanceira” (EDUFPI – Teresina – 2003), cuja ação se ambienta no bairro do Poti Velho, nos arrabaldes da metrópole e às margens do Poti, um dos rios que a banham. Escrito numa linguagem muito pessoal, com estilo próprio, o autor revela desde o início conhecer com segurança a vida daquela gente e seu modo de agir e pensar, transmitindo seu texto um retrato autêntico do meio onde batalham pela sobrevivência os oleiros, artesãos, pescadores, pequenos comerciantes, passarinheiros, proprietários, canoeiros, violeiros e cantadores, não faltando malandros, traficantes, jagunços, prostitutas e todo um ror de figuras entregues às mais variadas e estranhas ocupações. Desse meio buliçoso, barulhento e colorido ele compõe uma poesia que brota das águas do rio, do barro, da alma do povo, enfim.

O tema central do romance é desenvolvido em torno da gente humilde que habita o bairro, vítima da costumeira exploração pelos mais aquinhoados ou mal intencionados que existem em toda parte. Para complicar o quadro, surge ali um elemento estranho, perturbando os espíritos e gerando suspeita, na pessoa do “hippie” oriundo do Recife, cujo passado misterioso intriga a “autoridade” e fascina o povo. Artesão habilidoso, músico e, ainda por cima, poeta – reúne tudo que possa inquietar o coração do soldado que impava de orgulho por ser “nobre e descendente do Visconde de Parnaíba”, cuja maquinação junto a um investigador que farejava “subversivos” em todos os cantos acaba por levá-lo à prisão, e, depois, à fuga para local desconhecido, episódio em que contou com a solidariedade silenciosa dos moradores do bairro. Além disso, seu porte atlético, suas tatuagens e seus versos acalentavam os sonhos secretos das moças e acabaram por seduzir uma radialista cujo programa tinha intensa penetração popular. Ele “faz um pacto de amor com o rio de águas barrentas”, o que implica em dizer com o povo ribeirinho.

No desenvolvimento da trama o autor se movimenta com desenvoltura, colocando no cenário um sem número de outras figuras, situações e episódios que revelam um mundo ativo e complexo na sua aparente singeleza, onde explodem conflitos, maiores ou menores, nos quais todos se envolvem, muitas vezes com paixão.

Entre tais episódios, chamam atenção a rivalidade entre adeptos de crenças diferentes, esboçada de forma clara na festa de São Pedro, o santo pescador, e a procissão aquática em que os seguidores de outras seitas não deveriam participar, ainda que seus santos fossem os mesmos, provocando intermináveis discussões. A criação da Oficina do Barro, organizando as artesãs numa espécie de cooperativa que permite a produção de um artesanato de luxo e a melhoria dos rendimentos das que lidam com a “massa peguenta do barro.”As “coroas” do rio, onde medram plantas passageiras, enquanto as águas não vêm, amores fugazes e encontros suspeitos, observados, talvez, pelo Cabeça-de-Cuia, o pescador Crispim, cuja lenda povoa o imaginário local. A procissão pelo rio, capitaneada pela majestosa lancha “Sereia”, luzidia e enfeitada, compondo uma cena de cinema. A festa, o baile, os desafios dos repentistas, as comidas típicas e as bebidas fortes, as músicas, o permanente temor das enchentes, a preocupação com o desmatamento, os incêndios, as invasões de terrenos e a inevitável presença do latifúndio a sugar arrendatários. Dramas e alegrias de um povo miúdo e sofrido, ligado ao rio por um amor carnal, físico, e que fez um pacto de amor com a cidade desenhada no horizonte, da qual todos se sentem integrantes. Nada escapou ao autor na pintura desse cenário repleto de vida, luta e esperança.

Acentuando a autenticidade do ambiente, o autor lança mão de termos e expressões locais, embora bem dosadas, evitando o exagero e a caricatura. Revela riqueza de imagens, algumas de cunho popular e de uso comum nas ruas: “todo lorde” (elegante), “alisado de mão” (carícia), “moças oferecidas”, “o rio a lamber as raízes”, “o rio manso é ginete marchador”, “em riba das canoas”, “no colo da terra”, “galego”, “quicé”, “gungrene” etc., e assim fixando ainda mais o romance ao chão teresinense.

Concluindo, direi que o romance de Oton Lustosa é convincente e bem escrito, contribuindo para que sua cidade seja melhor conhecida e, em conseqüência, amada. Não temo em afirmar que Teresina ganhou o seu romance. Como dizia Câmara Cascudo, “bata o Piauí nas tábuas do peito: ganhou um grande escritor brasileiro!”

A TERRA DO QUASE por sérgio da costa ramos / florianópolis

Florianópolis não é apenas a Terra-do-Já-Teve. É também a do Quase-Teve.
Quase tivemos três pontes em 20 anos. A Colombo Salles seria dupla, em 1974. A Pedro Ivo, em 1989, seria a terceira.

O atual governo “quase” reformou a ponte Hercílio Luz. Faltou consertar o principal – os tirantes que sustentam as pistas sobre o vão livre de 340 metros.

Quase tivemos o Grande Hotel da Ponta do Coral. Quase tivemos a ligação Ilha-Continente, ao sul, do Pântano do Sul a Paulo Lopes.

Quase tivemos vários “Quase”. Como a moderníssima Arena Florianópolis para a “Quase” Copa do Mundo de 2014.

A Ilha “Quase-Teve”, em outubro de 1994, um transporte coletivo marítimo, embora o seu principal instrumento se revelasse inadequado: os barcos selecionados foram “catamarãs” – e não “ferries”.

Os terminais que seriam servidos pelas novas linhas – nas Baías Sul e Norte, Ponta do Leal e São José – não foram construídos, a não ser um atracadouro “experimental”, às margens do aterro da Prainha, fundos do atual Centro de Convenções. Tratado com amadorismo, o projeto não “navegou” para fora do papel, revelando-se mais um “factoide”.

No início do século 20, pré-ponte Hercílio Luz, as lanchas venciam a distância entre o Miramar e o trapiche da Florestal em 12 minutos, desde que o mar estivesse calmo. Do Estreito para a Ilha, em dias de vento sul, a navegação se baldeava para a baía norte, nas enseadas abrigadas do velho vento de Cruz e Sousa.

Os “lanchões” viveram os seus dias de glória em plena belle-époque, de 1878 até a inauguração da ponte, em 13 de maio de 1926, às 13 horas, quando o governador em exercício, Antônio Vicente Bulcão Vianna, descerrou a fita da grande obra de Hercílio Luz.

O serviço de “travessia” do canal funcionava das sete da manhã até as oito horas da noite, durante o inverno. No verão, a última lancha zarpava às nove da noite. Havia um “quê” de romantismo nesse “último ônibus das 9”, os casais iluminados pela luz bruxuleante dos candeeiros da lancha “Zury”, refletindo seu lume nas marolas do Miramar – o que emprestaria à cena um certo parentesco com um embarque no Grand Canale de Veneza.

O transporte pelo mar, numa época de engarrafamentos selvagens e deslizamentos de encostas, merece o estudo sério e o empenho dos governantes, à margem dos habituais “factoides” pré-eleitoreiros.

San Francisco, Nova York, Barcelona, Marselha, Lisboa, Atenas, Nápoles, Hong-Kong, Istambul, Londres, Rio de Janeiro – não há cidade marítima, lacustre ou ribeirinha que despreze a líquida estrada que o Senhor espalhou pelos sete cantos do Mundo.

Além de ser belo, o mar é econômico, ajuda a desafogar o trânsito em terra firme – e, o melhor de tudo – não enriquece as empreiteiras de sempre.

A DIMENSÃO DA TRAGÉDIA por hamilton alves / florianópolis

Toda a tragédia, menor ou maior, é, de certo modo, portadora de lições.

A do Haiti, em número de mortos e desolação geral, transformada a cidade de Porto Príncipe a escombros, que levará certamente tempo para se recuperar, é talvez das mais dramáticas conhecidas nos últimos tempos.

Nela perdeu a vida uma verdadeira heroína, mulher devotada à causa dos pobres e dos mais flagelados da vida, especialmente de crianças, ela que era formada em medicina na área de pediatria, dona Zilda Arns (ou santa Zilda).

Como se explicar que dona Zilda, levada ao Haiti para ajudar na luta contra os flagelos sociais, tivesse que perecer nesse fenômeno da natureza?

A nossa percepção, sempre superficial dos fatos, nos escapa o sentido de tal desastre, com sacrifício de tantas pessoas. Ou não tem sentido nenhum. E o sentido que possa ter aflora do fato em si, nua e cruamente.

Nesse momento, porém, a todos se impõe o dever de solidariedade, ao mesmo tempo que se aguça, em nosso espírito, o sentimento de quão somos  frágeis, colocando-nos todos diante dos imprevistos da vida. No fundo, somos criaturas reduzidas tão só e exclusivamente a nossa pobre contingência humana; nada mais. Vítimas, a cada passo de nossa existência, dessas mesmas contingências, que a todos nos alcançam.

Vivi uma tragédia incomparavelmente menor à do Haiti, de uma cidade (Tubarão, em 1974) assolada por uma enchente. Percebi, no momento mais crítico, em que a enchente, provocada pela chuva, atingindo todas as áreas da cidade, em umas mais fortemente do que em outras, em que tantas pessoas pereceram e outras mais perderam todos os seus haveres, de como era notório o fato de todos se igualarem na missão comum de salvação.

A tragédia tem o condão de unir as pessoas e mostrar que somos todos iguais. Nesse momento, caem todos os artifícios sociais, os graus, as diferenças, as castas, as raças, etc. Somos apenas criaturas humanas, despidas de nossos adereços.

Em Tubarão, conduzindo o trânsito desorganizado, notei, em certo momento, de calças arregaçadas, em mangas de camisa, o homem mais rico da cidade fazendo as vezes de guarda.

Outros iguais, líderes sociais, transformavam-se pela adversidade naquilo que essencialmente eram – seres humanos. E, como tais, tinham que formar fileiras ao lado das mais modestas pessoas na causa comum de defesa e recuperação da cidade.

A tragédia ensina também a perceber-nos uns aos outros com mais clareza e realismo.

TELA PARA ESCREVER por sérgio da costa ramos / florianópolis

Imagine-se um homem debruçado sobre a escrivaninha, preparando-se para escrever.

Vale-se de uma caneta de “época”, um bico-de-pena mergulhado num tosco tinteiro. Para alumiar a bancada, um lampião a óleo de baleia, como nas mais antigas armações do mundo.

Quem seria? O poeta Shelley, com seus versos marinheiros?

Hermann Melville, iniciando a saga da obsessiva perseguição do capitão Ahab à baleia Moby Dick, um clássico da literatura universal?

Quando o homem começa a escrever, opera-se um pequeno milagre de forma e de método: suas marinhas não se derramam em pinceladas coloridas, mas em letras de caligrafia redonda.

E, no entanto, sua pena não é mais uma caneta. Num lance de abracadabra, a pena se transforma num pincel…

Ninguém diria que aquele senhor de testa alta e bigode luso, embrulhado num vetusto terno, colarinhos pontudos e gravata em laçarote fosse o mesmo marinheiro em calças de zuarte e camisas zebradas, a bordo do navio argentino Mercedes ou do inglês Theodore, a singrar os sete mares.

Em 1876, o ilhéu Virgílio dos Reis Várzea matriculou-se, aos 13 anos, na Escola Naval do Rio de Janeiro, dela saindo aos 16, para correr o mundo, do Cabo Horn às Antilhas, do Atlântico ao Índico e ao Pacífico, com passagens pelos Açores e pelos também lusófonos Arquipélagos do Cabo Verde.

Esse verdadeiro Mestre dos Mares haveria de se transformar num “Mestre das Letras”, ao retornar à sua Desterro em 1881 e tornar-se amigo e empreendedor literário, em parceria com João da Cruz e Sousa. Os dois passaram a editar, em sociedade, os “jornaizinhos” Colombo e Tribuna Popular, baluartes da causa abolicionista.

Dono de uma obra imortal, Traços Azuis (1884, poesia), Tropos e Fantasias (prosa, 1885, com Cruz e Sousa), O Brigue Flibusteiro e Os Argonautas (contos, 1904 e 1909), entre outros textos relevantes, Virgílio Várzea deixou de presente para a Ilha de Santa Catarina uma espécie de memorial descritivo, em que o escritor “pincela” as praias, as enseadas, os promontórios, as freguesias e as lagoas, os altiplanos e os baixios – num livro que é, ao mesmo tempo, um “quadro” e uma “carta”, num estilo que se poderia caracterizar como “prosa-pictórica”.

Em 1900, aos 37 anos, Virgílio Várzea “pinta” A Ilha com aquele amor dos que a tiveram por berço e âncora – despido da habitual modéstia dos seus nativos:

– Poucos lugares do globo possuirão praias tão bonitas e de um desenho mais interessante e caprichoso como os da costa catarinense – preliba, antes de seu hino de amor à Ilha.

Majestade e grandeza viviam na alma de Várzea, amigo dos seus amigos. É ao amigo “marinheiro” que recorre um desesperado Cruz e Sousa, escrevendo-lhe do Rio de Janeiro, onde, em vão, “espera sem fim por acessos na vida, que nunca chegam”.

“Estou profundamente mal, e só tenho a minha família, só te tenho a ti e a tua belíssima família (…) Só dessa linda falange de afeições me aflige estar longe, e por isso morro, sim, de saudades.”

O sufocado verão que se instalou na Ilha, nestes primeiros dias de janeiro, homenageia, apesar das carrancas da natureza, o magnífico aquarelista, de alma marinheira e caráter nobre, destituído de qualquer salitre.

Virgílio Várzea, o marinheiro que escrevia com um “pincel” na mão.

CONVERSA COM O ANO NOVO por hamilton alves / florianópolis

Tinha soado meia-noite no relógio da casa quando ouço uma batida à porta. Vou abri-la e dou com a presença do Ano Novo.

– O que deseja? – lhe perguntei.

– Estou entrando…

– Entrando assim sem mais nem menos, a essa hora?

– O senhor não me esperava?

– A bem da verdade…

– … Não esperava?

– Não é bem isso…

– O que é então?

– É uma coisa sempre meio inesperada… O senhor há de entender… Além do mais, minha atenção estava concentrada em tanta coisa que acontece por aí, calamidades aqui, acolá, por toda parte. É só notícia ruim. O quadro sucessório…

– … Que é que tem o quadro sucessório?

– Haverá um quadro sucessório mais desanimador do que o que ora se nos apresenta?

– Bem, todas as épocas têm lá seus bons ou maus momentos. É da condição dos tempos, nem piores nem melhores, sempre no meio termo.

– E o senhor o que nos traz de novo?

– Bem, devo confessar que já nasço de certo modo velho.

– Como assim?

– Carrego comigo toda essa tralha da história, que é inseparável do tempo que escoa.

O Ano Novo já tinha entrado, se aboletado numa cadeira estofada, olhou as horas, que já iam, a essa altura, longe. Revelava-se preocupado. Algo não lhe parecia estar bem.

– Sente-se incomodado?

– Entrar no tempo envolve sempre uma grande preocupação. O que terei pela frente?

– Se o senhor não sabe, imagine-se eu!

– Teremos a Copa do Mundo de futebol, isso não deixa de ser uma boa expectativa em torno de quem a vencerá. E os prognósticos já se fazem. A eleição para presidente… Mudanças aqui e ali.

– Mas tudo isso é muito pouco. E no plano internacional que traz o senhor de melhor?

– Sou o Ano Novo mas não sou adivinho. É um tema difícil de abordagem.

– A humanidade confia no senhor. Afinal de contas, para que serve um Ano Novo?

– Um Ano Novo serve para produzir a história, que se escreverá na medida da burrice ou da sabedoria humanas. Nem mais nem menos.

Foi assim que entrou o Novo Ano, com essa disposição muito realista. Depois que encheu bem o pandulho, tendo bebido além da conta, despediu-se lá pelo dealbar da madrugada, sem revelar-se muito animado com o que viu à entrada.

NATAL, UMA LIÇÃO DE HISTÓRIA – rosa DeSouza / portugal/florianópolis


O que é o natal?

Lembrança sideral?

Desde a pré-história

povos celebram

da natureza a glória.

Solstício,

sol bem longe do Equador,

fazia duvidar

do tempo benfeitor.

Uma árvore era queimada,

imolada

a algo superior:

Ser que cuidava da agricultura,

fertilidade, sobrevivência,

da arte e da ciência.

Com uma crença tão arraigada,

o Nascimento foi adaptado

ao que não podia ser mudado.

Numa doutrina bem engendrada,

aliou-se o pagão ao sagrado.

Um pinheiro cheio de luz

apagou o clarão da Verdade.

O Bardo morreu,

papai noel nasceu.

A ficção usurpou a realidade.

O consumo destruiu

a mística e a caridade.

Também…

desde a pré-história,

essa que nem temos memória,

a cada ciclo,

grandes Mestres

abrem o Portal,

e, de um modo real e visual,

ajudam, com a luz que deles emana,

o homem a ser mais racional,

a si mesmo leal,

expandindo a consciência humana.

Entre eles veio Manu,

Zoroastro, Buda e Maomé.

Visnu,

Moisés e Lau Tsé.

Na nossa cultura celebramos

Jesus de Nazaré.

Também…

desde a pré-história,

existe uma crença.

Quiçá real – ou ilusória?

De que o símbolo da mirra, incenso e ouro

marcam o vínculo

da potência e do tesouro

de uma esperança infinita,

pelos deuses descrita,

no humano currículo.

Porém, continuamos a teimar,

que a lei da atração

é mais importante do que a da sintonia.

A ciência esmiuça a mística,

mas o homem só quer ganhar,

continuando a tirania

sem logística,

sem responsabilidade,

procurando a quem culpar.

Aos deuses pede a  paz

que teima

em não querer resgatar.

Deliberadamente pequeno,

todos os Mestres contradizendo

o ser humano continua sofrendo.

Odiando em vez de amar,

Desvia suas decisões

para igreja ou tribunal,

transformando o natal

em coloridas superstições

e num vulgar arraial.

Amor e Paz

não é desejo de um só dia,

nem utópica filosofia,

mas um ideal ancestral.

Lutemos

para que todos os momentos

sejam muito mais

do que um simples natal.

A MULHER MADURA por affonso romano de sant’anna / rio de janeiro

O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.
De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso, repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

ZULEIKA DOS REIS e seus HAIKAIS, com “kigos” perfeitos / são paulo


De primavera

Chega a primavera.

Perfumes transpõem muros

destes casarões.

.

Os guris perseguem

breves bolhas de sabão.

Ah! Vida translúcida.

.

As flores do ipê.

Até o cachorro cego

parece feliz.

.

Da página aberta

salta a pétala seca.

Primavera antiga.

.

De verão

Os trovões ribombam.

O pequeno cão Valente

treme no meu colo.

.

Cartão de Natal.

Jesus ainda está dormindo

no colo de Maria.

.

Vejo, do sombral,

o rendilhado das folhas.

Ah! Sol tecelão.

.

Saída da feira

pausa na primeira banca:

Pastel e água de coco.

.

De outono

Dia da Paixão.

Mãe com o filho, na calçada,

e uma cruz no olhar.

.

Boca cheia d’água.

A trouxinha de pamonha

sendo desatada.

.

Relâmpago azul.

Crescem os olhos da criança

no colo da mãe.

.

Pelas alamedas

o falatório dos grilos.

Segredos nas árvores.

.

De inverno

A garoa cai.

Cintilam poças na rua

À luz dos faróis.

.

Velho de bengala.

Mesmo frágil, o sol de inverno

aquece-lhe as mãos.

.

Fogos de artifício.

As crianças batem palmas

ao voo de estrelas.

.

Os pés dos passantes

marcam as folhas caídas.

Assim, certas vidas.

DISCURSO DE MAX BROD NO TÚMULO DE KAFKA – por hamilton alves / florianópolis

De uma pequena biografia, escrita pelo inglês Paul Strathern, relata-se que, quando Kafka morreu e foi sepultado num cemitério judaico, em Praga, seu amigo Max Brod, o único que privou mais intensamente de sua intimidade, fez o discurso fúnebre, que, segundo ainda esse biógrafo, só foi interrompido quando Dora Dymant, uma judia, que Kafka conheceu quando se mudou para Berlim, já no fim da vida, vivendo, nessa época, a Alemanha um período de hiperinflação, que provocava a desvalorização da moeda, a fome, e filas intermináveis nos mercados de alimentos, se atirou sobre o túmulo de Kafka, chorando inconsolavelmente.

Qual teria sido, mais ou menos, nessa ocasião, o discurso de Brod, que recebeu do amigo, quando fez essa mudança para Berlim, o pedido de que destruísse sua obra, poupando apenas alguns escritos, indicados certamente por ele?  Max resolveu não cumprir o testamento do amigo e, refugiando-se em Israel, começou a trabalhar na divulgação da obra legada por Kafka.

Imagino que teria sido aproximadamente o seguinte:

“Caro amigo Franz,

A morte o levou deste mundo prematuramente. Era esperado que isso acontecesse desde quando você adquiriu essa doença mortal da tuberculose. Acompanhei durante tempos sua trajetória, seu dilaceramento no que respeita a sua vida pessoal e familiar. A dificuldade que sempre encontrou em se ajustar aos diversos aspectos de sua vida. Quando conheci seus primeiros escritos logo descobri seu talento literário sem igual e a natureza originalíssima de sua obra. Procurei, na medida do possível, divulgá-la e fazer ver aos nossos contemporâneos quanto essa obra, desde logo, me pareceu destacável dos demais escritores europeus de nosso tempo. À medida que sua obra se desenvolvia só aumentava minha visão pessoal de sua incomparável grandeza, a colocá-lo entre os mais destacados escritores mundiais.

Ao lado disso, sua vida seguia rumos imprevisíveis, com seu profundo desajustamento à família, ao meio social, ao trabalho, às pessoas e até mesmo às suas primeiras relações amorosas, parecendo que fora marcado para o infortúnio.

Tive o privilégio de, como seu amigo, acompanhar passo a passo sua vida em todas as formas em que se expressava, sua determinação em se envolver com seu trabalho de escritor, parecendo que isso fora sempre seu objetivo primordial – e nele encontrava a única forma de escapar a todos os seus dilemas.

Fui de seus poucos amigos que privou de sua intimidade. Conheci sua envergadura moral e artística mais do que qualquer outra pessoa.

A morte parece lhe ter sido o ponto de encontro com a paz ou a forma de superar sua generalizada incapacidade de existir.

Entre, caro amigo, na imortalidade da vida eterna e na da arte”.

Rumorejando (O jogador do meu Paraná inspirou a França a fazer gol com a mão para se classificar, constatando). – por juca (josé zockner) / curitiba

PEQUENAS CONSTATAÇÕES, NA FALTA DE MAIORES.

Constatação I

O Ratinho, há tempos, declarou – e sua frase teve ampla repercussão entre jornalistas, críticos, telespectadores, etc. – que se houvesse intenção de educar o povo brasileiro, utilizando essa notável mídia que poderia ser a televisão, os programas da Fundação Roberto Marinho, os tele-cursos, seriam levados ao ar em horário nobre e não praticamente na madrugada. E tudo ficou na mesma.

Constatação II (Para recitar pra ela).

Que estranho !

Ontem a conheci

E parece que a vi

Desde antanho*.

*Antanho = Antigamente, outrora.

Constatação III

Quando o septuagenário leu o texto do escritor uruguaio Mario Benedetti, intitulado Síndrome, se sentiu perfeitamente identificado com o autor:

“Todavia tenho quase todos os meus dentes

quase todos meus cabelos e pouquíssimas cãs

posso fazer e desfazer o amor

subir uma escada de dois em dois

e correr quarenta metros atrás do ônibus

ou seja que não deveria me sentir velho

mas o grave problema é que antes

eu não me fixava nestes detalhes”.

Constatação IV

A doce ilusão sempre acaba redundando amarga…

Constatação V

A loira burra que faz operação plástica, em certas regiões do corpo, quase sempre as mesmas, muda apenas o invólucro…

Constatação VI (De conselho isonômico).

Se você tem um filho de 20 anos que não quer estudar e, muito menos, trabalhar, não corte a mesada dele. Afinal, tá cheio de político e administrador que não faz nada e nem por isso ele tem os seus proventos cortados.

Constatação VII (Via pseudo-haicai).

Quem se julga o tal,

Não dá outra:

Boçal.

Constatação VIII

O mais grave da ignorância é não se dar conta dela.

Constatação IX (Teoria da relatividade para principiantes).

Se a sabedoria pode conduzir à loucura, é muito melhor morrer louco do que burro.

Constatação X

Pobre é caloteiro; rico é inadimplente.

Constatação XI

Perguntou o médico psiquiatra ao seu paciente: -“E então ? Como é que vai indo ?”

Respondeu o paciente: -“Mais ou menos. Tenho administrado razoavelmente minhas crises conjugais, depressivas, financeiras e existenciais”.

Constatação XII

A humanidade é ineducável.

Constatação XIII (Ah, esse nosso vernáculo, via pseudo-haicai).

Na Alfama,

Havia uma azáfama

Em busca de fama.

Constatação XIV

Ronca a mulher,

Ronca o cachorro.

O que mais se quer ?

Que, pelo menos, em coro.

Constatação XV

Rico tem necessidades imperiosas; pobre, é afoito.

Constatação XVI (Via pseudo-haicai).

Quando ouviram meu canto,

Os críticos, com a ousadia,

Fizeram cara de espanto.

Constatação XVII (Ah, esse nosso vernáculo).

O abúlico, metido a áulico, não sabia jogar bolinha de búrico. (No Rio de Janeiro, prezado leitor, se diz búrica).

Constatação XVIII (Via pseudo-haicai).

Truco, sem lúpulo,

É falta total

De escrúpulo.

Constatação XIX

Em certos países, quem consegue trabalho, consegue; quem não consegue, não consegue e fica por isso mesmo. Elementar, meu caro Watson…

Constatação XX (Via pseudo-haicai).

Alma, já não havia.

Mostrou, até,

Sua radiografia.

Constatação XXI

A grande incidência

De assaltos na rua

É uma verdade nua e crua,

Uma eterna reincidência.

Constatação XXII (Via pseudo-haicai).

Sua conversa opaca

Enchia a paciência

Paca.

Constatação XXIII (De alguma derrota de algum dos nossos times, algures, via pseudo-haicai).

Ficamos todos aturdidos

Com os três a zero.

Até hoje, ardidos…

Constatação XXIV (Ah, esse nosso vernáculo).

No decurso das férias, ela fez um curso para não mudar o curso das coisas. Acabou mudando o curso da minha história. Vou entrar com um recurso, sem decurso de prazo e sem muito discurso. Depois, participar de um concurso. Espero não ficar no percurso, pois creio que a banca não fará papel de amigo urso. Afinal, não se pode perder o “purso” (Perdão, leitores).

Constatação XXV (Via pseudo-haicai).

Até sem nitidez,

Deu para perceber:

Pura frigidez.

Constatação XXVI

E como dizia, via pseudo-haicai, o adepto do ócio total:

“Desocupação

Nunca gera

Preocupação”.

Constatação XXVII (gauchesca).

Me creia:

O doidivanas

Volta e meia

Se embriagava

Pois tomava

Dúzia de carraspanas

E ficava

De cara cheia.

Que “peleia”!

Constatação XXVIII

E já que falamos no assunto, em outra constatação, com a onda de violência, o perigo não está somente nas ruas; também, nas calçadas…

Constatação XXIX (Via pseudo-haicai).

Me abalo,

No trânsito,

Com tanto gargalo…

Constatação XXX

Rebola,

A Jane do Tarzan,

Toda gabola.

Até parece

A Chita pela manhã.

E quando anoitece..

MÁXIMA FORÇA de solivan brugnara / quedas do iguaçu.pr

O sonho e a força máxima.

O sonho é o deus infantil escondido atrás

do racional.

O sonho tece tratores

monta fábricas, compõe andaimes.

O sonho abre um shopping.

O sonho não é ingênuo.

O sonho rouba.

O sonho depreda.

O sonho angustia.

O sonho frusta.

O sonho quer ser eleito.

O sonho quer conhecer a África.

O sonho quer vender a cura de doenças.

O sonho planta quatro mil alqueires

de soja todo o ano.

O sonho quer escravos.

O sonho mata e desmata.

O sonho gerou esta era de desperdício.

O sonho é predador de outros sonhos.

O sonho quer mais.

O sonho mistura, aumenta, encolhe,

cães, gatos, bois e cavalos.

O sonho desmesura úberes e quer sempre mais leite.

O sonho.

 

 

O CULTO CARREIRISTA por ” o ruminante ” / belém


Todos nós sabemos que hoje o mundo está cada vez mais corrido, caótico, competitivo e stressante. A velocidade dos acontecimentos e do fluxo de informações estão fazendo das pessoas escravas de tecnologias que até pouco tempo nem mesmo pensávamos ter. O que deveria nos beneficiar está nos trazendo mais sofrimento, pois hoje ficamos angustiados quando acaba a bateria do celular, quando não podemos acessar a internet, quando perdemos algum e-mail que era importante, além de muitas outras coisas.

Ao observar essas coisas comecei a analisar nossas vidas, valores e o que tem sido considerado importante nos dias de hoje. Logo no primeiro momento percebi que cada vez mais as empresas estão nos levando a crer que a carreira profissional é a nossa maior realização na vida, como se sucesso no trabalho fosse sinônimo de felicidade. Também pude notar que muito da tecnologia que temos é para trabalharmos mais rápido e sermos mais eficiente. Não consegui de deixar de pensar em alguns pontos, por exemplo:

  1. Telefone Celular: desde o ínicio de minha carreira não tenho um celular próprio, estou o tempo todo conectado a disposição da empresa, podem me ligar a qualquer hora, seja lá o que estiver fazendo. Temos um coleira eletrônica e por esta somos pagos para usar.
  2. Notebook da empresa: se a empresa lhe concede um computador portátil, pode ter certeza, é para você poder trabalhar em qualquer lugar. Não acredite que se a empresa lhe acrescentar no pacote um sistema de internet móvel via celular você vai estar com vantagens, a única garantia é que além de te ligarem a qualquer hora, você ainda vai receber tarefas onde estiver.
  3. Cursos Motivacionais: esse é um dos piores, pois com o tempo os empresários descobriram que é só falar ou fazer algumas coisas estimulantes aos empregados para obterem maior produtividade. Estamos sendo tratados como cachorrinhos em adestramentos, recebemos um agradinho, fazemos o truque e somos premiados com um biscoitinho.
  4. Livros de auto-ajuda: talvez pior do que os cursos, as empresas tem feito um marketing enorme sobre livros de liderança, motivação, mudanças e muitos outros assuntos que, no final das contas, só querem nos levar a dar mais de nossas vidas para eles.

Acredito que muitos podem vir a me interpretar como um preguiçoso que não quer trabalhar, ou até receber críticas de que eu estaria sendo influenciado pelo comunismo ou outras linhas de pensamento socialista, mas na verdade não é isso que me estimula a escrever.

Com as observações que venho fazendo, percebi algo: não damos mais o mesmo valor para nossos familiares e vida pessoal, damos o nosso sangue para sustentá-los, mas o que eles mais querem é que estejamos por perto, que possamos passear no praça ou praia com nossos filhos e conjugês. Pode não ser tão perceptível, mas estamos nos colocando em uma situação que somente nos sacrificando ao extremo podemos dar tudo o que nossa família talvez nem precise, deixando de fora o mais importante: pais, mães, maridos, esposas e filhos que são muito mais importantes.

Emprego, trabalho, carreira pode ser que traga felicidade para um indivíduo, desde que não seja por uma influência imposta pelo culto ao profissional, mas por um gosto pessoal, se isso lhe dá felicidade, seja feliz assim. Hoje nos está sendo imposta a idéia que o sucesso profissional é a realização de nossas vidas, mas será que ao final de tudo, quando olharmos para trás terá valido a pena deixar de brincar com nossos filhos? Será que agüentaremos a saudade de nossos pais que estão envelhecendo e abruptamente podem nos deixar? Não seria melhor aproveitar o máximo de nossas vidas com quem amamos? Ainda que tenhamos que viver de forma mais simples, acredito que eu sei a resposta, pelo menos para mim.

O ÚLTIMO BLEFE – de marilda confortin / curitiba

 

Tanto blefou esse jogador

que a si mesmo enganou

temendo perder no amor

mentiu nas cartas, apostou.

Usou todo seu ouro, o tolo

para comprar bijouterias

nada muito valioso, só “rolo”

vaidoso, usava uma  por dia.

Manteve um coringa na manga

para qualquer eventualidade

caso aparecesse uma franga

ele (a)batia, sem piedade.

Desprezava as juras de morte

dos pobres e infelizes traídos

acreditava tanto na sorte

que nem sequer dava ouvidos.

Desperdiçou muitas cartas

perdeu a paciência, contudo

gastou sua palavra farta

com quem era surdo-mudo

Mas um dia, virou um valete

e o espada, acreditando na fama

subiu na mesa e gritou o blefe

trucou, sem ter nenhuma dama.

Foi então que se deu conta

que era sua ultima rodada

e que boa dama não se encontra

em baralho de carta marcada.

Pobre rei,  ficou nú, derrotado,

sem castelo, sem posses nem trono

teve todas as prendas do reinado

e hoje, nem desta coroa ele é dono.

 

 

NOSTALGIA – de eunice arruda / são paulo

Amo
os
casais

Ombro
a
ombro

Pisando a mesma calçada

Amo os casais que
atravessam
ruas
estações

Seguram as
mãos
não
o tempo

Amo
os
casais

Que permanecem

SÓ PARA ISSO, SÓ PARA TUDO, SÓ NOS INTERVALOS por zuleika dos reis / são paulo

Quando ouço alguém dizer que fulano nasceu só para isso, quase morro de inveja. Robert de Niro engordou quarenta quilos para interpretar O TOURO INDOMÁVEL. Carlos Vereza, que odiava cigarros, aprendeu a fumar quatro maços por dia para representar Graciliano Ramos na prisão, nos tempos do Estado Novo. São atores. Que mais poderiam ser?

Francisco de Assis conversava com os bichos. Chamava o Sol e a Lua de irmãos. Era santo, nada menos do que isso. Nada a fazer senão ser santo.

Dos navegadores portugueses Fernando Pessoa aprendeu o mote “navegar é preciso, viver não é preciso” (existem outras versões sobre os verdadeiros autores do referido mote, o que não vem ao caso, no presente momento) e seguiu-lhe, à risca, na linguagem, a rota de navegações sem descanso. Era poeta. Nada a ser senão poeta, e apenas isso. Se tivesse casado com a filha de sua lavadeira ai, pobre dela, a filha de sua lavadeira!

Há, em contraponto, os que nasceram para tudo e se contentam com isso. Os antropófagos. Os opíparos. Dormem em todas as camas e sobre todos os corpos; provam dos mais incompatíveis e inconcebíveis manjares; trabalham como  escafandristas desde o Mar Morto até ao Mar Vermelho; trazem no bolso  receitas para a cura de cada um dos males do mundo, tanto quanto para a cura do próximo mais próximo; portam sempre algum isqueiro para fumantes (a mais recente espécie de criminosos surgida nas ruas de São Paulo) que precisem infringir a Lei que proíbe o fumo em recintos públicos e fechados.Enfim: nenhuma escolha senão ser múltiplo.

Há, por fim, os que só acontecem nos intervalos. Nos intervalos entre os noticiários crêem no Futuro. No brevíssimo intervalo entre as dívidas assimilam novas necessidades de consumo. No intervalo entre silêncios sem sentido escrevem poemas os quais, por um segundo, consideram perfeitos. No intervalo entre pânicos

ensaiam grandes gestos de coragem que começarão a praticar na próxima segunda-feira (Como algum novo regime alimentar para perder vinte quilos).Nos intervalos entre ceticismos absolutos convencem os outros de verdades insofismáveis. Nos intervalos… arrumam as malas para partir mas jamais partem.

Assim, os que nasceram só para isso; os que nasceram só para tudo; os que só acontecem nos intervalos. Nada a dizer dos grandes BURACOS NEGROS.

O CORVO e a POMBA de joão batista do lago / são luis.ma

Para Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa e Machado de Assis
(in memória)

.

Ah, aquele dia, naquele dia…
Hora em que à hora é morta!
Cansado já desta síntese do ser,
pensava apenas desfalecer.
Muito pensara. Muito estudara.
Fatigado devera estar e ser.

(Assim falara Edgar Allan Poe:
“Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore –
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber door.
“’Tis some visitor, “I muttered, “tapping at my chamber door –
Only this and nothing more.’”)

A mente a pique de pensamentos diversos me extasiava.
De um lado a outro – dentro do quarto – fazia avenidas
Como quem buscava guaridas para sua alma em feridas.
De repente, naquela hora, ouço batidas à porta:
“- Quem será a esta hora?” – indaguei-me por um momento.
Mas ainda cheio de pressentimento relutei ao atendimento,

Apesar do temor rápido consenti-me saber de quem
o lamento.

Ainda ocorre-me à lembrança:
o acontecido foi na primavera.
Mês em que a mente gera quimera,
que faz de toda gente que desespera
do saber toda sabedoria da filosofia,
que antes de causar harmonia,
por certo, deixa o ser em agonia e
tormentoso por adquirir consciência,
e de toda ciência obter a leniência
da razão mais pura do espírito em folia.

É prudente, então, atender à porta e
saber que sombra há por detrás dela.


A porta escancarou e nenhum vulto assomou.
“- Será que estou ficando louco!” – exclamei.
“Por certo ouvi há pouco o leve toque de alguém”.
Lá fora tão-somente a noite lúgubre brandia
nas asas de um vento frio do sombrio negrume…
De repente… Nova batida leve a chamar;
agora não mais à porta, mas na janela a tilintar.
Abro-a… Como um raio uma ave entra a se instalar.

E como diz no verso de Pessoa
Do Corvo contumaz que dele soa:
“Não fez nenhum cumprimento,
não parou nem um momento,
mas com ar solene e lento
pousou sobre os meus umbrais”.

E assim sem qualquer argumento,
instalou-se a Pomba no meu assento,
sem qualquer linguagem de lamento,
auscultava meu espanto do momento.

E assim, abstrusa e vaga, reinava impávida
sobre minha pilha de muitos saberes,
sem comentários, sem quaisquer dizeres,
como se esperasse de mim o primeiro verbo.


“- De qual confins sucedes ó Pomba rara?”
E ela, tranqüila e calma, apenas me olhava
como quem sente pena de um espírito avaro.
“- Porvindoiro donde vindes?” – quis saber.
“- Venho de dentro do ser…” – resolveu esclarecer.
“- … donde só de lá se pode nascer”.

Não me fez clara aquela resposta vaga.


“- Senhora vou repetir: donde vens em tua saga”.

“- Liberdade não se amarra ao tronco;
não se a prende feito dona rara ou coisa cara,
tampouco dela se aproveita para tanto entorpecer,
não é simples saber da vilania para enriquecer,
não é apodrecer-se como árvore de podre saber,
nem mesmo é toda verdade já tão gasta de filosofia
abarrotada de ciências e iguarias fáceis
de tanto ditas – por isso malditas – já em cada renascer”.

“Esta ave delira” – pensei sem exclamar.
“Não me convém como Corvo a ela retaliar”.

“- Donde venho!? Já logo sabereis, ó Corvo,
antes é preciso dizer-te: – Não estou a delirar!”.

(Se confuso já estava
o Corvo mais espantado ficou.
Considerou um estorvo
quando seu nome ouviu, pois
não o dissera em momento algum
– disso tinha certeza –
como com tanta clareza
a Pomba o revelava com altivez?
Por certo aquilo era um sonho
já produto do cansaço.
Resposta do abandonar-se
num quarto vazio e frio
entregue ao compasso de passos
num vazio calafrio
trazido pelo primaveril
da noite febril
do viver ardil.)

– Por quê não voltas à tua origem?
Por quê insistes nesta miragem?
Nesta tua presença inoportuna
realizada de forma gatuna
roubando de mim o sono fugaz
todo meu descanso e toda minha paz?

– Nunca mais –
respondeu a Pomba com convicção.

E assim falou Machado de Assis:
– Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: “Nunca mais”.

“- Que dizes?!
‘- Nunca mais! -’


Então serei condenado a viver com tua sombra
a me torturar todas as noites (e dias)? Jamais.
Vai-te daqui para as profundezas ou
Some-te para tuas clarezas com tuas incertezas;
não te quero mais a atormentar meus ais.”

“- Nunca mais” – repetiu.

“- Já que te instala nos meus umbrais
serás companheira e confidente;
vou declarar-te todas as dores,
falar-te de todos meus amores,
cantar-te todos meus horrores,
tudo isso e coisas que tais.”

“- Nuca mais” –
sentenciou a Pomba.

“- Serás a férula dos meus pensamentos
terei em ti a balança de todos os juízos
assim estarei certo de chegar aos paraísos
às cortes donde não se dão os lamentos
e por toda eternidade serei par dos justos
sendo assim de todos os seres o Augustus”.

“- Nunca mais” –
insistiu a ave rara.

“- Então não me atormente a alma já cansada,
toma teu tino e some na negritude da noite
donde me apareceste num agouro brilhar
e desde aquele instante vives a atormentar
este velho Cavaleiro do Templo de Sofia
oráculo de deuses dionisíacos da sabedoria”

“Nunca mais” –
insistiu a criatura.

Ah, aquele dia, naquele dia…
Hora em que à hora é morta!
Cansado já desta síntese do ser,
pensava apenas desfalecer.
Muito pensara. Muito estudara.
Fatigado devera estar e ser.

(Já manhã o sol se fazia presente
refletindo luzes em demasia no meu rosto.
Ausente.
Consciente e inconsciente.
A noite foi uma orgia!
A noite foi pura fantasia!)

Nunca mais…
Nunca mais…
Nunca mais…

Um sonho, nada mais.

Nunca mais.

———-

(in EU, PESCADOR DE ILUSÕES, 2006)

O ATEISMO DE SARAMAGO por hamilton alves / florianópolis

Nenhuma pessoa, por mais considerável seja seu cabedal de conhecimentos, cultura, etc., tem condições de afirmar, categoricamente (a não ser que seja muito leviana), que Deus não existe. Assim como, de outra parte, não se pode dizer o contrário. Nem uma nem outra das duas correntes têm suficiente cacife para dizê-lo com profundo conhecimento de causa. Deus continua sendo uma incógnita. Há sábios de nomeada, como Kierkegaard, Chesterton, Unamuno e tantos outros que são acirrados defensores da ideia de que Deus existe. Outros tomam partido contrário e são igualmente nomes notáveis da ciência.

José Saramago, escritor, Nobel de literatura, de vez em quando, molha a sua pena, que vai meio gasta a essa altura (nunca mais escreveu um livro que preste), para tomar partido contra a existência de Deus.

Que sabe um escritor desse assunto?

Será ele um filósofo de alguma escola famosa?

Será um teólogo de formação em alguma universidade ou doutourou-se nesse tema?

É apenas e tão somente um escritor.

Um escritor escreve livros.

Devia se limitar a essa função e não dar palpite sobre o que não conhece especificamente. Ou conhece pouco. Ou nada.

Numa entrevista que concedeu a um jornal, falando do lançamento de seu novo livro, que leva um título bem sugestivo, que deve envolver tema religioso – “Caim” – volta a repetir o que se sabe, sendo ateu de carteirinha – que “as religiões têm feito mais mal do que bem à humanidade e que, por isso, o mais sensato é acabar com elas”.

E remata, a certa altura, o Sr. Saramago:

“O cérebro humano é um grande criador de absurdos. E Deus é o maior deles”.

Seria de responder que o cérebro humano, sim, faz coisas capazes de inspirar um homem aparentemente tão certo do que diz que o levou ao comunismo, mesmo sabendo dos horrores que esse regime causou em todo mundo, especialmente na URSS, onde Stalin imperou longos anos, cometendo toda sorte de atrocidades, ao regime de Castro, com um cartel semelhante de truculências, vindo Saramago declarar-se há pouco contra medida de Fidel por ter assassinado três jovens, que numa balsa pretenderam fugir do “paraíso” cubano. Antes tinha jurado simpatia ao regime de Fidel – “José Saramago, Nobel de literatura, proclama sua adesão à revolução cubana” – foi mais ou menos o que disse quando de sua visita a Cuba.

Acredite-se num homem que assim tergiversa e muda de bandeira da forma como lhe sopram os ventos.

“Deus não existe fora da cabeça das pessoas que Nele creem” – foi outra de suas afirmações nessa entrevista.

Que certeza fundamental terá Saramago de que Deus existe ou não?

Deve tê-la descoberto numa bola de cristal ou na consulta a alguma pitonisa.

Até hoje, que eu saiba, não apareceu nenhum sábio conhecido capaz de afirmá-lo com absoluta segurança de sua veracidade.

Saramago faria melhor se cuidasse de sua literatura, que nesses últimos tempos tem ido tão mal.

Rumorejando (A chegada da estação primavera em Curitiba ainda aguardando). – por juca (josé zockner)

PEQUENAS CONSTATAÇÕES, NA FALTA DE MAIORES.

Constatação IJUCA - Jzockner pequenissima (1)

Rico é aristocrático; pobre, é metido.

Constatação II

Rico é pragmático; pobre, é lunático.

Constatação III

Vai começar o debate,

No horário político,

Terrível e execrável,

Eivado de duvidança

E desesperança.

Prepare-se para ouvir disparate

E argumento nada analítico.

Bem melhor ouvir criança

Incluso na linguagem tatibitate.

Constatação IV

Rica tem o rei na barriga; pobre, todo ano, um filho.

Constatação V

Depois da vitória de Rubinho Barichello, em Monza, o piloto brasileiro, por quem a gente torce e sofre, afirmou e reafirmou que o momento é manter o pé no chão. Data vênia, como diriam nossos juristas, mas Rumorejando acha que é importante manter o pé no acelerador. A propósito das poucas vitórias de Rubinho, vale lembrar que Arquimedes proferiu: “Dai-me uma alavanca e um ponto de apoio que eu moverei o mundo”. Pelo jeito, Rubinho poderia dizer: Dai-me um bom carro na Fórmula 1 que eu serei o campeão do mundo…

Constatação VI (De um estulto perfil).

Era um borra-tintas,

Um exímio sarrafaçal*,

Metido a dar fintas.

Um insigne boçal.

*Sarrafaçal = “1. indivíduo inútil, preguiçoso”.

2. “profissional inapto” (Houaiss).

Constatação VII (Teoria da Relatividade para principiantes).

É muito melhor o nosso time fazer um gol com a mão e o juiz validar, ainda que a gente fique morrendo de vergonha, do que o nosso time sofrer um pênalti e o juiz não marcar.

Constatação VIII

Não se pode confundir barulho com baralho, muito embora no jogo de truco que é jogado com baralho e que onde este assim chamado escriba não encontra adversário, quem faz muito barulho, às vezes, ganha o jogo…

Constatação IX

O detetive

Particular

Contratado

Pra seguir

E flagrar

Um marido,

Acostumado

A desmando,

A trair,

Levou

Azar:

Desligado,

Ficou

Caído,

Ferido

Quando

Escorregou

Num declive

E tropeçou

Num aclive.

Coitado!

Constatação X

O posudo,

Em baixa, estava.

E se achava

Sortudo

E que tava

Com tudo.

Constatação XI (De um pseudo-soneto).

Apresentou uma lista pra ele

Ele ia ter que dormir no paiol

E que ela não era seu lençol

E que não tinha pena dele.

Ele ficou muito triste e azedo,

Dormir naquela espécie de macega

Ali, seria difícil um esfrega-esfrega,

E viu que era sério, não era brinquedo.

Foi consultar uma benzedeira

Dizendo que teria de ficar no estaleiro

E desfilou sua choradeira,

Como era época de nevoeiro

Poderia pegar um resfriado

E que tal jamais acontecera com algum seu antepassado.

Constatação XII

Foi a tartaruga

Mesmo afrouxando o passo,

Que chegou ao destino

Com o sol a pino,

Na casa do namorado

Cansada,

Cheia de ruga,

Um bagaço?

Coitada!

Coitado!

Constatação XIII

Quando meu celular me chama, eu já sei quando é a minha sogra que está chamando. O celular não tilinta, nem vibra. Ele vocifera, esbraveja, impreca, rosna.

Constatação XIV

Pela intenção do Brasil de comprar aviões de combate na França, sem levar em conta as ofertas da Suécia e dos Estados Unidos, o nosso país contaria, dentre outros, com o apoio daquele país para o Brasil fazer parte do Conselho de Segurança da ONU. Este negócio do Brasil ser membro do Conselho de Segurança me deixa numa dúvida crucial que me faz relembrar com o seguinte fato, já contado na coluna: Em 1970, este assim chamado escriba estava estagiando na França, mercê de uma bolsa de estudos, oferecida pelo governo francês. Aproveitando as curtas férias nas festas de fim de ano, resolvi conhecer Londres. Chegando a este país, me dirigi às informações turísticas, em busca de um hotel barato. À atendente, com cara de enfastiada, perguntei: “Do you speak french?” O francês era minha língua estrangeira mais fácil para me fazer compreender e entender. E ela, me olhando de alto a baixo, com desprezo: “What for?” (Para quê?)

Constatação XV

Com relação à constatação anterior, talvez a gente esteja por fora. Quando o presidente Lula disse, no dia 7 de setembro, que o Brasil vai comprar os aviões da França ele, apenas, tão-somente, queria impressionar a mulher do presidente Sarkozy, madame Carla Bruni, que pelos seus dotes merece os encômios respeitosos de todos.

Constatação XVI

Rico é agradável; pobre, censurável.

NAURO MACHADO e sua POESIA / são luis.ma

Maldita a vida me seja,
três vezes maldita seja
a vida que me desastra
e que por ser-me finita,
três vezes seja maldita
e amaldiçoada madrasta.

Quem me fez como um qualquer,
dormindo aonde estiver,
saiba deste desprazer,
para sempre e desde saiba,
para que o seu Ser não caiba
na pequenez do meu ser,

que eu não pedi para estar
com minhas pernas no andar,
com minha emoção a sentir
este universo que tapa
a minha boca num tapa
e a minha língua sem Ti,

essa coisa que fede a iodo,
como a água do mar ou do
envelhecimento o rim,
essa coisa que derrama
seu púbis velho de chama
a extinguir-se quase ao fim,

corpo de Deus! Corpus Christi!
Viste-O algum dia? Tu O viste
sequer um dia como tu?
Integral e à dor exposto,
desde o cio ao suor do rosto,
desde impotente até nu?

Os meus membros são crepúsculos!
São sangue e iodo os meus músculos,
é iodo e sangue a minha cruz.
Por que não nasci não sendo?
Por que, ao amanhecer, acendo,
noutra treva, cega luz?

Se além da terra existe ar,
se além da terra ainda há
por menor que seja, um seja,
como à noite volta o dia,
como, ao corpo, o que o procria,
como, em mim, meu ser esteja!

Dentro ou fora, qual gaveta,
para que, em mim, o ser meta
quem, em mim, é este meu ser,
olho, em volta, à minha volta,
e olho nada — só o que solta
de qualquer um: quem ou o quê?

Nada é, pois tudo se sonha.
E se alguém me falar: ponha
tudo o que lhe resta, e resta
no que, ao pôr-se, se me põe,
para que em mim meu ser sonhe,
vivo morto — e a morte empesta!

Como dar à vida pôde
o nada ser que sou de
outro feito pelo ser?
De outro ser, igual a mim,
mas de outro início a outro fim,
noutra vida até morrer?

Ó envelhecer do meu estar!
Da leitura de Balzac,
de La Comédie Humaine,
se passaram tantos anos
nos malogros desenganos,
sem disfarce ou mise-en-scène.

Bela Eugénie Grandet:
sois lembrança a anoitecer
pelas tardes do meu Carmo,
quem me traz a quem não sou
na usura do pai Goriot
que me a mim dá, para dar-mo

no meu duplo a ser mais dois,
quais búfalos que são bois,
ao mar meu a ser mais mar de
ontem que ao ser-te, alma, foi-te,
nas noites que são mais noite,
nas tardes que são sem tarde.

Só me lembro das andorinhas,
que hoje são luas-vinhas
que iam e vinham às seis,
só me lembro das sequazes
na imprecisão de alguns quases,
na distância de vocês!

Róseas ruas da memória,
róseas ruas hoje escória
que a soçobrar mais me sobe,
afundai-me na lembrança
hoje cravos da criança
que meu cadáver descobre.

Como, à noite, acendo a lâmpada,
para imitar (rampa da
noite) uma inútil manhã,
como o como que mais como,
assumo, na idéia, o pomo
da primitiva maçã.

Assumo o dia original.
Nascimento à morte igual,
nascimento em morte assumo
nesta página onde, em branco,
minha vida inteira arranco
do nada em que subi. E sumo.

E sumo a sós. Mas prossigo:
“na idéia é bem maior o trigo
que na boca o próprio pão,
na idéia janto a sós, comigo,
o pão real que mastigo
feito de imaginação”.

Azul manhã em contumácia!
Negra noite, azul, te amasse
a idéia sem pensamento,
te amasse a própria Idéia
reduzida a uma hiléia
sem ar, floresta, rio, vento.

Locador de um condomínio
frustrador de um hímen híneo,
frustrador de um hímem são,
locador que loca um louco,
de carne e ossos sou reboco
deste barro em maldição.

Tudo é farsa, menor dor.
Sou, em mim, o que me sou
desde o ventre que me fez.
E contemplo a arraia, e raia
dela, como de uma praia,
a noite toda. Ei-la aqui. Eis:

andaime, sucata, ferro,
vagido, vagina e berro,
viatura e papelório,
passa tudo, e é a viatura
conduzindo à sepultura
meu ser morto. E sem velório.

Pois viu a terra e além bebeu-a,
pois viu o tempo e disse: é meu, à
solidão cerzindo a roupa
onde, se me dispo, visto
o sexo nu de algum Cristo
que, despido, não me poupa.

Dez anos de coito cego
são as metáforas que lego
à solitária da escrita,
aonde não chega ninguém
exceto o vazio que vem
de uma montanha infinita.

Ao ouvir da tarde: fracasso!,
conquanto, vergando, os braços
dissessem: pára, enfim finda!
e morre, ó alma desgraçada,
eu ousei retornar do nada,
ousei retornar ainda.

Abandona, ó rei, abandona
o abono de qualquer cona
além do sangue e da queixa.
Cerca a tua casa e a mura
com o suor da tua estatura,
e deixa o remorso, deixa-o!

Senhor do teu sofrimento,
vai-te com o diabo e o vento,
vai-te com a noite e o monte.
E fala, ainda que mudo,
que, do nada, igual a tudo,
sobre ambos nasces. E põe-te!

Elimina todo se
da pretensão de existir
na existência que é demérito,
e no não haver nascido
elimina-te existido,
elimina-te pretérito!

Eliminar o talvez.
Não saber dia, hora ou mês,
não saber até o minuto
em que me vim sendo feito
plantando a morte no peito
e o espinhaço no meu fruto.

Por que o vemeversoverbo
da herbívora erva que eu erbo
no meu plantio masculino,
inverte o chão do seu galho
arrancado do assoalho
repicando como um sino?

Ter olhos-Deus! olhos-sóis
tem-no o Deus que cego a sós,
tem-no o horizonte a pôr-se
como colírio em dordolhos,
tem-no quem me olha nos olhos
como se cego eu já fosse!

Ah!, se a pedra me fizesse
fazer-me cobrir quem desce
à região do ser meu se,
para não haver nascido
ou o houvesse enfim já sido
sem que eu dissera: nasci!

O PANDEIRO e SEM EIRA – de raymundo rolim / curitiba

O pandeiro

O sol já vinha de revirar a noite de boca pra cima quando “o samba descansou, porque um samba, jamais se acaba”! Foi esta a última frase que proferiu o Zé do Morro antes de fechar o paletó. Ele que sabia gingar e entendia da bocada de além fumo e aquém morro. Muitos mares e muitos portos seguros de terras estrangeiras conheceu o Zé. Até sabia falar palavras e frases inteiras em esquisitos idiomas. Largou mão de tudo! Agarrou-se com o samba. E compôs. E ficou alegre. Alegre de morrer.

Sem eira

Estava convicto de que seria alguma coisa na vida; como dizem! Desde que tivesse qualquer importância. Qualquer bobagem lhe soava como sendo uma boa coisa, desde que fosse imediatamente reconhecida como uma bobagem. Já era um reconhecimento e logo tinha importância! Aí, pensou bem e de novo e não achou mesmo lucro algum em se tornar o maior criador de pernilongos. Além do processo da cadeia alimentar, para que é que servia exatamente, na ordem do dia urbano, um pernilongo? Achou tão boba essa historia que não a quis, deixou-a pela metade. E mesmo porque os sapos andavam tão escassos na cidade! E sapos na cidade não tinham lá tanta importância.

ATÉ A NOITE ACABAR de otto nul / palma sola.sc


Queria te encontrar

Na lua, na rua,

Em lugares assim

Sem endereço nem fim

Queria te ver de novo

No meio do povo

Queria te olhar, te ver,

Onde possa ser

Te falar, te falar,

Longamente

Sob o fulgor esplendente

Da rua, da lua

Em lugar solitário

Sem ninguém notar

Na rua, na lua,

Sem parar

Queria te amar, te amar,

Até a noite acabar

Rumorejando (Pelo jeito que o futebol está se caracterizando, quem fizer mais falta é que ganha a partida?, perguntando) – por juca (josé zokner) / curitiba

O terror que matura

I

Oriunda de respeitável progenitura:

A mãe, professora de corte e costura;JUCA - Jzockner pequenissima (1)

O pai, escriturário na magistratura,

Era, ela, uma formosura,

Uma pintura,

Digna de figurar numa gravura,

Ou numa xilogravura,

Daquelas com moldura,

Trabalhada em artística ranhura.

Mediana estatura,

Cabelos pretos, sem tintura,

Dentes, perfeitos, uma alvura;

Sorriso, sem amargura,

Franco, aberto, uma quentura;

A mirada, uma brandura,

Muito límpida, muito pura,

De olhos de jabuticaba, uma pretura;

E um poço de ternura!

Ah! E a cintura!

Parecia duma tanajura…

Educação, nem falar. Que finura!

Dada a não pouca leitura,

De sutil e elevada literatura,

E um dedilhar, sem partitura,

Além de se dedicar à feitura

De origami, de dobradura.

E, no jardim, à floricultura,

Onde, às vezes, ouvia o canto da saracura.

II

Ele, era só feiúra,

Como uma caricatura.

Duma lividez, duma transparente brancura

Num monte de ossatura

Como se filho fosse de alguém de média estatura,

Mas de não muita largura.

E do Cavaleiro da Triste Figura

Àquele que, até com moinhos, mostrou bravura

Não tendo como vestidura

A respectiva armadura.

Além disso, morando numa lonjura.

E, mais, um escrachado caradura

De péssima postura,

Ou melhor, somente impostura:

Noites a fio, jogava, com fundura,

Em busca de fácil fartura;

À mão, um copo daquela bebida de lúpulo, de levedura

E um eterno cigarro, alterando, dos lábios, a comissura.

Receitas, infalíveis, de fazer estrago em qualquer criatura.

Tal proceder, sem dúvida, merecia ampla censura.

Não confundir com àquela do tempo da ditadura,

Quando até se usou a indefectível tortura,

Nos governos da chamada linha dura,

Bem antes do que se convencionou chamar Abertura.

O salário, parco, da Prefeitura,

Dum trabalho que exercia com sinecura,

Na base de quem não se apura,

Obviamente, redundava numa apertura.

As dívidas, não poucas, proveniente de mordedura,

Mesmo que firmadas numa caprichada escritura,

Fatalmente seguiam o destino da pendura

Que postergava, com ensaboadura,

Para uma época futura

E que, da memória, apagava com uma varredura.

De inteligência, não era nenhuma cavalgadura,

Daquelas que só falta a ferradura.

Era capaz de se pôr a falar, com desenvoltura,

Sobre, do quadrado, a curvatura

Ou, da circunferência, a quadratura.

E, se porventura,

Cometia alguma outra loucura

De imitar, de alguém, a assinatura,

Perfeita e sem rasura,

Em cheque, promissória ou fatura,

Fruto de condenável urdidura,

Resultava, se descoberto, nessa amargura

De ter que conseguir um alvará de soltura,

Alegando, ao delegado, tratar-se duma travessura

E no seu ilibado currículo, uma simples arranhadura;

Que não tinha intenção de viver numa cela escura

E que, afinal, toda a sua vida, agira com extrema lisura.

III

Essa atitude devassa, que o estado físico tritura

E o bolso, a conta corrente do banco, perfura,

Para ele, era adrenalina total, uma aventura,

Que foi obrigado de encerrar, uma fissura,

Quando sua saúde se deteriorou e sofreu uma ruptura.

Logo, ele, que nunca tivera um resfriado, ou uma rasgadura

E, muito menos, alguma forma de rendidura,

Parecendo, tudo, praga, maldição ou esconjura,

De nada adiantando os santos invocados em benzedura.

É que numa amorosa tertúlia, sobreveio uma velhice prematura

Àquela que deixa, um, e a parceira, em desventura,

E provoca na alma e no ego profunda machucadura.

Pouco antes, já vinha sentindo, no estômago, uma queimadura,

Somado a um mal-estar, a uma teimosa tontura,

Que o deixava, por um momento, com a vista obscura

E com a possibilidade de cair e sofrer uma fratura.

O médico, amigo desde a infância, adepto da natura,

Pespegou-lhe um susto, numa sincera e repreensiva secura:

“Não se trata de querer que você viva numa clausura.

No entanto, se dessa vida desregrada não abjura;

Se continuar nessa farra, para você uma gostosura;

Não se livrar do vício, dessa imbecil escravatura,

O teu amanhã nem eu nem ninguém te assegura,

Pois você, bem sabe, está cavando a própria sepultura.

Entretanto, preste atenção, você facilmente se cura:

Primeiro, tem que parar de comer fritura

Que absorve rios de gordura;

Não fumar, nem beber, dormir cedo, nada de diabrura;

Tem que consumir muita verdura,

Muita fibra e fruta não ácida, madura;

Nada de doce tipo quindim ou rapadura,

Se não vai ter – já, já – de usar dentadura”.

Os amigos acharam tudo aquilo uma frescura,

E que a prescrição parecia mais uma absurda propositura,

Ponderando que uma vida, assim, nem santo atura.

De início, o reproche, ele classificou de grossura,

Mas, apavorado, ou como dizem os italianos, numa “paúra”,

Resolveu mudar de vida, para uma mais segura.

Indubitavelmente, foi um tento de bela feitura:

Má alimentação, vícios e toda essa nomenclatura

Foi mudada com força de vontade de quem tem envergadura;

Passou a estudar e ler livros de grossa brochura

E a escutar música clássica e popular de fina tessitura,

Já que havia desenvolvido o bom gosto, por aquela altura;

Optou em fazer uma faculdade, uma Licenciatura,

Visando o almejado canudo, numa cerimônia de formatura.

Chegou até a pensar em Engenharia ou Arquitetura,

Sem descartar Agronomia, dado a discorrer sobre agricultura.

Melhorou o visual, que a gente, a si mesmo, augura:

Cabelo e barba aparados, dois banhos diários, total limpadura;

Entrou numa academia de ginástica para fazer musculatura

Com a intenção de ganhar peso, conforme, por aí, se assegura

E ficar com o tórax como os lutadores na era da gladiatura;

Passou a freqüentar ambientes de pessoas de boa catadura,

Onde o gosto apurado, aliado à boa educação, sempre fulgura;

A usar ternos com tecidos de excelente textura

E gravata, com grife, em camisa de abotoadura;

Pagou os credores, que não desgrudavam como atadura,

E, mais adiante, comprou, do ano, uma possante viatura,

Bem espaçosa, “nada de apertos, nada de miniatura”.

Também, numa pechincha, um apartamento, não de cobertura,

Mas tendo sacada com churrasqueira, para grelhados e assadura.

E suíte com hidromassagem, portaria e tetra-chave na fechadura,

Em imóvel localizado num terreno ajardinado, numa planura.

O pagamento: uma entrada, mais 20 anos, com juros da Lei da Usura,

Aproveitando um desconto graças a famosa Lei da Oferta e da Procura,

Àquela, que político promete revogar ao defender sua candidatura.

Decorou, tudo, com móveis em cedro, com caprichada entalhadura

E tapetes, feitos à mão, de razoável espessura.

IV

Nessa história, em condições normais de pressão e temperatura,

Deveria haver, com a jovem do início, alguma relação ou ligadura.

Mas, não. Ela só foi aqui lembrada por sua beleza, sua candura.

Seu sorriso, seu olhar, sua sensibilidade, sua doçura.

Bem! Cada um seguiu o seu destino, sem se cruzar, sem mistura,

Embora, o mesmo juiz de paz ter efetuado a legal lavratura.

E que passaram, em épocas distintas, a lua-de-mel em Cascadura,

Onde, anos após, retornariam para passar alguns dias em vilegiatura.

Ele, redimido, havia encontrado uma companheira, uma lhanura,

Gentilíssima, amável, cortês, sem um pingo de desmesura.

E ela, um companheiro, muito sério, trabalhador, uma polidura,

Um estudioso aplicado, um autodidata em matéria de cultura.

Obviamente, de todos as partes envolvidas, de amor eterno, muita jura,

Que, nesses casos, quase sempre, ao pé de ouvido se murmura

E, com ardor, se realizam num colóquio de extrema fervura.

Hoje, vivem felizes, com filhos, produto duma fértil semeadura

Numa paixão que, mesmo com a crise econômica, ainda perdura.

SOU DO TEMPO por sérgio da costa ramos / florianópolis

Não espalhem, mas sou do tempo em que o pão e o leite chegavam à porta da freguesia entregues em domicílio pelo leiteiro e pelo padeiro um a pé, o outro a bordo de uma carrocinha, com bagageiro de madeira, em cujos batentes eraSÉRGIO DA COSTA RAMOS 1produzido o aviso de sua chegada.

Sou do tempo – acreditem – do primeiro filme em cinemascope projetado em Florianópolis. Confessar um arcaísmo desses equivale a ser confundido com o primeiro a ser fotografado pelo “daguerreótipo”, o primeiro a tomar Coca-Cola no Brasil, com aquelas garrafinhas imortalizadas por Andy Warhol, junto com as sopas Campbell.

Tenho, sim, a coragem histórica de confessar que assisti a O Manto Sagrado, com Richard Burton, Victor Mature e Jean Simmons. Foi no Cine São José, em 1956 – três anos depois do filme passar em Hollywood como o primeiro em tela alongada, no sistema “cinemascope”. Meu Deus! Está fazendo 53 anos!

Como atenuante, devo dizer que o filme era “proibido para menores de 10 anos” e que, apesar de envelopado numa calça curta marrom e de exibir o quengo meio raspado – moita no alto da testa, como era moda pra “rapaz pequeno” –, consegui enganar, gloriosamente, o porteiro. Rejubilei-me por isso, pois em 1956 tinha nove anos.

Sou do tempo em que Florianópolis ainda conservava os seus carrinhos de cavalo, e até escrevi que adoraria ser cocheiro de um deles. No verão, arriaria a tolda para que os fregueses desfrutassem, ora do calor do sol, ora do fulgor das estrelas. Nas noites quentes seria cúmplice dos boêmios, de suas serenatas e de suas “beberatas”. Levaria uma vida muito mais emocionante do que esta que levei, de regrado cumpridor dos meus deveres. O “carrinho” seria meu lar, os cavalos, meus irmãos, até que a morte nos separasse.

É preciso admitir, também, que sou do tempo do pastel do Bar Rosa e da empada do Chiquinho. E que devorava os “folheados” da confeitaria A Soberana, esquina de Praça XV com Felipe Schmidt.

Sou do tempo da “matinada” no São José, aos domingos, logo depois da missa das 10. Dois jornais da tela: Atualidades Atlântida e Les Actualités Françaises, o cinejornal da Art-Films. Desenhos de Mister Magoo, Tom & Jerry, comédias dos Três Patetas e O Gordo e o Magro. Um seriado do Zorro ou do Superman. Cada idade tinha seus prazeres, seu espírito, seus costumes. Duvido muito que me atraísse, hoje, passar duas horas a fio ouvindo os rocks traduzidos de Celly Campelo – Biquíni de Bolinha Amarelinho, Estúpido Cupido e Oh, Carol.

Devemos obediência ao tempo. Tempo houve em que era imperioso ir ao “Encontro dos Brotinhos”, no Lira, das sete às 11 da noite, aos domingos. E encharcar-se de cuba libre antes de “tirá-la pra dançar”. Teria sido bem mais agradável se o cavalheiro tivesse a coragem de beber menos. Assim, a favorita não teria sido tão cortejada e pisoteada ao mesmo tempo.

O tempo, aliás, é um rio veloz , formado pela caudalosa corrente dos fatos. Mal se vive o momento – e lá vai ele, corredeira abaixo, juntar-se ao manso lago das lembranças – as boas e as más.

Nadando “rio” acima, reencontrei o galã da época, outra vez jovem e atlético, um eleito pelas jovens dos anos 1950, ao som de Bernardine, do hoje pastor evangélico Pat Boone.

O rapaz está transformado num senhor barrigudinho. E careca. Encontrei-o na fila da padaria – já não se entregam pães em casa. Lutava pelo pão e pelo leite de cada dia com o mesmo zelo com que, antigamente, cultivava na testa uma caprichosa vírgula capilar, à semelhança de Bill Halley e seus “cometas”.

PARA NÃO NOS LEVARMOS A SÉRIO DEMAIS ! por lucas paolo / são paulo

Para começar achamos de suma importância esclarecer padrões epistolares! Não nos expressaremos em primeira pessoa!  Muito menos em terceira! O primeiro caso traria uma vivência por demasiada pessoal para se tratar a complicada questão a ser abordada! O segundo caso não conseguiria convencer nem Eu nem Ele nem Você! Portanto não passaria de uma farsa ridícula com ares de paródia!  Para uma abnegação completa de qualquer forma de subjetivismo falaremos por Nós!  Isso exclui definitivamente o emissor e o remetente liquidando qualquer tipo de dupla significação! Entretanto é uma carta! De nós para nós mesmos!  O intuito não é ativar a imaginação nem dar margens às suposições! Seremos tão límpidos como água clara! Enfim diretos! Não buscaremos palavras nem expressões diferentes no dicionário! Qualquer erro redundância contradição ou demonstração de sentimentos será com certeza uma falha devida à imperfeição humana! Desejamos a maior perfeição possível para a presente abstração! Seremos absolutamente científicos exatos e indiferentes! Também não usaremos de qualquer simbologia! Apenas será usado o ponto de exclamação para finalizar as frases e dar a devida importância a elas!  Não julgamos necessidade de qualquer paragrafação além da próxima e mais uma no final! Prestem muita atenção ao que se segue o sentido da vida pode estar contido aqui!

Estamos com muita vontade de suicidar palavras e gastar papel! Ou seja queremos por demais escrever qualquer coisa! Porém falta-nos um tema para um possível romance e não sabemos também por onde começar um conto uma crônica um poema o que for! Acreditamos não haver tema neste mundo e na nossa cultura que mereça nossa reflexão! Não! Não desejamos falar de amor! Este tema é por si só mesquinho e pouco metafísico! Não somos românticos e não temos boas experiências para dividir! Achamos que ninguém as tem! Só existe uma supervalorização idiota do momento vivido com alguma outra pessoa que não nós mesmos! Dividir a existência com alguém é estúpido e não é nem um pouco produtivo! Falar de amor é repetir metade da literatura universal já escrita! Não existe amizade verdadeira ou que dure realmente! Sendo assim a amizade é mais um tema que não merece ser especulado muito menos mencionado em algum texto inteligível! A família é uma propriedade cultural e histórica que não daria tema nem para 50 páginas! E outra coisa todo mundo tem uma família e elas são em seu cerne todas iguais! Pra que falar delas! Aliás para que falar de alguma coisa que envolva o convívio humano! Somos todos animais que não sabemos conviver em sociedade nem longe dela! Não nos olhamos! Não nos percebemos! Não nos conhecemos! Enfim não nos merecemos então para que falar de nós mesmos e nossas relações! Estupidez inventar personagens fictícios! Para que botar mais gente egocêntrica no mundo mesmo que literário! Que fique bem claro não desejamos falar do bicho homem e de sua existência tão supérflua e insignificante! Não ansiamos nem por um instante tratar de arte! Música! Música é um banal artesanato infindo e sem qualquer resultado palpável! Produzir movimento em partículas que formam uma onda que causará devido à imperfeição do ouvido humano a errônea impressão de estarmos ouvindo determinada freqüência ou seja um som para o qual buscaremos relação com algum sentimento ou que tentaremos racionalizar até o último ínfimo físico e estético do possível significado de uma movimentação do ar que nada mais tem que significar do que uma coisa que acontece devido à uma movimentação nas coisas que existem na natureza! Uma movimentação do ar caramba! Artes cênicas ou teatro não merecem nosso tempo também! Que babaquice é representar uma coisa que por si só já é uma representação! A vida não tem que ser representada tem que ser vivida e representar uma representação da vida é se afastar cada vez mais dela! Atores são aqueles que mais procuram a perfeição do gesto em suas encenações e são também os que menos prestam atenção em seus próprios gestos! Artes plásticas ou visuais ou como quiserem chamar a produção de alguma coisa para ser contemplada com os olhos! A cor é uma ilusão! A produção de uma imagem é congelar no tempo um momento uma pessoa um objeto uma abstração uma qualquer coisa! Resumindo é parar na seqüente movimentação do espaço cósmico uma asneira qualquer! Interferirmos no fluente curso de nosso texto para falar de intervenções artísticas performáticas seria por si só uma intervenção! Continuemos! O amálgama de coisas que podem ser consideradas arte é muito grande! Se as grandes artes não fogem de um irracionalismo absurdo o que diremos então da Moda da Gastronomia da Numismática e do que mais houver! Finito! Não falemos da produção humana! Muito menos podemos falar do pensamento humano! Toda hora aparece um novo grego falando bobagens e usando da retórica para distorcer e torcer um assunto que já foi tão controvertido pelos homens! Filosofar é parar no tempo para refletir sobre o nada com o intuito de concluir o sentido do lugar nenhum! Quantas bobagens já não foram ditas sobre o nada e o tempo! A junção dos dois resulta na existência da memória e do gênero humano! A junção do homem nessa mixórdia toda resulta no conjunto de coisas chamada Humanidade e conseqüentemente resulta em culturas diferentes e prosseguindo conseqüentemente em guerras! E ainda bem! Conseqüentemente logo logo no fim da raça humana! Ufa! Ufos! Falar de alienígenas verdinhos ou de vida extraterrena é extrapolar para fora de uma realidade que já é desinteressante inferindo nossa visão antropológica do mundo que de nada provavelmente tenha a ver com possíveis culturas marcianas, plutonianas ou seja lá quem for os possíveis cabeçudinhos! Deixando o homem e a suposta outra vida inteligente do universo de lado poderia se falar de todas as outras coisas que existem vivem mas não pensam! Se é que podemos chamar o que os homens fazem de pensar! Podemos escrever mil duas mil três mil páginas sobre uma manga uma pedra um dromedário uma pulga um cristal condensado sobre o ar a terra a água a via lactéa o surgimento de tudo! Mas pensamos que nós temos bem mais o que fazer! Podemos falar da preguiça da gula da luxúria da avareza! Podíamos falar de Deus o ubíquo! Mas tememos muito as heresias e não somos chegados aos gnosticismos! Não acreditamos em nenhuma religião mas tememos constantemente o inferno! Já conseguimos deduzir que não se vale a pena falar de nada sobre o que se possa divagar ou reproduzir com palavras! Podemos falar do niilismo ou da escrita! Pensando bem os dois são uma e a mesma coisa! A justificável desistência do mundo material para o mundo das possibilidades ou não possibilidades! Contudo queremos nos permitir deixar aqui no fim da carta algo de redundante de modesto de conclusivo de irreflexivo escrito! Alguma bobagem que justifique o endereçamento de uma carta a alguém! Um aforismo!

Muitas vezes quanto mais verde se joga mais se colhe leitores maduros!

Observação minha sobre a missiva: Não pretendi alcançar nesta carta o sentido da vida; não busquei um impacto muito grande para minhas palavras e nem as escolhi a dedo; só queria escrever e não sabia sobre o que, então, escrevi de uma maneira esquisita sobre muitas coisas que, NO MOMENTO, não tinha vontade de tratar neste texto. Sei lá do que posso ter tratado nesta epístola! Acho que não tratei de nada, só escrevi. Mas escrever foi por demais bom e divertido. Desculpem a chatice e a possível crítica a alguém ou alguma coisa importante da vida. No mais, agradeço pela leitura de meu texto.

RASTRO DE FERIDA de ana carolina cons bacila / curitiba

Estou chorando por você,
Estou chorando por mim.
Estou chorando por nós.

Derramando lágrimas
pertencentes a ti,
pairam no ar como voz.

Animal ferido se esconde.
Coracão ferido se cura.
Humano ferido se mata.

.

ana carolina cons bacila (16) faz parte do grupo NOVOS POETAS NOVOS deste site.

O ENCANTO DA CARTA ANÓNIMA por vera lúcia kalahari / portugal

Eu gosto de receber cartas anónimas. Não tenho, como muita gente, horror às mesmas. Liga-me a elas uma profunda e viva simpatia. Porque o que é uma carta anónima?

É, de algum modo, a voz que teme ou odeia. De qualquer maneira, uma voz amiga que previne. Porque ela dá-nos a certeza que não estamos sós. Que podemos contar, pelo menos, com os nossos inimigos. Ora vejamos: Não são os nossos inimigos os nossos amigos mais sinceros? Porque todos sabemos que nas horas difíceis, os amigos abandonam-nos, desaparecem… Os nossos inimigos, não. Acompanham  passo a passo a nossa vida. Vivem a nosso lado, hiantes…Como espiões… Vivem espiando todos os nossos movimentos, as garras prontas a agatanharem. Que em boa verdade, os inimigos sinceros são os nossos únicos amigos. Geralmente, calam as nossas boas qualidades,  para  apresentarem só os defeitos. E nós, só lucramos com isto, porque, realmente, os bons que só têm qualidades, nunca se governaram.. Ao passo que os defeitos, impõem sempre respeito. E nós podemos aproveitar a oportunidade para os corrigir, aqueles que nos interessa corrigir, como é obvio.

E depois, o interesse, o tempo que perdem a saber da nossa vida… Já alguém teve um  amigo que se interessasse realmente por si?  Onde mora? O que faz? Com quem vive? Duvido… Mas estes outros, não. Até se dão ao cuidado de escrever cartas anónimas…Imaginem:. Na era da informática, quando já ninguém tem paciência para escrever à mão… Por nós, vejam bem, por nós, irem comprar um envelope…Papel…Selos… Ficarem ali sentados a pensarem, de caneta na boca, naquilo que vão escrever.

Depois, saírem de propósito para irem ao correio mais próximo deitar a carta… Que consolador não é tudo isto para nós…

A carta anónima é útil, sim senhor. Eu, por mim, acho-as interessantíssimas. E até bendigo a santa criatura que a escreveu, que tanto bem me quer.

Vejamos: A carta anónima para a mulher, a dizer que o marido a engana, poderá ser a melhor estratégia para o homem, se este não for parvo. Será como o sal na comida.

Irrita ,mas  depois de muita conversa ,que ,confessemos, em alturas destas os homens são muito convincentes, pode-se chegar à conclusão que há muita gente sem escrúpulos que perdem o seu tempo a escreverem coisas destas. E a mulher acredita e perdoa. E tal perdão é sempre uma pedra no charco no marasmo do casamento, traz uma  nova acção ,outra novidade, a maior parte das vezes bem gostosa…

A carta anónima para o homem, a dizer que não passa dum corno, tem as suas vantagens, sim senhor…Porque ou não sabia e ficou sabendo, ou já sabia e não se rala.

Se o não sabia, foi um óptimo serviço, se o já sabia e não se rala até poderá exclamar, depois de a ler com um sorriso : ‘’…Tão bem intencionado…coitado…’’

A carta anónima vale mesmo uma epopeia… Que venham mais…

E pensar que há ainda quem abomine, as simpáticas, as maravilhosas cartas anónimas… Falta de gosto…

AMORES – por sergio santeiro / niterói.rj

Há de todo o jeito: curtos, longos, breves, vãos, tensos, intensos,
fugazes, velozes, durazes, de pronto atendimento, a perder de vista.
Algo se produziu na convivência humana que nos faz chegar perto, nos
faz chegar mais de uns ou de outros. Dizem que há explicações, prefiro
não buscá-las: químicas, cheiros, identidades, estranhezas.

Prefiro o mistério, o que se não explica. A rigor, acho que o
acasalamento devia ser mais livre, mais casual. Não era preciso chamar
tanta atenção, nem sonhar tanta promessa, algo mais fluido. E assim é,
de vez em quando. A maior ofensa que se faz às mulheres é não tentar
seduzi-las, principalmente as que se acham. O maior elogio é deixar-se
por elas seduzir, principalmente as que não se acham.

Seduzir ou não, eis a questão. Ficar ou não ficar pra mim é muito
vago, sou da antiga. É ou não é coisa na coisa. Especialmente quando
se chega à decisão, um pergunta pro outro: – Pode ser ou tá difícil? É
preciso perguntar, afinal a mulher é aquela coisa que quando quer
quer, mas quando não quer, não quer.

Quando quer move mundos e fundos, vai até ao inferno, mas, quando não
quer, finge que não viu nem ouviu – o que é um dos mais notáveis
atributos femininos: faz que não entende. Quando quer atravessa o
oceano, quando não, nem a rua.

Coitado ou coitada é condição etimologicamente derivada de coito que
não houve? Acoitar é sinônimo de agasalhar? Agasalhar o croquete é
vulgar? É feio externar as palavras que me acorrem à mente? Entubar
hoje em dia é botar no youtube? Em português, no tutubo? Ou botar no
teu tubo? No meu ainda não. Dizem que, depois de certa idade, tudo é
possível. Pode ser, ainda não cheguei lá.

Pra mim, o doce ainda é navegar nas águas turvas da emoção. Emoção
quer dizer Ê, moção? Moção como moça grande, exuberante, fornida,
aumentativo de moça e não de moço, bem entendido. Aliás, entendido é
também como se chama o parceiro de mesma natureza. Tudo é da natureza.
Na Grécia, em Roma, nos confins da Alexandria, tudo era natural. Hoje
também.

Na Grécia como os gregos, em Roma como os romanos, em Alexandria como
Alexandre, como não como verbo, como como como, menos as romanas, as
gregas e as alexandrinas, que estas são como verbo. Sabemos por outra
que neste quesito a vida não é das mais difíceis. Sempre sobra um bem
querer para o nosso querer bem.

Muitas vezes o erro ou o mal é errar com quem, ou pode-se atirar no
que se viu e acertar onde não se viu, neste caso recomenda-se insistir
e tomar o acerto ao invés de insistir no erro e levar um fora. Levar
um fora não é lá dessas coisas, nem sempre é pra sempre, nada como um
dia após o outro, com uma noite, um sonho, um travesseiro no meio,
talvez quando acordar, hoje dá.

Ser aprazível, aconchegante, insinuante, audaz, desdenhoso, desejante,
gaste o verbo. Tudo o que não sou. Acima de tudo, não perder a
esperança jamais. Afinal, por que não eu?

20/9/2009

MAQUETE: AS JANELAS DE F.K – por jorge lescano / são paulo

A guisa de prólogo.

Para aqueles que precisam definir o gênero para poder iniciar a leitura; para aqueles que acham que existe o hábito da leitura; para aqueles que pretendem haver entendido o texto quando conseguem classificá-lo, anuncio desde já: isto é uma Maquete, “gênero” ou objeto que passa a existir em forma narrativa a partir deste original.

Ilustres exemplos poderiam ser apresentados para autorizar esta opção ou capricho. Cito apenas dois para não cansar o leitor: o escritor e político peruano Ricardo Palma (1833-1919) batizou de Tradiciones um gênero de crônica que mistura ficção e história do Peru colonial. Johannes Jensen, autor dinamarquês (prêmio Nobel de Literatura de 1944, para os que valorizam tal honraria), chamou de Mitos suas crônicas. O termo ganhou um verbete especial no dicionário danês.

Para aqueles que apreciam a história dos eventos literários; para aqueles que gostam das notas explicativas de pé de página; para aqueles que cultuam as interpretações acadêmicas, descrevo a seguir as circunstâncias em que surgiu esta Maquete.

O Centro de Pesquisa Teatral (CPT), que funciona na Unidade Consolação do Serviço Social do Comércio (SESC), promove neste primeiro semestre de 2003 um Curso de Cenografia e Adereços Teatrais. Requisito para se inscrever na lista de seleção dos candidatos para as poucas vagas oferecidas: projeto cenográfico (maquete ou desenho) para uma encenação de qualquer obra de Franz Kafka.

É claro que a liberdade e dificuldade da proposta desafiam qualquer imaginação!

No primeiro momento a mente percorre o trilho do bom senso e procura no seu arquivo a obra que deseja encenar. Vêm, instantâneas, imagens de encenações das mais freqüentadas obras de F.K.: O Processo; O Castelo; A Metamorfose.

Carta ao Pai, com uma enorme cadeira, espécie de trono pontifício, colocada sobre um pedestal altíssimo, inacessível ao protagonista narrador, no qual estará sentado o Patriarca criado por Kafka, é por si só uma síntese de todas estas obras. Em  cada uma delas há uma figura imponente, inacessível, prepotente, espécie de arquétipo da mitologia contemporânea, povoada de pais, chefes de governo, arquivistas. Qualquer ambientação que remetesse às sórdidas dependências de um escritório de repartição pública, serviria. A impessoalidade de tais ambientes, conquanto fechados, ilustrariam parte do universo kafkiano. As idéias a respeito, por óbvias, foram recusadas. Neste ponto, a inscrição na supracitada lista de seleção estava fora de cogitação.

Não que eu pensasse seriamente em fazer o tal curso, mas a idéia de desenvolver um projetinho como exercício era atraente. Então outra idéia veio à mente.

(Escrevo sem consultar as obras citadas, este recurso dá-me a ilusão de criar um clima poético no texto.)

II – Maquete propriamente dita.

Existe uma curiosa fotografia que mostra a janela do  quarto de Franz Kafka, em Praga, que dá diretamente para o interior de uma igreja católica, perto do altar-mor. Talvez esta janela, e de forma inconsciente, tenha gerado outras janelas que aparecem na sua obra.

A primeira, por ordem de função, está no primeiro capítulo de O Processo. Por ela se assoma uma senhora idosa para observar como Josef K. é informado do seu processo. São duas janelas, se bem me recordo, pois é pela segunda que a dita senhora, vizinha frontal do protagonista, pode ver melhor o quarto deste.

Tal janela, menos como detalhe arquitetônico que motivo literário, reaparecerá no final do romance. É dali que a testemunha, um homem em mangas de camisa, assiste a execução de Josef K. Este homem é também a última imagem que F.K. deixa ao leitor, permitindo supor que esta coincide com a visão final de Josef K.

A terceira janela deve estar em A Metamorfose e por ela se debruçam A Mãe e A Irmã de Gregor Samsa para contemplar a paisagem depois do pesadelo que é o miolo da novela.

(Embora A Metamorfose seja anterior a O Processo, aqui é citada em função dramática, não cronológica: A Mãe e A Irmã sentem-se libertas pela morte de Gregor, este fato crucial coincide com a cena final de O Processo).

Esta janela tem algo como função ritual ou catártica, se associada àquela da moradia de F.K. Ela é o tema da maquete. O reconhecimento de sua  hierarquia em relação aos outros componentes, determinada pela posição central na fachada aparente do fundo do palco, exige que a luz seja interna, isto é, a iluminação do palco terá sua fonte na janela e de lá se projetará  sobre a cena. A janela, ao invês de receber a luz, será a sua fonte. Nada nos impede imaginar que F.K. estará olhando o mundo através dela, como poderia ter olhado o interior da igreja de Praga.

A morte de Josef K. se dá à vista do público que acompanha a execução (como um cão) juntamente com o homem da janela. Já a morte de Gregor Samsa se manifestará como ausência iluminadora. Ironicamente, esta morte libertará a luz e os personagens.

A janela empírica (para o interior da igreja) é a verdadeira personagem desta encenação (cenográfica), motivadora da presente maquete. Os acontecimentos serão reunidos ao seu pé para permitir que se perceba sua mudança. Se há um processo psicológico, será o da janela, símbolo do olhar do dramaturgo Franz Kafka.

Assim se compreende que o palco permaneça nu durante todo o espetáculo, apresentando-se as nuanças psicológicas por intermédio da luz e, talvez, de recursos acústicos: ecos, amplificações, deslocamentos de vozes, passos, etc., do ritmo (ou disritmia) corporal dos atores, a piacere do encenador.

III – De como se fará a transferência da (suposta) poética de Beckett sobre a máscara para a cenografia.

Há um pressuposto (nosso) que diz que Samuel Beckett leva o teatro europeu às últimas conseqüências retornando às suas origens gregas. Tal fato dar-se-ia no seu monólogo NOT I. Nesta obra, o autor irlandês “reduz” a máscara grega ao seu componente essencial: a boca.

É de acreditar que o texto da tragédia grega é continuação da arte do rapsodo – contador de histórias ambulante. Em algum momento este contador deixará de perambular e se estabelecerá na polis, justificando, se não exigindo, a construção do teatro. Parece lógico especular que ele seja uma das raízes do espetáculo teatral, além das festas dionisíacas.

Sabemos que nos seus primórdios, a tragédia era um gênero narrativo mais do que dramático. O único ator em cena dizia seu texto em pose estática sobre um pedestal. As diferenças em relação ao rapsodo estavam no figurino e na máscara e, paradoxalmente, na impossibilidade de representar certas atitudes e emoções dos personagens, como é visto ainda hoje nos contadores de praça pública. Impossibilidades físicas decorrentes dos paramentos e da situação cênica do ator, deram à cena um caráter solene, incorporando sua pose hierática à arquitetura-cenografia e padronizando sua atuação. Tal será o tom dominante das futuras representações.

Em nossa leitura da poética de Beckett em Not I, atribuímos-lhe a intenção de sintetizar este momento fundador reduzindo a máscara à boca. Desenvolvendo esta premissa dramatúrgica, experimentaremos aplicar tal princípio à cenografia com atributos de drama. A tradição escolhida será o palco latino.

De forma esquemática, suficiente para nosso propósito, podemos descrever este palco como a representação do frontispício de um edifício dotado de colunas com capitéis sustentando cornijas, janelas, e três portas. Apenas estas portas tinham função real. Por elas entravam e saiam os atores que representavam seus papéis no espaço compreendido entre o fosso da orquestra e esse fundo.

A questão básica é: como sintetizar este palco, per si tão reduzido?

Valendo-nos das janelas apresentadas, importantes na dramatização das cenas kafkianas, valorizaremos as janelas do fundo do palco. As entradas e saídas dos atores serão feitas pelas laterais. As janelas estarão no nível de um primeiro andar, serão apenas três e somente a do centro terá profundidade real, pois por ela se assomarão os personagens-espectadores do espetáculo que se desenrolará aos seus pés. Uma luz tênue, de abajur, deverá indicar a existência das janelas laterais.

As cenas escolhidas da obra de Kafka serão representadas no pequeno espaço iluminado pela luz crua da janela central, que se projetará sobre o palco propriamente dito. Os personagens-espectadores não serão figuras muito nítidas. A luz virá de detrás deles, permitindo perceber seu volume, mas não as feições, semelhantes a espectros e aos espectadores sentados na platéia vistos do palco. A platéia e o fundo do palco deverão sugerir a idéia de espelho embaçado. Entre estes dois “espelhos” se desenrolará o drama kafkiano, espécie de ponto cego no espaço real do teatro, ponto de partida e final do espetáculo.

Kpn. 4/3/003

DESISTA!! por auro sérgio / são paulo

Estamos em 2050, não há nenhuma quarta guerra mundial. Os chefes mundiais conseguiram resolver a maioria das mazelas sociais. Os homens enfim perceberam que devem preservar o meio ambiente para sobreviverem mais e com qualidade. Nota se a amizade reinando entre todos os povos, principalmente nos do oriente médio que decidiram viver unidos em prol de um objetivo comum: Cultivar seus familiares vivos. Temos televisões que só comunicam boas notícias e transmitem programas culturais, filmes bons e antigos. Eliminamos os conservantes, acidulantes, flavorizantes, sentimos o gosto das coisas que temos na natureza preservada. Fomos à Lua, Marte, Júpiter e até em Plutão só pra perceber que aqui na Terra temos tudo. As crianças aprendem nas escolas conceitos de paz, honestidade, harmonia, sinceridade, justiça, retidão, integridade, boa fé, pureza, cordialidade… E aprendem. Não há mais preocupações idiotas com o enriquecimento individual, pois o capitalismo já derrocou a luz de um novo movimento que surgiu, um movimento diferente de todos os outros. O movimento Desistencialista.

Infelizmente estamos em 2010, essa projeção para um futuro é bem utópica e praticamente impossível de ser alcançada nesse curto espaço de tempo, em quarenta anos não aprenderemos senão a nos destruirmos uns aos outros num canibalismo acelerado, sem ética, sem respeito à faunas, floras, rios, crianças, próximos, e  nem a nós mesmos. Continuaremos fabricando bombas, refinando urânio, incitando o consumismo, vendendo, lucrando, produzindo e destruindo tudo. Continuaremos convivendo com líderes de estados corrompidos, ambiciosos e egoístas que se sentem os donos do mundo. Ainda observaremos a batalha num oriente sem sentido por uma Terra Santa que não é nem nunca foi de ninguém, por uma crença que não salva coisa nenhuma. Conviveremos ainda com a bestialidade urbana alimentada por uma gênese descompromissada com valores morais. Nesse tempo, infelizmente, partilharemos ainda da anorexia dos africanos, favelados de Ruanda, Serra Leoa e demais agonias sociais espalhadas por esse chão por culpa de um insensível ser que insiste em pensar que é ele que está no centro do Universo verdadeiramente.

O Desistencialismo. Uma doutrina baseada dentre outros dogmas no episódio de que basta simplesmente existirmos sem grande alarde, sem causar danos ao próximo, ao distante, ao desconhecido. Um conceito amplo de vida fundamentado na opção de não precisar haver celeridade nem solidez em nada que possuímos, uma vez que isso não é nosso, nem nós mesmos temos a eternidade nas mãos. Temos que deixar essa desenfreada busca particular por status, dinheiro, beleza, conforto etc. Para buscar formas de conviver com o próximo no mesmo nível, pois agora somos todos iguais. Esse movimento ainda descontínuo em seu fundamento, mas alicerçado de ideais legítimos é a única saída para que possamos alcançar um dia a consonância da sobrevivência em sociedade. Desista, tente algo novo, pois tudo que foi fato terá que ser recomposto.

CLAMOR de joão batista do lago / são luis.ma

( Dedicado ao poeta russo  Maiakóvski)

.

Estranhamente acordo pensando Maiakóvsky!

Coisa estranha!

Ou talvez nem tão estranha assim!

Sinto-o dentro da minha carne

Como alma prenhe de versos inacabados…

Por onde andas, ó grande irmão?

Por que te fostes me deixando tão só?

Sinto tua presença nos meus versos

Eles são tão angustiados quanto os teus:

“Levantei-me como um atleta,
levei-o como um acrobata,
como se levam os candidatos ao comício,
como nas aldeias se toca a rebate
nos dias de incêndio.
Clamava:
“Aqui está, aqui! Tomai-o!”
Quando este corpanzil se punha a uivar,
as donas
disparando
pelo pó, pelo barro ou pela neve,
como um foguete fugiam de mim.
– “Para nós, algo um tanto menor,
algo assim como um tango…”
Não posso levá-lo
e carrego meu fardo.
Quero arremessá-lo fora
e sei, não o farei.
Os arcos de minhas costelas não resistem.
Sob a pressão
range a caixa torácica.”

Eis-me, aqui, personagem da tua poética

Carregando o meu velho fardo:

Agonia que não me transcende

Que não me permite arremessá-lo

Para além da minha caixa torácica

A pressão de me viver é tanta e quanta

Tanto e quanto é o desejo de me arremessar

No vazio da eternidade profana

Onde poderíamos fazer um poema universal

Próprio do mundo imaterial, mas sem os valores espirituais das seitas

Garbo, assim, ó grande irmão

Nas fileiras de homens sem hoste. Sem coração.

De homens condenados a inanição

De gentes que rangem entre costelas

A falta do emprego que lhe garanta o pão

(- “Para nós, algo um tanto menor,
algo assim como um tango…”)

A CANALHA SE ESPOJA – último texto escrito por WALMOR MARCELLINO enviado, hoje, por sua esposa ELBA

O povo é bom, mas é interesseiro e ingênuo, para não ser visto como burro. Este apotegma, a sua vez, é primarista, apofântico e cruel, mas a ele somos conduzidos pela atitude de classe e sua presunção de verdade. Essa “verdade” é o pensamento politicamente correto e conforma a ideologia civilizatória com que nos afagam.

Sem uma rigorosa análise de classe, de dentro das lutas sociais e com a responsabilidade de discerni-las do ponto de vista do trabalho, de sua dinâmica produtiva e de sua força inovadora, o discurso ideológico passou a ser o poder artificioso com que se explicam e garantem a hegemonia de classes e a justiça de sua imposição a todos.

(Walmor Marcellino, em 07/9/2009)

WALMOR MARCELLINO, jornalista, poeta, escritor, filósofo e dramaturgo.

WALMOR MARCELLINO, jornalista, poeta, escritor, filósofo e dramaturgo.

UM ARTIGO DE WALMOR:

REDOBLES A ERNESTO SERNA

.

E a política como atitude e conduta; como ética, vivência e recompensa? Saiu do calendário porque não é mais valor ou nunca o foi na sociedade de classes; um farisaísmo de mercado para obrigar exação de negócios? E então, para ganhar credibilidades e confianças, assumimos compromissos senão incorporamos doutrinas sociais para alcançar vantagens?

A epopéia presente é para cada um apenas a busca de sobrevivência, como aventura existencial já não ante a natureza inóspita, não só ante as faltas pessoais e atrasos comunitários, mas sob a esperança que nos impele adiante e exalça por virtudes, e como cultura da dignidade de que dizem somos portadores: tenhamos mercê ou destino.

Remanesce em nossa cultura política a idéia vã de entrega e martírio, e então acreditamos em caudilhismos nas lutas sociais e martírios de uma causa comum; queremos, precisamos crer; seja porque existem exemplos e eles estão sufragados no imaginário coletivo, seja porque se multiplicam as tentativas de salvaguardar nosso compromisso da mutualidade.

O que tem a ver Gilgamesh com (São) Sebastião Arqueiro, martirizado em Roma no Século III, com Sebastião (Dom), o Desejado, XVI rei de Portugal, desaparecido aos 24 anos na batalha de Alcácer ? Talvez o espírito de Masaccio (Tommaso de Ser Giovanni, 1401) em busca das formas puras, quem sabe o Sebastianismo como um tropo (translação historicista do sentido martiriológio); ou, ainda, como quixotismo reinol em sua nobreza montada, ou poderia ser simples quixotada de estultas grandezas, por teimosias e caturrices, de obscurantismos cruzados em paranóias? Quem souber explique a este pobre Sancho Panza (Vida de Don Quixote y Sancho, ensayos, Don Miguel de Unamuno) que com utopias, grandezas e vilezas nos enredamos:

“Advirtas-te, irmão Sancho, que esta aventura e aquelas a esta semelhantes não são aventuras de ilhas (*fortuna), senão de encruzilhadas, nas que não se ganha outra coisa que decepada a cabeça ou uma orelha a menos.” Esse então seria o bom combate, sob regras de cavalaria, ou gigantismo do ego no atropelo a cada um?

Mas sem a altanaria do “Cavaleiro da Figura Triste” nem o despojado sensualismo de Sancho, o que faremos? Apenas advertir à Unamuno: “creio que se pode tentar a santa cruzada de ir resgatar o sepulcro de Don Quijote do poder dos bacharéis, curas, barbeiros e canônicos (vigários e regras) que o ocuparam”…

Alvitrarão: o que tem a ético-política e o socialismo que ver com os sentimentos, aspirações e utopias? Tudo o que pudermos encontrar na encruzilhada quando nos avulta grandioso Don Quijote de La Mancha a olhar para o horizonte.

MIUDEZAS de josé fernando nandé / curitiba

Juntem esses poucos retalhos,
Juntem esses pequenos ciscos,
Juntem os pensamentos apequenados,
Juntem as migalhas da mesa,
Juntem o que nos sobra direito ou torto,
Juntem essas pequeninas coisas
Porque é de miudezas que se enche o mundo.

Juntem os últimos suspiros dos moribundos
Juntem tudo que vaga entre os vagabundos
Porque é a partir do miúdo que se explica o todo.

Juntem o ar da manhã com o vento noturno
Juntem os signos às luas de Saturno
Juntem o perdão à pena do condenado
Juntem o remédio aos irremediados
Porque é da miudagem que se tem o inteiro.

Juntem tudo que não presta
Juntem tudo que tem serventia
Juntem tudo e bem juntado
Porque é da miuçalha que o Universo se veste.

MORRER de otto nul / palma sola.sc

Morrer num repente

E para sempre

Morrer de tédio,

Subitamente,

Morrer aqui e agora

Ao despontar da aurora

Morrer aniquilado

De morte jubilado

Morrer sem remissão

E sem perdão

Morrer de tristeza

Ou de paixão

Morrer de desencanto

Ou de beleza.

THE PRESENT de joanna andrade / miami.usa

I do not know who I am or what I can become

No more

Arrested thoughts by the anguished pain

I render my life to my own dreams of freedom

No more prisoners

No more past

The present loneliness

ETERNOS de jb vidal / praia dos ingleses.sc

jb vidal

03/80

meu corpo no teu

acende a dúvida

.

ser ou estar

.

eu!? nós!?

.

gozo cósmico!?

.

prazer em deixar-me ir

onde estás ou sejas

.

sou inteiro em ti

.

estou metade

O VAGO de otto nul / palma sola.sc

Tenho que me entender

Com o vago, o vazio, o nada,

.

Caso contrário não chego

Ao âmago das coisas;

.

Me incapacito para o diálogo

De supinos saberes;

.

Só a linguagem muda,

Hermética, meio louca,

.

Pode ir ao fundo das questões

Ou trazer à luz o indizível;

.

Sem esse aprofundamento

É impossível colher o sumo

.

Supremo de que se compõem

Os mistérios da vida;

.

O vago é meu caminho,

Meu mestre de sutilezas.

SABICAS, O MAESTRO ESPANHOL toca: “FANTASIA”

para atender ao pedido do amigo e poeta MANOEL DE ANDRADE feito no post do PACO DE LUCÍA.

UM clique no centro do vídeo:

.

11 DE SETEMBRO DE 2001 – 8 ANOS HOJE / PARA REFLETIR / editoria

torres

torres_11set


11 de setembro

INRI CRISTO concede entrevista ao TOCANDO.ORG / são paulo

Gostaria de agradecer o Senhor Inri Cristo por essa polêmica entrevista concedida ao Tocando.Org e as suas Discípulas pela prestatividade.

inri-cristo-entrevista

Tocando.Org: Sei que essa pergunta todo mundo faz: Se Jesus morreu na cruz, ressuscitou, foi pro céu, porque ele voltaria pra esse mundo? Ele é você e você é ele?

INRI CRISTO: “Eu voltei porque eu prometi que voltaria, ninguém é obrigado a crer. Vim para dar continuidade à minha missão aqui na Terra. Voltei com um nome novo, INRI, o nome que paguei com meu sangue na cruz (Apocalipse c.3 v.12). Eu fui em espírito para o PAI, e não de carne e osso. Por isso voltei em espírito e recolhi meu corpo das entranhas de uma mulher. A ressurreição física é um delírio, uma loucura que inculcaram na cabeça do povo cristão. Quando me perguntaram quais seriam os sinais de minha vinda e do fim do mundo, respondi aos discípulos: “Porque ouvireis falar de guerras e de rumores de guerras, e se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, pestilências e terremotos em diversos lugares. Todas essas coisas são apenas o princípio das dores” (Mateus c.24 v.6 a 8). Agora o mundo está nas condições que meu PAI me mostrou já há dois mil anos. Basta ligar a televisão e ver que o mundo está um caos. E como nenhum Jesus voltou lá do céu voando igual a uma ave, mais cedo ou mais tarde terão que assimilar a realidade de que sou o mesmo de ontem, hoje e sempre”.

Tocando.Org: Sua mãe na sua primeira encarnação foi Maria? Se ela era virgem como deu a luz a uma criança? Seria José o maior corno da história?

INRI CRISTO: “A árvore genealógica registrada no Evangelho mostra bem claramente que foi José quem fecundou Maria, pois José era oriundo da linhagem de David (Mateus c.1 v.16). E para cumprir-se o que profetizara Isaías (“Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emanuel. Ele comerá manteiga e mel até que aprenda a separar o mal do bem” – Isaías c.7 v.14), Maria foi fecundada virgem por José, por obra do Espírito Santo, que juntou os dois em estado de sonambulismo antes de coabitarem. A virgindade de Maria não era himenal, pela presença de uma membrana a mais ou a menos; era a virgindade da pureza, uma vez que após o ato sexual praticado com José, ela continuava inconsciente da relação carnal. Diz-se que ela era virgem antes, durante e depois do parto. E conforme tu bem observaste, como ela poderia permanecer virgem depois do parto se a virgindade fosse himenal? É mister separar o mito dos fatos. Essa história de fecundação com espermatozóide vindo do céu é invencionice, fica por conta do imaginário dos idólatras que se comprazem em adorar os mitos e lendas impostos pelos pseudo-religiosos como verdades absolutas”.
(ver Maria Mulher no link http://www.inricristo.net/index.php/pt/enigmas-teologicos/maria-mulher-o-mito-sem-mascara ).

Tocando.Org: O que você acha das igrejas que exploram as pessoas, através dos dízimos e outras formas de extorsão? Sua seita faz isso? Como você sobrevive?

INRI CRISTO: “São os lobos com pele de ovelha que conseguem enganar os incautos, eles estão cumprindo o que eu já previ há dois mil anos: “Orai e vigiai, que ninguém vos engane. Porque falsos cristos e falsos profetas virão em meu nome, farão prodígios e enganarão a muitos, até os eleitos se possível fosse” (Mateus c.24 v.5 e 24). E o maior prodígio está justamente em chantagear o dízimo usando meu nome antigo (Jesus). Eles alegam que o dízimo é bíblico, e deveras é bíblico, mas é o dízimo do lucro, e não do miserável salário do obreiro, e o dízimo é para a Casa do SENHOR, e não para a toca do lobo com pele de ovelha. E justamente para diferenciar-me de todos eles, eu voltei com um nome novo, INRI (Suprema Ordem Universal da Santíssima Trindade), o nome que paguei com meu sangue na cruz (Apocalipse c.3 v.12) e em nome de meu PAI, SENHOR e DEUS. E a SOUST, por ser a formalização do Reino de DEUS sobre a Terra, na formação de um só rebanho e um só pastor (João c.10 v.16), sobrevive sob os auspícios da graça divina. Na SOUST não se pratica a chantagem do dízimo, a exploração da fé, e todos os sacramentos são realizados graciosamente, coerente com o que eu disse há dois mil anos: “Dai de graça o que de graça recebestes” (Mateus c.10 v.8). O SENHOR é o provedor, Ele inspira os filhos dEle a participar da provedoria da SOUST; cada um dá com a mão direita sem que a esquerda saiba quanto (Mateus c.6 v.3). Os filhos de DEUS participam da causa divina por ideal, por consciência, e para sentirem o sagrado vínculo com o SENHOR e seu santo reino de luz”.
(vide Provedoria do Reino de DEUS no link http://www.inricristo.org.br/pdf/provedoria_da_soust.pdf ).

edirmacedo

Tocando.Org: O que você acha do Pastor Edir Macedo?

INRI CRISTO: “Edir Macedo é o inspirado comandante da legião de roedores que têm a missão de roer o casco podre do meu antigo barco (a proscrita igreja romana, meretriz do Apocalipse c.17). Quanto mais eles roem, mais o meu antigo barco naufraga, para que o meu novo barco, a SOUST, possa flutuar suavemente”.
(vide Parábola do Barco Náufrago no link http://www.inricristo.net/index.php/pt/parabolas-de-inri-cristo/182-parabola-barco-naufrago ).

Tocando.Org: Se eu for um verdadeiro “filho-da-puta” (ladrão, safado, corrupto etc.) à vida toda e no final pedir perdão pra Deus, eu irei pro céu?

INRI CRISTO: “A ascensão espiritual ao plano superior dependerá do peso de teus pecados. Se tu cometeres todo esse rosário de crimes e pedires perdão, serás perdoado, mas como no céu, no infinito, não se alberga fugitivos da justiça terrenal, terás que ficar nas redondezas da Terra purgando como uma alma penada, até chegar a hora de conseguires um novo corpo para reencarnar. Mas se antes de desencarnar fizeres boas obras que anulem e sobrepujem os efeitos nefastos de teus pecados, terás a chance de subir e repousar no seio do PAI Celeste no infinito. Por isso não adianta se “converter pra Jesus” na ilusão de que “Jesus salva”, isso é alienação, esquizofrenia, fuga da realidade. Cada ser humano tem que acertar pessoalmente suas contas com a lei divina, que sintetizada em duas palavras é ação e reação, causa e efeito. Há dois mil anos, na condição de redentor, tive que resgatar os pecados que a humanidade cometera até então, porque havia sido eu, Adão, o Primogênito de DEUS, quem iniciara a humanidade no caminho do pecado. Mas inexiste anistia preventiva. Quem pecou depois terá que saudar o débito com a lei”.

Tocando.Org: Suas discípulas estão fazendo muito sucesso na internet com as versões místicas de musicas populares, de onde vem tanta inspiração?

INRI CRISTO: “A inspiração vem do ALTÍSSIMO, meu PAI, SENHOR e DEUS. Ele é quem inspira os seres humanos. Todas as artes que existem a serviço do bem são inspiradas por DEUS.”

assage-discipula-inri-cristodiscípula de inri cristo. foto sem autoria.

Tocando.Org: Elas não praticam sexo? São proibidas?

INRI CRISTO: “Elas não são proibidas, e sim optaram viver em pureza, perceberam o benefício de viver em pureza, porque o Reino de DEUS não é um reino de proibição, e sim um Reino de conscientização. No Reino de DEUS eu ensino os filhos de DEUS a viver em harmonia com a lei divina em estado de pureza, e a paz da Casa do SENHOR está entesourada na observância das leis do SENHOR. Mas do lado de fora dos muros da Casa do SENHOR, nós assimilamos o direito de todos fazerem o que quiserem de seus corpos, afinal a opção sexual de cada ser humano é uma questão de foro íntimo e ninguém tem o direito de interferir”.

Tocando.Org: Você sabe o dia de sua morte? Será enterrado onde?

INRI CRISTO: “Eu não posso saber o dia de minha morte porque a morte não existe, a morte é a renovação, é uma etapa para o recomeço de uma nova vida. Então eu jamais morrerei, meu espírito permanecerá vivo para sempre e um dia meu corpo será novamente recolhido pela mãe terra, que espera pacientemente seus filhos queridos para o reencontro místico da renovação”.

Tocando.Org: Pesquisas demonstram que 86% da internet é pornografia, o que você acha disso? Você costuma visitar esse tipo de site?

INRI CRISTO: “Considero isso um sinal dos tempos, mas não tenho ânimo, não tenho motivo para visitar essas páginas. Tenho consciência de que elas existem, e se eu sentisse atração iria ver, mas não sinto atração. Todas essas misérias da carne eu já conheço, já passei por tudo isso antes do jejum em Santiago do Chile, em 1979. Até então fui levado pelo meu PAI sem livre arbítrio a experimentar os pecados do mundo a fim de que eu pudesse compreender a natureza dos seres humanos. Meu PAI disse que o ápice da evolução humana passa necessariamente pelos estertores da carne. Tenho consciência de que tudo isso existe, faz parte do laboratório de experiências que o ser humano passa até sobrepujar as inquietudes da carne”.

inri-cristo-sinuca

Tocando.Org: Além de jogar sinuca, você curte uma cervejinha com aperitivo, talvez um churrasquinho?

INRI CRISTO: “Eu não aprecio churrasquinho, posto que não tenho hábito de me alimentar de cadáver, seja cadáver de boi, de galinha, de porco ou qualquer outro. Prefiro os alimentos naturais. Todavia, tomo sim uma cervejinha vez por outra, nada contra”.

Tocando.Org: Em outra entrevista você afirmou já ter experimentado os prazeres da carne, isso aconteceu mesmo? Quando? Lembra quantas mulheres transou? Você transou com homens?

INRI CRISTO: “Há dois mil anos, antes de começar a vida pública como Jesus, com o nome de Emanuel, dos treze aos trinta anos experimentei os pecados do mundo inerentes àquela época (“Eis que o SENHOR vos dará este sinal: uma virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emanuel. Ele comerá manteiga e mel até que aprenda a separar o mal do bem” – Isaías c.7 v.14). “Comer manteiga e mel” significa experimentar o doce e o azedo, as coisas boas e ruins, até obter o discernimento (nas traduções mais antigas da Bíblia se traduz, em lugar de manteiga, leite coalhado, que é azedo). Só passei a me chamar Jesus depois do jejum. Justo por haver me enlameado no pecados do mundo é que exigi ser batizado por João Batista (Mateus c.3 v.14 e 15), e só depois disso pousou sobre mim o Espírito Santo. E assim agora também, dos treze aos trinta anos, vivi os pecados do mundo, até que o SENHOR me levou ao jejum em Santiago do Chile e me deu poder sobre a carne. Desde então já não tenho as inquietudes carnais que são inerentes aos seres humanos. Mas quanto ao número de mulheres que estiveram comigo na alcova, nunca carreguei comigo uma calculadora nem agenda para registrar. Até o jejum eu vivia como profeta de um DEUS desconhecido, peregrinava de cidade em cidade e estava sempre de passagem, cumprindo o que está previsto em Apocalipse c.3 v.3: “Virei a ti como um ladrão e não saberás a que hora virei a ti”. Depois do jejum foi que tudo mudou”.

Tocando.Org: A igreja é contra métodos anticoncepcionais tal qual camisinha, qual sua postura em relação a isso?

INRI CRISTO: “Melhor seria que todos pudessem viver em pureza, como ensino meus discípulos, mas já que o ato sexual faz parte da vida dos habitantes da terra não só para fins procriativos e a explosão demográfica salta aos olhos, então eu recomendo aos meus filhos, principalmente aos jovens, que usem sim a camisinha não só para evitar a gravidez indesejada, mas também como prevenção, já que existem tantas pestilências, como AIDS, sífilis, etc. E eu posso lhes garantir, meus filhos, que usar camisinha não condenará ninguém ao inferno. Melhor saudável encamisado do que doente descamisado”.

Tocando.Org: Rumores apontam um possível fim do mundo em 2012, o que você tem a dizer sobre isso?

INRI CRISTO: “Há dois mil anos já me perguntaram quando seria o fim do mundo, aos que lhes respondi: “Mas quanto àquele dia e àquela hora, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas só o PAI” (Mateus c.24 v.36). Portanto agora não vou mudar minha postura, continuo coerente com o que eu disse. O que posso vos dizer é que os homens, fazendo mal uso do livre arbítrio, construíram armas destrutivas, violaram as sagradas leis de DEUS e esqueceram-se também dos santos mandamentos. Semearam desta forma, através de atos e pensamentos, catástrofes e terremotos que, acompanhados da hecatombe nuclear, culminará com o fim deste mundo caótico. Menos de um milhão de pessoas restarão vivas na terra, e a maioria será constituída de mutilados que suplicarão a morte, que em princípio não lhes ouvirá. Então, como você bem disse, são rumores, assim como no ano 2000 pensaram que eu voltaria voando lá do céu de carne e osso e se decepcionaram. Tão somente o ano 2000, mais precisamente no dia 24/10/2000, foi quando o Poder Judiciário brasileiro reconheceu oficialmente meu nome como INRI CRISTO”.

inri_foto

Tocando.Org: Você aceitaria ser penetrado no ato sexual conhecido como sexo anal, se para isso te pagassem 1 milhão de reais?

INRI CRISTO: “Em primeiro lugar, eu não pratico sexo, e em segundo lugar, não tenho ambição pessoal, não possuo nem jamais possuirei bens materiais. Logo, essa tua proposta não combina com minha condição, não condiz com minha realidade, pois vivo uma vida espiritual”.

Tocando.Org: Pra finalizar, poderia deixar sua mensagem para nosso nossos leitores e para todos os internautas brasileiros?

INRI CRISTO: “Rogo ao meu PAI, SENHOR e DEUS que vos inspire e ilumine para que, ao acessar o site www.inricristo.org.br , assimileis os ensinamentos que ministrei da parte d’Ele, facultando-vos viver em harmonia na Terra e sobrepujar as turbulências que estão por vir. Que tenhais todos a minha paz”.

BRDE abre inscrições para EXPOSIÇÕES / curitiba

BANCO REGIONAL DE DESENVOLVIMENTO DO EXTREMO SUL

Abertas as inscrições de propostas para exposições no Espaço Cultural BRDE

Artistas interessados em mostrar o seu trabalho no Espaço Cultural BRDE – Palacete dos Leões – em Curitiba, já podem apresentar projeto para o calendário de 2010-2011.  A coordenação do Espaço vai receber projetos para exposições individuais ou coletivas de artes visuais – pintura, desenho, gravura, fotografia, obras tridimensionais, instalações e outras técnicas. O prazo encerra-se no dia 30 de outubro. As propostas serão analisadas e aprovadas conforme os critérios constantes do regulamento de uso do espaço e de acordo com as vagas disponíveis no calendário de eventos.

Já passaram pelo Espaço Cultural BRDE este ano gravuras de Loizel Guimarães, pinturas de Edilson Viriato, esculturas de Espedito Rocha, pinturas e peças em cerâmica de Rossana Guimarães, desenhos e pinturas de André Mendes, além de outras duas exposições coletivas. Artistas com longa carreira, novos artistas, técnicas variadas e linguagens diversas fazem parte das opções oferecidas no Espaço Cultural BRDE. O pintor Jair Mendes e o fotógrafo alemão Stefan Moses também já tiveram suas obras expostas no prédio histórico.

O já consagrado escultor Alfi Vivern, diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) em Curitiba, expôs no BRDE em 2008. “Foi ma-ra-vi-lho-so pelo fato de ter obras que faziam referência ao século passado, época em que o palacete foi construído. Uma delas foi uma instalação sem título, que dialogava com o ambiente do palacete antigo. Trata-se de um quarto de hotel ‘com estrelas negativas’ – alusão feita pelo autor às hospedarias que pecam pela qualidade. A instalação remete a um hotel de rodoviária, por onde circulam migrantes. A outra peça foi a escultura ‘Freud no Divã’. Eu tive muita sorte na ambientação. O diálogo entre as obras e a casa transcorreu em perfeita harmonia. Acho importante o artista ter consciência da importância desse diálogo entre o espaço e obra” comenta.

André Mendes, jovem artista plástico, recentemente teve seu trabalho exposto na antiga casa da família Leão. “O espaço é muito interessante, carrega uma longa história e tem uma energia muito boa. A localização também é boa, praticamente central e na rota de outros espaços culturais. Existem várias formas de incentivar o uso de um espaço cultural, assim como assessoria de imprensa, convites e divulgação porque uma exposição exige um investimento inicial com o qual muitas vezes o artista tem que arcar. É muito interessante e atraente para novos artistas a ajuda para material de divulgação, montagem, etc”.

O Palacete dos Leões também abre as portas para outras atividades culturais como oficinas, pequenos concertos, lançamento de livros ou CDs e palestras. Nestes casos, será observada a disponibilidade de data, bem como a capacidade máxima de pessoas no local. As propostas deverão ser apresentadas com no mínimo 30 (trinta) dias de antecedência em relação à data pretendida.

Espaço Cultural BRDE – Mantido e coordenado pelo BRDE – Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul, o Espaço Cultural iniciou suas atividades em junho de 2005, no Palacete dos Leões, construção histórica de Curitiba, e desde então já recebeu mostras das mais variadas técnicas e linguagens. Além das exposições de artes visuais, também possibilitou apresentações de grupos musicais e lançamentos de livros. Considerado pelos artistas como um espaço nobre, o casarão da Rua João Gualberto, no Bairro Alto da Glória, por si só é uma obra de arte. Concluída em 1902, para ser residência da família de Ermelino de Leão Júnior, a construção é tombada pelo patrimônio histórico e é testemunho do ciclo da erva mate, um dos períodos mais prósperos da economia paranaense.

O regulamento para apresentação de propostas encontra-se disponível no site www.brde.com.br, e maiores informações podem ser obtidas no local.

Espaço Cultural BRDE – Palacete dos Leões
(41) 3219-8056

Poliana Dal Bosco
Estagiária / ASCOM
Fone: 41 3219.8035
Fax: 41 3219.8153

www.brde.com.br

CHARLES BUKOWSKI entrevistado pelo ator SEAN PENN / los angeles.ca

quinze anos passados desde a morte do escritor (09/03/1994), reproduzimos uma célebre entrevista feita pelo ator Sean Penn. O encontro ocorreu em 1987, quando o ator estava em Los Angeles para protagonizar Barfly, um filme-biografia sobre a vida de Bukowski, que ultrapassou em muito o território da literatura. Na última hora, porém, Sean perdeu o papel que foi entregue a Mickey Rourke. A entrevista se manteve e tornou-se memorável. Por razões de edição, a intervenção de Sean Penn concentra-se em escolher assuntos, pontos, questões que Charles Bukowski enfrenta como sempre: debochadamente, desbocadamente, cinicamente e… apaixonadamente, como era do feito daquele último beatnik, primeiro punk, amante das mulheres, das corridas e proprietário de frases e pensamentos sem freios.

BARES:
“Eu não vou muito a bares. Tirei isso do meu sistema. Hoje, quando entro num bar, sinto náuseas. Freqüentei muito, enche o saco. Os bares servem para quando somos jovens e queremos brigar, dar uma de macho, arrumar umas mulheres. Na minha idade, eu não preciso mais dessas coisas. Agora só entro nos bares para urinar. Às vezes, entro e já começo a vomitar”.

ÁLCOOL:
“O álcool é provavelmente uma das melhores coisas que chegaram à Terra, além de mim. Nos entendemos bem. É destrutivo para a maioria das pessoas, mas eu sou um caso à parte. Faço todo o meu trabalho criativo quando estoubukowski025intoxicado. O álcool, inclusive, me ajudou muito com as mulheres. Sempre fui reticente durante o sexo, e ele me permitiu ser mais livre na cama. É uma liberação porque basicamente eu sou uma pessoa tímida e introvertida, e ele me permite ser este herói que atravessa o espaço e o tempo, fazendo uma porção de coisas atrevidas… O álcool gosta de mim.”

FUMAR:
“O cigarro e o álcool se equilibram. Certa vez, ao despertar de uma embriaguês, notei que havia fumado tanto que minhas mãos estavam amarelas, quase marrons, como se eu tivesse colocado luvas. E passei a reclamar: ‘Droga! Como estarão os meus pulmões?’”

BRIGAR:
“A melhor sensação é quando você acerta um sujeito que todo mundo acha impossível. Certa ocasião enfrentei um cara que estava me xingando. Falei pra ele: ‘Tudo bem, venha’. Não tive problema – ganhei a briga facilmente. Caído no chão, com o nariz ensangüentado, ele falou: ‘Jesus, você se move tão lentamente que pensei que seria fácil. Mas quando começou a briga, eu não conseguia nem ver as tuas mãos. O que aconteceu?’. Respondi: ‘Não sei, cara. As coisas são assim. Um homem se prepara para o dia que precisa’.”

GATOS:
“É bom ter um monte de gatos em volta. Se você está mal, basta olhar pra eles e fica melhor, porque eles sabem que as coisas são como são. Não tem porque se entusiasmar com a vida, e eles sabem. Por isso, são salvadores. Quantos mais gatos um sujeito tiver, mais tempo viverá. Se você tem cem gatos, viverá dez vezes mais que se tivesse dez. Um dia, isso será descoberto: as pessoas terão mil gatos e viverão para sempre.”

MULHERES, SEXO:
“Eu as chamo de máquinas de queixas. As coisas entre elas e os homens nunca estão bem para elas. E quando vêm com essa histeria… Ah, eu tenho que sair, pegar o carro, ir embora para qualquer lugar. Tomar café em algum canto, fazer qualquer coisa, menos encontrar outra mulher. Acho que elas são feitas de maneira diferente, não? Quando a histeria começa, o cara tem de ir embora e elas não entendem porque. ‘Onde vai?’, gritam. ‘Vou à m…, querida!’. Pensam que sou um misógino, mas não é verdade. É fofoca. Ouvem por aí que Bukowski é ‘um porco chauvinista’, mas não vêm de onde partiu o comentário. Verdade! Às vezes, eu pinto uma má imagem das mulheres nos meus contos, e faço a mesma coisa com os homens. Até eu me ferro nesses escritos. Se realmente não gostar de uma coisa, digo que é ruim, seja homem, mulher, criança ou cachorro. As mulheres são tão encanadas que pensam que são meu alvo especial. Esse é o problema delas.”

PRIMEIRA VEZ:
“Minha primeira vez foi insólita. Não sabia como fazer, e ela me ensinou todas essas coisas de sacanagem. Lembro que ela dizia: ‘Hank, você é um bom escritor, mas não sabe nada sobre as mulheres.’ ‘O que você está dizendo? Eu já estive com uma porção de mulheres.’ ‘Não, não sabe nada. Vou te ensinar algumas coisas.’ Concordei. Depois, e ela disse: ‘Você é bom aluno, entende rápido’. [Bukowski faz cara de envergonhado. Não pelos detalhes, mas pelo sentimento da lembrança.] Mas esse assunto de … Eu gosto de servir a mulher, mas isso tudo tá tão exagerado! O sexo só é bom quando você não o faz.”

ESCREVER:
“Escrevi um conto a partir do ponto de vista de um violentador de uma menininha. E as pessoas passaram a me acusar. Diziam: ‘Você gosta de violentar criancinhas?’. Eu disse: ‘Claro que não. Estou fotografando a vida’. De repente, estava envolvido com uma porrada de problemas. Por outro lado, os problemas vendem livros. Em última instância, eu escrevo para mim. [Bukowski dá uma longa tragada em seu cigarro.] É assim. A tragada é para mim, a cinza é para o cinzeiro. Isto é publicar. Nunca escrevo de dia porque é como ir pelado a um supermercado – todos te podem ver. À noite é quando saem os truques da manga… E vem a magia.”

POESIA:
“Faz séculos que a poesia é quase um lixo total, uma farsa. Tivemos grandes poetas, entenda bem. Existiu um poeta chinês chamado Li Po que tinha a capacidade de colocar mais sentimento, realismo e paixão em quatro ou cinco simples linhas que a maioria dos poetas em suas doce ou treze páginas de m… Li Po bebia vinho também e costumava queimar seus poemas, navegar pelo rio e beber vinho. Os imperadores o amavam porque entendiam o que ele dizia. Lógico que ele só queimou os maus poemas. O que eu quis fazer, desculpem, é incorporar o ponto de vista dos operários sobre a vida… Os gritos de suas esposas que os esperam quando voltam do trabalho. As realidades básicas da existência do homem comum… Algo que poucas vezes se menciona na poesia há muito tempo.”

SHAKESPEARE:
“É ilegível e está demasiadamente valorizado. Só que as pessoas não querem ouvir isso. Ninguém pode atacar templos. Shakespeare foi fixado à mente das pessoas ao longo dos séculos. Você pode dizer que fulano é um péssimo ator, mas não pode dizer que Shakespeare é uma m… Quando alguma coisa dura muito tempo, os esnobes começam a se agarrar a ela como pás de um ventilador. Quando os esnobes sentem que algo é seguro, se apegam. E se você lhes disser a verdade, eles se transformam em bichos. Não suportam a negação. É como atacar o seu próprio processo de pensamento. Esses caras me enchem o saco.”

HUMOR E MORTE:
“Para mim, o último grande humorista foi um cara chamado James Thurber. Seu humor era tão real que as pessoas gritavam de rir, como numa liberação frenética. Eu tenho um ‘fio cômico’ e estou ligado a ele. Quase tudo o queCHARLES BUKOWISKI - FOTOsem títuloacontece é ridículo. Defecamos todos os dias – isso é ridículo, não? Temos que continuar urinando, pondo comida em nossas bocas, sai cera de nossos ouvidos… As tetas, por exemplo, não servem para nada, exceto…”.

NÓS:
“A verdade é que somos umas monstruosidades. Se pudéssemos nos ver de verdade, saberíamos como somos ridículos com nossos intestinos retorcidos pelos quais deslizam lentamente as fezes… enquanto nos olhamos nos olhos e dizemos: ‘Te amo’. Fazemos e produzimos uma porção de porcarias, mas não peidamos perto de uma pessoa. Tudo tem um fio cômico.”

GANHAR:
“E depois de tudo, morremos. Mas a morte não nos ganhou. Ela não mostrou nenhuma credencial; nós é que nos apresentamos com tudo. Com o nascimento, ganhamos a vida? Não, verdadeiramente, mas a f.da p. da morte nos sufoca… A morte me provoca ressentimento, a vida também, e muito mais estar pressionado entre as duas. Você sabe quantas vezes eu tentei o suicídio? Me dá um tempo, tenho só 66 anos. Quando alguém tem tendências suicidas, nada o incomoda, exceto perder nas corridas de cavalos.”

AS CORRIDAS:

“Durante um tempo quis ganhar a vida com as corridas de cavalos. É doloroso, vigoroso. Tudo está no limite, o dinheiro do aluguel, tudo. É preciso ter cuidado. Uma vez, eu estava sentado numa curva, haviam doze cavalos na disputa, todos amontoados. Parecia um grande ataque. Tudo o que eu via era essas grandes traseiras de cavalos subindo e descendo… Pareciam selvagens. Pensei: ‘Isso é uma loucura total’. Mas tem outros dias em que você ganha 400 ou 500 dólares, ganha oito ou nove corridas, e se sente Deus, como se soubesse tudo.”

AS PESSOAS:
“Não olho muito as pessoas. É perturbador. Dizem que se você olha muito para uma outra pessoa acaba ficando parecido com ela. Pobre Linda! Na maioria das vezes eu posso passar sem as pessoas. Elas me esvaziam e eu não respeito ninguém. Tenho problemas nesse sentido. Estou mentindo, mas, creia-me: é verdade.”

A FAMA:
”É uma cadela, é a maior destruidora de todos os tempos. A fama é terrível, é uma medida numa escala do denominador comum que sempre trabalha num nível baixo. Não tem valor nenhum. Uma audiência seleta é muito melhor.”

SOLIDÃO:
”Nunca me senti só. Durante um tempo fiquei numa casa, deprimido, com vontade de me suicidar, mas nunca pensei que uma pessoa podia entrar na casa e curar-me. Nem várias pessoas. A solidão não é coisa que me incomoda porque sempre tive esse terrível desejo de estar só. Sinto solidão quando estou numa festa ou num estádio cheio de gente. Cito uma frase de Ibsen: ‘Os homens mais fortes são os mais solitários’. Viu como pensa a maioria: ‘Pessoal, é noite de sexta, o que vamos fazer? Ficar aqui sentados?’. Eu respondo sim porque não tem nada lá fora. É estupidez. Gente estúpida misturada com gente estúpida. Que se estupidifiquem eles, entre eles. Nunca tive a ansiedade de cair na noite. Me escondia nos bares porque não queria me ocultar em fábricas. Nunca me senti só. Gosto de estar comigo mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.”

TEMPO LIVRE:
“É muito importante e temos que parar por completo, não fazer nada por longos períodos para não perdê-los inteiramente. Ficar na cama olhando o teto. Quem faz isso nesta sociedade moderna? Pouquíssimas pessoas. Por isso é que a maioria está louca, frustrada, enojada e com ódio. Antes de me casar, ou de conhecer muitas mulheres, eu baixava as cortinas e me punha na cama por três ou quatro dias. Levantava só para ir ao banheiro e comer uma lata de feijão. Depôs me vestia e saía à rua. O sol brilhava e os sons eram maravilhosos. Me sentia poderoso como uma bateria recarregada.”

BELEZA: “A beleza não existe, especialmente num rosto humano – ali está apenas o que chamamos fisionomia. Tudo é um imaginado, matemático, um conjunto de traços. Por exemplo, se o nariz não sobressai muito, se as costas estão bem, se as orelhas não são demasiadamente grandes, se o cabelo não é muito comprido. Esse é um olhar generalizante. A verdadeira beleza vem da personalidade e nada tem a ver com a forma das sobrancelhas. Me falam de mulheres que são lindas… Quando as vejo, é como olhar um prato de sopa.”

FIDELIDADE:
“Não existe. Há algo chamado deformidade, mas a simples fidelidade não existe.”

IMPRENSA:
“Aproveito as coisas más que dizem sobre mim para aumentar a venda de livros e me sentir malvado. Não gosto de me sentir bem porque sou bom. Mas, mau? Sim, me dá outra dimensão. Gosto de ser atacado. ‘Bukowski é desagradável!’ Isso me faz rir, gosto. ‘É um escritor desastroso!’ Rio mais ainda. Mas quando um cara me diz que estão dando um texto meu como material de leitura numa universidade, fico espantado. Não sei, me assusta ser muito aceito. Parece que fiz alguma coisa errada.”

O DEDO:
[Ergue o dedo mínimo de sua mão esquerda] “Você viu alguma vez este dedo? [O dedo parece paralisado em forma de “L”]. Quebrei uma noite, bêbado. Não sei porque, ele nunca voltou ao normal. Mas funciona bem para a letra ‘a’ da máquina de escrever, e – que mistério! – acrescenta coisas aos meus personagens.”

VALENTIA:
“Falta imaginação à maioria das pessoas supostamente valentes. É como se não pudessem conceber o que aconteceria se alguma coisa saísse mal. Os verdadeiros valentes vencem a sua imaginação e fazem o que devem fazer.”

MEDO:
“Não sei nada sobre isso.” [Ri]

VIOLÊNCIA:
“Acho que, na maioria das vezes, a violência é mal interpretada. Faz falta uma certa violência. Existe em nós uma energia que precisa ser liberada. Se ela for contida, ficamos loucos. Às vezes, chamam de violência à expulsão da energia com honra. Existe loucura interessante e loucura desagradável; há boas e más formas de violência. Sei que é um termo vago, mas ela fica bem se não acontecer às custas dos outros.”

DOR FÍSICA:
“Com o tempo, o cara se endurece e agüenta. Quando eu estava no Hospital Geral, um cara entrou e disse: ‘Nunca vi ninguém agüentar a agulha com tanta frieza’. Ora, isso não é valentia. Se o sujeito agüenta, alguém cede. É um processo, um ajuste. Mas não existe maneira de se acostumar com a dor mental. Fico longe dela.”

PSIQUIATRIA:
“O que conseguem os pacientes psiquiátricos? Uma conta. Creio que o problema entre um psiquiatra e seu paciente é que o psiquiatra atua de acordo com o livro, ainda que o paciente chegue pelo que a vida lhe fez. E mesmo que o livro possa ter certa astúcia, as páginas sempre são as mesmas e cada paciente é diferente. Existem muito mais problemas charles-bukowskiindividuais que páginas. Tem muita gente louca para resolvê-los, dizendo: ‘São tantos dólares por hora e quando a campainha tocar a sessão estará terminada’. Isso só pode levar um cara um pouco louco à loucura total. Quando as pessoas começam a se abrir e sentir bem, o psiquiatra diz: ‘Enfermeira, marque a próxima consulta’. O cara tá aí para sugar, não para curar. Quer o teu dinheiro. Quando toca a campainha, que entre o louco seguinte. Aí o louco sensível vai perceber que quando toca a campainha, é sinal que o f… Não existem limites de tempo para curar a loucura. Muitos psiquiatras que vi parecem estar no limite deles mesmos, mas estão bem acomodados. Ah, os psiquiatras são totalmente inúteis. Próxima pergunta…”

FÉ:
“Tudo bem que as pessoas a tenham, mas não me venham enfiar isso na cabeça. Tenho mais fé no encanador que no Ser Eterno.”

CINISMO:
“Me chamaram sempre de cínico. Creio que o cinismo é uma uva amarga, uma debilidade. É dizer: ‘Tudo está uma m… Isso não tá bom, aquilo tá ruim’. O cinismo é a debilidade que evita que nos ajustemos ao que acontece no momento. O otimismo também é uma debilidade: ‘O sol brilha, os pássaros cantam, sorria.’ Isso é uma m… igual. A verdade está em algum ponto entre os dois. O que é, é. Se você não está disposto a suportar a verdade, dane-se!”

MORALIDADE CONVENCIONAL:
“Pode ser que não exista o inferno, mas os que julgam podem perfeitamente criá-lo. As pessoas estão muito domesticadas. O cara tem que ver o que acontece e como vai reagir. Vou usar um termo estranho aqui: o bem. Não sei de onde vem, mas sinto que existe um componente de bondade em cada um de nós. Não acredito em Deus, mas creio nessa ‘bondade’ como um tubo que está dentro de nossos corpos e que pode ser alimentada. Ela é sempre mágica quando, por exemplo, numa estrada sobrecarregada de automóveis, um estranho te oferece lugar para mudar de mão.”

SOBRE SER ENTREVISTADO:
“É vergonhoso e, por isso, nem sempre digo toda a verdade. Gosto de brincar e mentir um pouco. Daí que dou informações falsas só pelo gosto de distrair. Se quiserem saber alguma coisa de mim, não leiam uma entrevista. Ignorem esta, também”.

O MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO APRESENTA O SEU RECENTE “BEST SELLER”

REVISTA "VIP" para "MODELOS".

REVISTA "VIP" para "MODELOS".

o mercado editorial brasileiro produz e distribui, de forma massiva, em livrarias e bancas de jornais, esta formidável revista de entretenimento e cultura para as nossas jovens que sonham em ser modelos de grandes grifes ou “relações públicas” de casas de espetáculo. a manchete da revista mostra como ela tem a intenção e pode “ajudar” as meninas brasileiras a se encaminharem na vida “profissional”. indico tal revista, como uma das representantes do mercado editorial, para receber TODOS os prêmios de literatura nacionais. enquanto isso, o judiciário brasileiro censura a nossa imprensa por publicar crimes de natureza pública.

jb vidal

COMO SE POLUI UM RIO (PARTE I) por gil portugal / rio de janeiro

Em realidade, despoluir ou não poluir um rio é uma tarefa de múltiplas facetas e exige atuações postas tais quais um feixe de retas paralelas em uma mesma direção.

Em primeiro lugar, para coordenar idéias, compete definir aquilo que é, para um rio, o seu elemento ou elementos vitais, a partir de que ele será um rio “com saúde”.

Desculpem-me se, daqui para frente, passarei a escrever sobre o óbvio mas, se o farei, nada mais é que para ordenar a linha de pensamento.

Na massa d’água corrente de um rio existem um sem número de organismos vivos dos reinos vegetal e animal e em todos os graus de entrosamento. É um ecossistema. E a Natureza nos ensina que todo ecossistema tem que viver harmoniosamente.

Vejamos, para começar, o reino animal que está presente no rio. A grande maioria de seus membros, devido ao rio, sobrevive, porque ali se alimenta e respira (oxigênio) ar e por isso, eles são animais aeróbios. Se não existissem no rio alimento ou ar eles morreriam. Com isso, tira-se a primeira conclusão: o ar, isto é, o oxigênio é peça indispensável para a sobrevivência do ecossistema, da mesma forma que o alimento, como para qualquer animal, e que, neste caso é a matéria orgânica. Acontece que a respiração é a função primordial, visto que, à sua falta o animal perece de imediato, donde se conclui que o oxigênio é a matéria prima fundamental para a sobrevivência do ecossistema rio.

Basicamente, o oxigênio estará presente na massa líquida por dois processos: a diluição em contato com o ar atmosférico e a fotossíntese devida aos vegetais. E aí, podemos chegar à primeira grande conclusão: se não houver diluição de contato e fotossíntese somadas em quantidade suficiente, fornecendo oxigênio para atender a fauna, ela perecerá gradativamente, até a posição de equilíbrio com a demanda.

O animal respira oxigênio e expira CO2 (dióxido de carbono), se alimenta de matéria orgânica e a transforma em minerais; a planta absorve o CO2 e através da fotossíntese, regenera o oxigênio.

Essa teoria é límpida e certa e com ela, podemos analisar um a um os fatos que fazem “adoecer” um rio e, com isso, nominar cada reta do nosso feixe de paralelas citado. Vejamos:

Desmatamentos – A retirada de um vegetal do solo ou mesmo sua morte, enfraquecerá a resistência mecânica desse solo graças a fixação que havia pelas raízes. Ao perder essa resistência, as águas de chuva iniciam um processo de erosão que, invariavelmente, mesmo que longe do curso d’água, irá carregar para os leitos desse curso, quantidades anormais de sólidos, levando ao processo de assoreamento.

O assoreamento conduz a dois acontecimentos, um deles de caráter não ambiental propriamente dito, que é a diminuição da seção fluída e com isso, provocará alagamento extra-caixa do rio e o outro ambiental, que se dá pelo soterramento dos vegetais de fundo e inibição da penetração para eles do oxigênio, passando, aí, a ocorrer outro processo de decomposição do material orgânico soterrado – sem a presença de oxigênio – através de organismos ditos anaeróbios (que não necessitam do oxigênio dissolvido para respirarem) mas que, ao invés de darem como produto o dióxido de carbono e minerais (insumos para a fotossíntese), produzirão gases derivados de carbono e do enxofre como o metano, as mercaptanas e os gases sulfurosos, venenos para a fauna aeróbia.

Agrotóxicos – São substâncias utilizadas em plantações com a finalidade de matar organismos nocivos à saúde dessas plantações; evidentemente que, essas substâncias, mais cedo ou mais tarde, pelas chuvas, serão carreadas para um curso d’água, continuando ali seu efeito tóxico sobre outros organismos que não aqueles a que se destinavam eliminar. Tais organismos, principalmente os microorganismos, são exatamente aqueles que se encarregam de fazer a decomposição das substâncias orgânicas no seio da massa líquida e se eles estão mortos ou doentes, funcionarão como mais alimentos a serem consumidos, ao invés de transformadores de alimentos.

Adubos – São substâncias colocadas em plantações com a finalidade de abastecê-las de seus elementos vitais como o nitrogênio, o potássio e o fósforo, são as “vitaminas” da flora e estimulam seu crescimento. De uma forma ou de outra, parte desses adubos serão carregados para os rios e ali incentivarão o crescimento dos vegetais aquáticos, principalmente os minúsculos como as algas e esse crescimento exagerado fará acontecer o fenômeno de eutrofização (proliferação exagerada de vegetais) que turvará de verde as águas, dificultando a penetração de luz solar, imprescindível à fotossíntese (que é geradora de oxigênio).

Barragens – O turbilhonamento das águas é fator que facilita a dissolução de oxigênio do ar na água. Se as águas ficam tranqüilas, caso das águas barradas, a tendência à oxigenação diminui à montante (antes) da barragem e também, fica facilitada a deposição de poluentes pesados que comprometem o ecossistema; de positivo, nesse caso, há um favorecimento na depuração das águas à jusante (depois).(continua…)

angela – de jorge barbosa filho / curitiba

angela

essa moça

quando canta blues

lembra a leveza

de um zagueiro

do Bangu.

e quando canta

leva a certeza

de um drible de língua

e um beijo

por de baixo das pernas.

essa moça canta

uma partida

de um amor perdido

mas no último minuto

ganha-o no grito.

horas ácidas – de charles silva / florianópolis

seis horas
ela já vem vaidosa
de corpete liga e lingerie
a noite é uma fêmea impecável
sombra e rímel realçam a malícia
as unhas compridas aguardam o descuido das presas
são fantasmas que como eu percorrem os becos em busca de gozo fácil

sete e meia
o amendoim salgado alegra o gosto adocicado da cerveja
mulheres passam tingindo pêlos passos pensamentos
o que há em mim de fantasma não se apressa
o blefe da noite é comprido
os jogos noturnos implicam baralhos sutis
são lances de olhares coringas febris e damas que trocam seus pares

oito e quarenta e sete
um fantasma perambula pelas ruas da cidade
o mistério dessas margens é fazer dos habitantes uma ilha
por não saber nadar fico preso seco e viro pó

dez gramas e meio
agora o copo é de uísque
novos fantasmas sorriem pra mim
desenvolvo argumentos fantásticos que nunca usei
pensá-los assim tão vivos alegres arregalados assusta
da janela uma mulher astuta me deseja
ou deseja apenas o que a língua acusa

um ácido e meio
a ilha inteira flutua
surfistas abotoam o vestido das ondas
por que meus pais não me contaram essa história?
bungee jumpo-me do mundo!

duas torradas com pasta de cogumelo
as cadeiras jantam os garçons
corro e caio e exponho os ossos
ergo-me lobato cobra norato aladim
os ladrões de ali babá já somam dezesseis bentos
alice mata um coelho
bovary papa um convento

cinco ecstasys e meio da madrugada
pouca ilha… muita água
a língua trava

INTI PEREDO – 40 ANOS DA MORTE DE UM BRAVO – por manoel de andrade / curitiba

Após quatro meses no Chile, cheguei em La Paz em 02 de setembro de 1969. Trazia uma referência de Santiago para contato com um membro de Exército de Liberação Nacional da Bolívia (ELNB), onde pretendia ingressar.

Ambientava-me ainda na cidade, quando ao fim daquela primeira semana o país foi sacudido por uma trágica notícia: o guerrilheiro Inti Peredo, comandante do ELNB fora morto por forças combinadas da Polícia e do Exército num bairro central  de La Paz.

Lugar-tenente de Che Guevara na guerrilha boliviana, sobrevivente do trágico combate na Quebrada do Yuro em outubro de 1967, estrategista da audaciosa retirada pela fronteira com o Chile, onde o esperava o senador Salvador Allende e reorganizador da luta armada na Bolívia depois da morte do Che, o guerrilheiro Inti Peredo, morreu assassinado aos 32 anos, no dia 09 de setembro de 1969.

Nascido em 30 de abril de 1937, em Cochabamba, Alvaro Inti Peredo Leigue era  filho do escritor boliviano Rômulo Peredo. Aos 13 anos já militava no Partido Comunista Boliviano, seguindo muito jovem para estudar na escola do Partido no Chile e dali para Moscou em 1962 para um curso político. No ano seguinte, já de volta, desloca-se para o norte da Argentina, dando apoio ao Exército Guerrilheiro do Povo, dirigido pelo jornalista Jorge Ricardo Masetti, na região de Salta. Posteriormente colabora com a guerrilha peruana e em 1966 faz treinamento militar em Cuba. Volta a Bolívia em 1967, rompe com Mario Monje, secretário geral do Partido Comunista Boliviano e adere à guerrilha comandada por Che Guevara.

Sobrevivente de Ñacahuazu, escapa pela fronteira do Chile, volta a Cuba e em maio de 1969 retorna clandestinamente à Bolívia para reorganizar a guerrilha. Dois meses depois, lança sua mensagem “Voltaremos às Montanhas”, que comoveu o opinião pública do país e deu início a sua brutal perseguição por parte do governo. Delatado seu esconderijo em La Paz, a casa  foi cercada  e sozinho resistiu por uma hora ao ataque de 150 policiais e militares, até que uma granada lançada por uma janela o feriu gravemente.  Arrombada a porta, finalmente foi preso, sem jamais ter se rendido.

Inti Peredo foi selvagemente torturado pelo seu heroico silêncio e barbaramente assassinado a cuteladas de fuzil pelo sanguinário coronel Roberto Toto Quintanilla, o mesmo que mandou cortar as mãos do cadáver do Che, em La Higuera.

Diante de sua morte, meus planos foram totalmente frustrados. Convidado, naqueles dias para participar do Segundo Congresso Nacional de Poetas,  a realizar-se em Cochabamba,  entre 22 e 27 de setembro, transformei minha frustração e minha revolta em versos escrevendo  um poema em homenagem a Inti Peredo,  para dizê-lo, correndo todos os riscos, em pleno Congresso.  Foi meu primeiro poema escrito em espanhol e no dia 25, ao encerrar minha apresentação ante o grande auditório do Palácio da Cultura, declamei o poema: “El guerrilleiro”, explicitando meu tributo poético ao grande combatente assassinado há duas semanas em La Paz.

A Bolívia, naqueles dias, respirava uma pesada atmosfera de golpe e em 26 de setembro cai o presidente democrata Luis Adolfo Siles Salinas e toma o poder e general Alfredo Ovando Candia, responsável pelo grande massacre de mineiros, em junho de 1967, conhecido como “La noche de San Juan”. No dia seguinte fui detido, interrogado e posteriormente liberado por intervenção dos organizadores do Congresso, com a condição que deixasse o país em 48 horas.

Neste 09 de setembro de 2009, solidário com a memória das lutas da América Latina e comemorando o aniversário de morte de Inti Peredo, publico aqui  o poema “ O guerrilheiro”,  em espanhol, escrito exatamente há quarenta anos, em Cochabamba, como meu lírico tributo a um dos maiores revolucionários do Continente.

coco_peredo_nato_loyola_guzman_Inti_402x256na foto: coco peredo, nato, loyola guzmán e inti peredo na selva boliviana.

El guerrillero

En memoria de Inti Peredo

El guerrillero, señores

es un sueño armado que marcha

en el suelo injusto de la patria.

Sabe que quien tiene la tierra

no la reparte sin guerra…

y en ese áspero camino

es um pájaro sin nido

migrando para el porvenir.

.

el guerrillero, señores

es una flor clandestina

que se abre en la mata inmensa

cuando los ecos de la montaña

rompen el silencio del tiempo

y revelan el puño escondido

en las manos agrarias de un pueblo.

.

Su cuerpo… es su trinchera,

su vida por una bandera…

por su honor, por su fe

y su destino trazado.

Si cae… sigue erguido en la verdad

cuando la voz de la libertad

sorviendo la taza de hiel

es un grito asesinado.

.

Ay qué dureza en tus puños

hijo querido del pueblo.

Con qué ternura forjaste

tu corazón de granada

Pues abatieron este hombre

es la esperanza sangrada

y vivo está con su fuego

renaciendo en cada niño

ay, niño sin hogar, sin pan

tu heroico padre de estaño

fue minero masacrado

en una noche de San Juan

.

En la memoria del pueblo

en la sangre continental

fue tu estatua de espanto

que yo esculpí con mi canto

con mi dolor de extranjero

ay, hermano boliviano

ay, un sol asesinado

en tu cuerpo de sendero.

.

pero el alba rompe el día

en la patria y en el corazón

y vivo estás compañero

en el rastro azul de tus pasos.

Ay qué destino tan lindo

América como bandera…

Señores, no tengo patria

soy latino y americano

y e1 guerrillero más bravo

no conoció las fronteras.

.

Compañeros, camaradas

ya es la hora de partir…

Camilo Torres, Guevara

Inti Peredo y Sandino

enseñaron que el sueño

es la palanca del destino.

Pues canten siempre en mi canto

los mártires de la libertad

pocos pueden presentir

que detrás del velo del tiempo

los coágulos de su sangre

son el pan del porvenir.

.

Cochabamba, septiembre de 1969

Este poema, en versión bilingüe, consta del libro

POEMAS  PARA A LIBERDADE, editado por Escrituras

BORRA ASSINADA de lilian reinhardt


(líricas de um evangelho insano)

No fundo da xícara
a borra do meu olhar.
Dos olhos borrados de pó,
de orvalho salgado,
no (dó)i do teclado que ouço
e não entendo…
meu olhar geométrico
se perde na mancha abstrata,
onde assino?!

CONSIDERAÇÕES PESSOAIS EM TORNO DE FERNANDO PESSOA, OFÉLIA E ÁLVARO DE CAMPOS – por zuleika dos reis / são paulo


Álvaro de Campos se intrometeu e destruiu o romance entre Fernando Pessoa e Ofélia Queirós.

Amar um homem sabendo que ele nos ama e que também é outro que nos odeia. Perceber, aos poucos, que este outro vai ganhando mais e mais força, vai nos exilando daquele que, nele mesmo, nos ama; saber também que somos uma e apenas uma. Conviver com essa inalienável unidade e, tendo somente dezenove anos, nos sentirmos obrigada a compreender a dualidade essencial do ser amado e a aceitá-la, a esta dualidade que é, de certo modo, a nossa sentença de morte.

Álvaro de Campos venceu. Paladino da literatura, guerreiro da palavra, ganhou definitivamente Pessoa para si e para Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e outros mais. Para isso, Ofélia teve que ser sacrificada. Hamlet português, Ofélia portuguesa, que não enlouqueceu, que guardou durante muitos anos, no anonimato e na clausura de um cofre, as cartas de amor de seu poeta. Durante quinze anos, esperou por ele de algum modo, esperou por uma rendição de Álvaro de Campos e dos outros a Fernando Pessoa, na verdade rendição de todos a um outro do Fernando Pessoa ele – mesmo, como o poeta se auto intitulava, e que era apenas mais um heterônimo.

Esperou em vão, a literatura venceu. Ganhamos todos. Algo se perdeu? Quem o perdeu? O que teria sido se, em determinado dia de um distante outubro do começo do século XX, Fernando Pessoa não tivesse dado à luz Álvaro de Campos? E se este, nos dezenove anos de Ofélia, não tivesse manifestado a força e a vontade implacáveis que afastaram Fernando de Ofélia? Existiria a Obra que houve, que há? Afinal, o que teria existido se o grande poeta houvera optado por viver, ao invés de navegar… e navegar… e… navegar?

Só temos o que temos, só existe o que existe e em mim esta repentina dor quando penso naquela musa quase adolescente a tomar parte, meio sem consciência, de tal batalha entre o amor e a palavra poética; de tal luta, no interior do ser, entre o poeta com sua dor existencial feita de indagações, de respostas sempre provisórias, de certezas nenhumas e o homem desejoso do simples amor humano e destinado à perpetuação da espécie: homem abdicado, anestesiado, por vontade própria, da consciência trágica inerente à condição de se existir e de se ser.

Venceu a Poesia. Vencemos nós. Perdeu Ofélia? Perdeu Fernando? Toda e qualquer resposta se esvai sem deixar rastro. Venceu a literatura para a qual os nomes e os destinos pessoais acabam por não ter, no decorrer da História, a menor importância.

ESPERA de otto nul / palma sola.sc

Espero-o

Não vem

Já andei em círculo

Contei carneirinhos no céu

Li um artigo num jornal

Conversei sobre o tempo

Com um desconhecido

Dei uma volta na praça

Tomei cafezinho

Fui até uma esquina e voltei

Vi duas vezes o mesmo ônibus passar

O relógio marcava uma hora a mais

Espero-o

Não virá nunca

MENINA E PAI por jorge lescano / são paulo

In memoriam Luanda Lescano

A menina estica o braço, abre a mão, os delicados dedos improvisam uma coreografia. A mão do pai rasga o pão. A crosta dourada crepita em surdina, libera o morno aroma do miolo tenro. O homem deposita o pedaço de pão na mão da filha. A menina recebe a dádiva com gesto natural. Seus dentes repetem o som ao entrar em atrito com a casca, ela sorri, os olhos fixos no rosto do homem. Ele a observa. Seus olhos parecem procurar algo muito distante no espaço, ou talvez alguma imagem antiga. Sem o saber, ambos vivem um ritual.

Os gestos de dar e receber o pão são dos mais antigos da vida familiar, pois o pão é o primeiro alimento fabricado pelo homem. Até aquele momento fundador, a espécie se alimentava com o que conseguisse colher da natureza. A cozinha limitava-se a cozer verduras, raízes, assar a carne da caça e da pesca.

Houve um momento em que a mulher plantou a semente e a família deu início à cerimônia da espera da maturação. A família colheu a espiga, moeu o grão. A mãe fez massa da farinha e a levou ao forno de onde saiu transformada em pão. Não é improvável que naquele dia este fosse o único alimento consumido, para melhor apreciá-lo. É possível que aquele dia prefigurasse muitos outros em que o pão, tornado símbolo, se multiplicasse nas mãos do pai, do chefe da tribo, do messias. Desde então sua presença, ou ausência, revela a condição dos que se reúnem em torno da mesa.

Talvez o homem pense nisto, sequer de modo obscuro, ao entregar o pão e ver a filha apanhá-lo com seu sorriso de criança e sem hesitar levá-lo à boca. Talvez o pai tente imaginar se aquele instante virá a fazer parte das lembranças da menina quando ele não mais estiver no mundo. Talvez ela guarde para sempre o olhar do pai no momento da oferta. O silêncio e a lentidão com que se deu o ato permitem estas especulações.

O IMBECIL RETÓRICO por walmor marcellino /curitiba

WALMOR MARCELLINO FOTO 1

Estranhos e perigosos

Cultura essencialmente ágrafa ou insinuantemente letrada para os efeitos de exibir-se em público ‑ na verdade, só por ter ouvido falar de questões profundas e participado de aulas e comícios, e de fraternizar num clube ideológico-político de auto-apreciação-e-estima ‑ ele é o controverso perfeito idiota que não perdoa o Lula por ser inteligente demais sem diploma e lamenta que Fernando-Henrique Color Cardoso seja cultura das ciências sociais com verniz internacional de falar cinco idiomas. porém não passando de um gangasterzinho barato nas lides capitalistas. Onde você esteja, qualquer que seja o tema, a besta não se avexa de lhe ocupar a paciência com o que leu no noticiário de O Estado de S. Paulo, na Folha de S. Paulo, em “O Globo” e nas revistas Veja e Isto É,  ou ouviu algum jornalista comentando questão em entrevista momentosa. O imbecil “prêt-a-porter” da política, à direita ou à esquerda, quer ser notado e nomeado, porque se julga “um seu igual” em preocupação, compromisso e estudo.

1 – Ele é um produtor primário que filosofa: “não cresce uma planta ou um ‘pé-de-pau’ sem que Deus queira” (ou alguém que mande mais); “não se muda metal sem competência e ambiência”, e com apoio na sorte vamos buscando resultados”. O que pensa sempre lhe serviu aos usos e assim leva seu farnel de fatuidades. 2 – Ele tem uma profissão conceituada; é “técnico” e reputado sapiente no fazer produtivo para seu circuito de relações sociais interativas; e assim por que o ele ajuíza sobre sociedade e política pode ser tão constrangedor, exceto nele? 3 – Ele tem alguma herança na prática transformadora, da matéria prima em úteis ao mercado; mas desde nunca se sujeitou a aprendiz-técnico nem se entregou à manufatura; para poder manter livre a criatividade, a idéia de produtividade em seu sentido artesanal. Suas opiniões culturais e políticas constituem uma estultice independente e alegre com que se incha de preceitos. 4 – Ele tem uma atividade liberal sacramentada no convencionado “círculo superior” da sociedade civil e na política, porém um universo de interesses inextricados atou-lhe uma presilha ao umbigo com o qual dialoga sua estupidez e vitupera seus dissentimentos. À vista de todos que o invejam de sua prosódia fluente. 5 – Ele é da organização experimentada desse sistema e da produção capitalistas. E não são importantes os fatos que vão sendo vistos e julgados e sim como ele desempenha sua interveniência magistral: como pensa e procede na avaliação do que ocorre para convencer interlocutores, produtores e alvores e propor-lhes práticas produtivas, economicidades alterativas e políticas públicas subsidiárias. Sua palavra impositiva é a articulação dos lugares-comuns com as novas tecnologias virtuais. 6 – Ele é um processador intelectual, um demiúrgo dos acontecimentos que só poderão ir aparecendo necessariamente ressaltados pela significação que lhes empresta sua inteligência. Entrementes, ele reflete sobre a singularidade de sua função social, com o privilégio do seu entendimento e na esplendência de sua iluminação sobre o que lhe toca (sua radiante weltanschaaung!) Sua compreensão é inexcedível e sua valorização soberba.

Qualquer desses filhos das classes em conflito pode ser o cretino que lhe cospe ideologia da “classe privilegiada”, que tem um pensamento “científico-filosófico” peculiar porque “politicamente adequado senão “correto”, na justificação de todos os crimes e iniqüidades. E ele será um dos merdas com que tropeçamos todos os dias nas ruas, casas e repartições; e que lhe dirá algumas “palavras definitivas” sobre qualquer assunto do momento.

A ARTE com CANETA ESFEROGRÁFICA de JUAN FRANCISCO CASAS RUIZ / espanha

A ARTE COM CANETA ESFEROGRÁFICA - JUAN FRANCISCO CASAS fot7gr

-.-

juan03

-.-

juan04

-.-

juan-francisco-casas-5

-.-

juan-francisco-casas-bic-boli-dibujo

-.-

juan06

Prêmios – de marilda confortin / curitiba


Tenho na minha sala, uma lareira velha toda enfeitada de troféus e diplomas que ganhei pela vida afora. Modéstia a parte, sou foda.

Aquele troféu bonito ali na frente é de TIRO ao ALVO. A mosca morta no centro, sou eu.

E aquela taça dourada é de quando fui campeã mundial de BOLA FORA. Não dei uma dentro.

O crânio rachado, em gesso, revestido de bronze, ganhei num torneio de CABEÇADAS.

A miniatura de vaso sanitário em cerâmica branca é um troféu de CAGADAS HOMÉRICAS.

Aqueles barcos em latão são vários primeiros lugares que tirei nos campeonatos de CANOA FURADA e por sempre ter entrado de GAIATO NO NAVIO.

O diploma azul, que parece uma passagem aérea para lugar nenhum é de TEMPO DE VÔO. Tenho acumulado milhares de milhagens de horas com a cabeça nas nuvens.

Ao lado do Atestado de Burrice, você pode ver a Certidão de Casamento e a Declaração de Divórcio. Fazem parte do mesmo Festival de Besteiras que participei.

Aquela bola branca, maciça,  no canto esquerdo da lareira, é de torneios de SINUCA. Vivo numa sinuca de bico constante.

Aquelas cédulas emolduradas, são dos MICOS que paguei e os galos de bronze, são das BRIGAS  que comprei.

Aquela dama no porta-retrato sou eu: UMA CARTA FORA DO BARALHO.

Tenho também um punhado de medalhas de desonra, luta inglória, maratonas de trabalho, levantamento de peso inútil,  prêmio iBesta, nadação, danação  e por aí vai.

No momento estou disputando o primeiro lugar no FENAESBO – Festival Nacional de Escrita de Bobagens.  Apesar do imensurável número de concorrentes, minhas chances são enormes.

¿Cuál será el futuro de nuestros nietos? – por leonardo boff / são paulo

Los pronósticos de los especialistas más serios son amenazantes. Hay una fecha fatídica o mágica de la que hablan siempre: el año 2025. Casi todos afirman que si ahora no hacemos nada o no hacemos lo suficiente, la catástrofe ecológico-humanitaria será inevitable.
La lenta recuperación de la actual crisis económico-financiera que se nota en muchos países, todavía no significa una salida de ella. Solamente que terminó la caída libre. Vuelve el desarrollo/crecimiento, pero con otra crisis: la del desempleo. Millones de personas están condenadas a ser desempleados estructurales, es decir, que no volverán a ingresar en el mercado de trabajo, ni siquiera quedarán como ejército de reserva del proceso productivo. Simplemente son prescindibles. ¿Qué significa quedar desempleado permanentemente sino una muerte lenta y una desintegración profunda del sentido de la vida?

Leonardo Boff

Leonardo Boff

Añádase además que hasta esa fecha fatídica están pronosticados de 150 a 200 millones de refugiados climáticos.
El informe hecho por 2.700 científicos «State of the Future 2009» (O Globo de 14.07/09) dice enfáticamente que debido principalmente al calentamiento global, hacia 2025, cerca de tres mil millones de personas no tendrán acceso a agua potable. ¿Qué quiere decir eso? Sencillamente, que esos miles de millones, si no son socorridos, podrán morir de sed, deshidratación y otras enfermedades. El informe dice más: la mitad de la población mundial estará envuelta en convulsiones sociales a causa de la crisis socio-ecológica mundial.
Paul Krugman, premio Nóbel de economía de 2008, siempre ponderado y crítico en cuanto a la insuficiencia de las medidas para enfrentar la crisis socioambiental, escribió recientemente: «Si el consenso de los especialistas económicos es pésimo, el consenso de los especialistas del cambio climático es terrible» (JB 14/07/09). Y comenta: «si actuamos como hemos venido haciéndolo, no el peor escenario, sino el más probable será la elevación de las temperaturas que van a destruir la vida tal como la conocemos».

Si probablemente va a ser así, mi preocupación por los nietos se transforma en angustia: ¿qué mundo heredarán de nosotros? ¿Qué decisiones se verán obligados a tomar que podrán significar para ellos la vida o la muerte?
Nos comportamos como si la Tierra fuese nuestra y de nuestra generación. Olvidamos que ella pertenece principalmente a los que van a venir, nuestros hijos y nietos. Ellos tienen derecho a poder entrar en este mundo mínimamente habitable y con las condiciones necesarias para una vida decente que no sólo les permita sobrevivir sino florecer e irradiar.

Leonardo Boff

2009-08-28

O AMOR ACABA por hamilton alves / florianópolis

Paulo Mendes Campos, que é um cronista que muito admiro, que foi fiel a esse gênero (também fez poesia) até o fim; nunca escreveu, que eu saiba, um conto, uma novela ou coisa semelhante, tem uma crônica, que li estampada no caderno “Mais”, da Folha de S. Paulo, faz uns anos, que refere várias situações em que o amor acaba.

Deu-me vontade de seguir referindo outros casos ou momentos em que o amor acaba, se isso não fosse redundante e até, por que não dizer?, fastidioso.

Sim, o amor acaba, quando menos se espera.

Nada é eterno.

Tudo começa e tudo termina. Tudo tem um início e um fim irremediáveis, nem que seja pelo mais doloroso dos fins.

– Tudo acaba. – disse-me uma vez uma namorada

Estávamos no auge do namoro e ela me disse isso de supetão, me pegando desprevenido para a idéia de um dia, sem mais nem menos, ter fim nosso relacionamento.

E teve.

Não sei o que discutimos certo dia que, sem pensar muito, lhe disse:

– É melhor acabar isso de uma vez; não dá mais certo.

Cobrara uma providência que não tomara referente a um interesse dela.

Laconicamente, respondeu:

– Sim, estou de acordo. Já vai longe essa relação.

Tinha alguma coisa para lhe devolver ou entregar no dia seguinte. Ela mesma, resolutamente, propôs a solução da entrega do objeto:

– Você pode deixar em tal lugar (citou o local  onde deixá-lo); não há necessidade de nos encontrar.

Quer dizer, amor mesmo nunca houve entre nós. Dois seres que se amam verdadeiramente não põem termo a uma relação tão friamente assim.

Paulo, na sua crônica, citou uma infinidade de situações em que o amor acaba. Diz ele: “o amor acaba numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois do teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar”, etc.

O fato é que, quando o amor acaba, cada qual sai com sua dor para seu lado, sem às vezes medir consequências, sem mesmo avaliar o que isso poderá custar. O amor acaba, sim, mas como dói tantas vezes.

(set/09)

JORNAL “A TARDE” (BA) entrevista o poeta MANOEL DE ANDRADE / cássia candra

Autor de uma obra engajada nos ideais revolucionários que incendiaram a América Latina a partir da Revolução Cubana, Manoel de Andrade se tornou alvo do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e teve de deixar o Brasil em 1969. Seu acervo poético dos anos que se seguiram, ainda inédito no País, vem a público 40 anos depois com a publicação de Poemas para a liberdade (Escrituras).

A poesia política, carregada de emoção, remete a uma saga literária original, que cruzou as fronteiras latino-americanas com jovens mochileiros. Editado em espanhol, Poemas para la libertad chegou à Bolívia, levado por contrabandistas equatorianos, ao Peru, Colômbia, e em 1971, na Califórnia, EUA. Seus poemas são algumas das pérolas da literatura brasileira condenadas ao ostracismo pelo AI-5.

Para o poeta, “Não houve na história um ano com tantas barricadas como em 1968”.


A Tarde – O senhor viveu os anos dourados de sua trajetória revolucionária fora do Brasil. É lamentável que tenha sido assim?
Manoel de Andrade | Pelo saldo sangrento que a Ditadura deixou na nossa história, minha saída foi o passaporte para a minha sobrevivência. Caso contrário, quem sabe não estivesse a responder esta entrevista, já que quando deixei o Brasil estava sendo procurado pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Por outro lado, o importante era estar engajado na luta revolucionária, não importa em que país sua trincheira fosse aberta. O que tenho a lamentar foi o vazio em que caiu minha poesia naquela longa ausência e, posteriormente, pelo meu  próprio manecodesinteresse  ante as dificuldades de expressão ideológica nos anos que antecederam a abertura democrática.  Em 1968 meus versos começavam a ter notoriedade nacional, sobretudo pela sua publicação pela Revista Civilização Brasileira e o amplo destaque que vinha tendo na imprensa do Paraná. A partir da minha saída, em março de 1969,  meus versos vieram à luz em outros berços fraternos, contudo não tiveram a insubstituível carícia da pátria, nem o leite materno da língua portuguesa.

AT – Esta experiência foi capaz de gerar, consciente e gradativamente, um cidadão latino- americano?
MA | Sempre me senti um cidadão do mundo. Sentir-se latino-americano é uma postura  natural quer pelas nossas origens latinas e ibéricas, quer pelo respeito à herança cultural pré-colombiana e a própria da história libertária do Continente. Esta consciência nos coloca, antes de tudo, diante de uma memória colonial de crimes e injustiças inomináveis. Diante de sua memória o ofício do escritor é sempre um compromisso de resgate, de testemunho, de acusação e de esperança e neste sentido minha experiência de caminhante  ampliou minha consciência e, consequentemente, as dimensões dessa cidadania.

AT – No prefácio de seu livro Poemas para a liberdade o senhor diz que em 2008 sua geração “foi colocada no divã da história para fazer a psicanálise de suas ações e omissões”. Como o senhor se sente neste processo?
MA | Sinto-me muito solitário, a exemplo de outros tantos que ousaram preservar seus sonhos. A recente história política do país é um farto repositório de omissões e concessões. Mas depois de tantos escândalos é irrelevante explicitar exemplos. Os encantos do poder reuniram na pátria romanos e cartagineses e,  diante das tantas benesses,  as grandes bandeiras foram arriadas e os ideais emudeceram de vergonha. Foram tantas as sementes lançadas pelos nossos sonhos ao longo do país e do Continente. Muitas delas foram sacrificadas. Outras morreram quando mataram nossa utopia. Algumas, contudo, se preservaram no meio de tanto desencanto, resistiram às ilusões do poder e  sobreviveram com suas cicatrizes, incorruptíveis na dor e ao silêncio. Algumas dessas sementes são hoje flores solitárias num mundo político com cartas marcadas. Sobrevivem porque ainda sonham. Sabem que no mundo não há mais lugar para heróis e muito menos para o homem novo. Estamos mesmificados pela globalização e, nesta ribalta, somente os mitos são iluminados. Penso que todos aqueles que empunharam suas bandeiras naquela década de lutas deveriam honrar ainda essa memória. Nunca tivemos na história do mundo um ano com tantas barricadas como o ano de 1968. Nesse contexto, meus poemas foram apenas uma solitária expressão daquela luta, porque, nos anais dessa memória, todos  sabem que  os verdadeiros poemas da bravura não foram escritos em versos. Contudo esse foi o principal motivo porque resolvi, quarenta anos depois, publicar no Brasil os meus Poemas para a liberdade.

AT – Que Manoel de Andrade nasceu daquele processo revolucionário?
MA | Nasceu um cidadão comprometido com todos os homens.  Que já não acredita na violência revolucionária para mudar o mundo e que para isso todos devem dar as mãos para empunhar as  bandeiras da educação e da paz. Que ainda acredita no sonho de um mundo socialista.
Um homem iluminado pelo sol da liberdade e  cujo coração é uma aldeia da solidariedade. Um homem despojado de interesses pessoais.  Preocupado com a justiça, com o amor ao semelhante e a caridade para os excluídos. Um homem escravo da sua consciência e que busca nunca fazer a ninguém o que não gostaria para si mesmo. Que aprendeu a combater o bom combate, disposto a dar a outra face e perdoar as ofensas. Um homem que respeita o Criador e todas as criaturas, que vê o mundo como poeta e que acredita que a poesia e a música são as mais belas expressões da alma humana.  Um homem preocupado com sua  transformação moral e que luta para transformar seu egoísmo em amor e seu orgulho em humildade.

AT – O senhor transformou política em poesia. Que consciência tinha, naquela época, do poder dos seus versos?
MA | Meus poemas políticos  nasceram pela consciência histórica que tive do meu tempo. Em 1965, um ano depois de golpe militar, participei da Noite da Poesia Paranaense, no Teatro Guaira e ali, entre os quatorze poetas convidados, fui o único a encarar a ditadura  com o poema “A Náusea” que consta deste livro. A partir de então  minha poesia foi se engajando nos ideais revolucionários da época. A revolução Cubana era o nosso farol aceso no Caribe e ao longo da América Latina os movimentos de liberação nacional abriam suas trincheiras. Eu era estudante de Direito e depois de História e declamava meus poemas entre os estudantes e em  passeatas de protesto, panfletava suas cópias mimeografadas nos ambientes da Universidade e os publicava nos boletins acadêmicos. Não sei se naquela época eu tinha consciência do poder dos meus versos, mas embora soubesse que com a poesia não se podia mudar o mundo eu acreditava que no contexto político em que vivíamos no Brasil, o papel do intelectual, e sobretudo do poeta, era comprometer-se politicamente com a época em que vivia, como fizera Castro Alves ante da escravidão,  Maiakovski na Revolução Russa e tantos outros como Byron, Garcia Lorca, Marti, Vallejo, Miguel Hernandez, Nazim Hikmet, Guillén, Neruda, Evtuchenko e depois aqui mesmo no Brasil com Thiago de Mello, Moacyr Felix, Ferreira Gullar, etc. Se meus versos tinham ou não poder que o digam os arquivos da ditadura no Paraná  onde constam cópias mimeografadas de meu poema “Saudação a Che Guevara” — panfletado nos meios estudantis e sindicais de Curitiba em novembro de 1968 –, bem como o registro de minhas atividades e das quatro edições dos meus “Poemas para La Libertad”, na América Latina. Que o digam também os registros da ABIN, em Brasília, relatando minhas atividades como intelectual, e “difamando o nome do Brasil no exterior”. Por certo o poder da minha poesia estava em seus versos libertários, seu poder de denúncia, em sua ânsia de convocação para um sonho que contagiava um continente inteiro e por eram também um lírico manifesto de esperança em um mundo novo.

AT – Como avalia o movimento que vivenciou? Que cidadãos e que sociedade foram gerados naquele processo revolucionário?
MA | Foram muitas sementes lançadas pelas vanguardas revolucionárias em todo o mundo, mas, à semelhança da “Parábola do Semeador”, a maioria delas se perdeu pelos caminhos, ou caiu entre as pedras e no meio dos espinhos. A exemplo da simbologia cristã, muitas daquelas sementes não brotaram porque caíram no terreno árido dos longos anos de ditaduras que reprimiram várias gerações  latino-americanas, deixando a juventude órfão de valores políticos e culturais. Outras brotaram, mas suas raízes não mais encontraram, no tempo, o terreno histórico para fecundar suas flores e seus frutos e outras ainda foram sufocadas pelos espinhos do capitalismo perverso e suas ilusões consumistas. As poucas sementes que caíram na boa terra brotaram e se preservaram imaculadas na seiva do ideal. Contudo os tempos já eram outros, marcados pelos cacos das grandes ideologias e seus sonhos foram marginalizadas pelo oportunismo dos seus próprios pares e pelos interesses e equívocos de uma sociedade dominada pela esperteza, pela corrupção e pelo hedonismo. Escrevi, no ano passado, pela memória dos quarenta anos de 1968, quatro artigos enfocando o problema estudantil no Brasil e no Mundo e sua opção pela luta armada na América Latina. Toda a essência desta pergunta e sua resposta estão avaliadas nas considerações finais do 4º artigo: As barricadas que abalaram o mundo”, à disposição na Internet.

AT – Qual o seu olhar sobre a América Latina hoje?
MA | É historicamente gratificante ver a América Latina representada politicamente por uma grande mobilidade social.  Na Venezuela, na Bolívia e no Equador o apoio popular tem permitido avanços mais profundos nas estruturas sociais, visando abolir seculares desigualdades de classes. É um período de transição, em que os governos mais corajosos começam a desterrar as teses  neoliberais que dominaram a política do Continente no século passado. Creio que finalmente a América Latina começa a despertar para o mundo, política e economicamente. É desejável que a integração do Brasil com a América Latina se torne ainda muito mais fraterna.

NOSSA VINGANÇA por alceu sperança / cascavel.pr

Quando perdemos amigos involuntariamente, por motivos externos, parece que um mecanismo igualmente involuntário é acionado. Pensamos que se estivéssemos mais presentes, solidários ou parceiros poderíamos ter evitado essa perda. E vem aquela ideia, que por vezes acode apenas por alguns poucos e fugazes momentos, de que pelo menos agora deveríamos ser mais presentes, solidários e parceiros dos amigos que ficam.

Agora mesmo sentimos a perda do artista plástico Wanderley Damasceno, como sentimos antes as perdas do Andrezinho Costi e do advogado Aírton Reis, sobre os quais a colega Lara Sfair e o eterno camarada Mário de OliveiraAlceu sperança  - AJC (1) já teceram memoráveis referências.

Sobre o André, tenho a declarar que um dia chegamos a tramar o esboço de um festival de música, um Woodstock cascavelense, a partir de uma idéia fixa do companheiro Chicão Lustosa.

Sobre o dr. Aírton, vale a recordação agradecida de Mário Ferreira de Oliveira. Quando Mário foi preso, na ditadura, acusado de montar um arsenal de armas para uma inexistente “subversão comunista” do PCB, o dr. Aírton Reis foi defendê-lo.

Reis não só foi impedido de verificar as dramáticas condições carcerárias em que Mário estava, sofrendo ofensas e torturas, como também ele próprio foi maltratado. São episódios que não podem ficar esquecidos nem ocultos.

Curiosamente, nosso Wanderley Damasceno, o último a pular daqui pra lá, ao ser recrutado pelo PCB tomou a iniciativa de reunir armas para uma tomada de assalto ao prédio da Prefeitura de Cascavel. Fui o encarregado de dizer a ele que a ação era descabida: a revolução percorre os caminhos da consciência política, não os da aventura irresponsável.

Coisa difícil de dizer a um entusiasmado camarada, pois eu próprio achei a coisa de um romantismo fenomenal e até senti vontade de participar!

Se não pudemos ser mais solidários, presentes ou parceiros de Damasceno, Andrezinho, Aírton, da menininha Emanuele, assassinada no acampamento de sem-terras, da garota executada no Bobódromo, dos idosos e das crianças que sucumbem à violência do trânsito, dos que sofrem as epidemias de gripe suína, dengue e hepatite resultantes da falsa “prioridade” à saúde, dos jovens trucidados na periferia, temos ao menos que estar e ser presentes, solidários e parceiros dos familiares e amigos que sobrevivem e procuram, com amor e emoção, transformar este chamado “vale de lágrimas” num planalto de humanidade, carinho e construção.

Sem deixar de derramar as lágrimas cabíveis, pois continuam chorando em nossa Pátria mãe gentil as Marias e Clarices, devemos ter claro que nenhuma homenagem seria mais necessária, suficiente e eficaz aos nossos mortos que zelar fraternalmente pelos que ficam.

Para que não se desesperem, para que se reanimem, para que reforcem o ímpeto progressista de sua missão nesta vida e neste solo. Para que combatam a chaga triste da exploração do trabalho humano, do enriquecimento com o sofrimento dos homens, do neoliberalismo e seu aquecimento global, do espírito belicoso e ofensivo da indústria de armas, da sanha homicida dos senhores da droga e das finanças, do culto à filosofia hobbesiana de que “o homem é o lobo do homem”.

Que uma dor assim pungente não seja inutilmente a derrota, o entregar dos pontos, a desistência de tornar este mundo melhor para os familiares dos nossos mortos, para seus amigos que ficam e querem extrair dessas dores e lágrimas todas a melhor vingança possível.

E qual seria ela? A transformação do Brasil num país melhor, mesmo sendo hoje oprimido pela conversa mole de Lula e seus parceiros, liquidando direitos, trapaceando com a poupança dos pobres e o dinheiro dos trabalhadores, em seu papel odioso de agentes internos, a quinta-coluna do neoliberalismo.

E a vingança maior de transformar este mundo num lugar melhor para viver, pois isso, apesar das dores pungentes, das lágrimas e das armas quentes, é não só possível como absoluta e inevitavelmente necessário/obrigatório se não queremos abdicar de nossa humanidade e de manter a vida soberana sobre este planeta.

Haverá luz e alegria no fim do túnel. Mas ainda temos que cavá-lo.

PROFECIA de solivan brugnara / quedas do iguaçu.pr

Na minha morte

milhões de pássaros vão cantar

por que milhões de pássaros cantam sempre.

Crianças nascerão,

por que  crianças nascem todos os dias.

e como combinado também

muitos homens morreram na mesma hora

que homens morrem a todo minuto.

Flores se abrirão

por mais que aqui seja inverno,

mas em algum lugar do mundo será primavera

e lá as flores se abrirão

E rosas secarão em jardins e floriculturas

Porque a muito tempo que rosas secam nos jardins

e causam prejuízo nas floriculturas

Neste dia uma pomba fará seu primeiro vôo

e nos cantos escuros e camas de toda a terra

haverá êxtases e fecundações

e terá em algum lugar  chuva, em outro sol

em metade do planeta será claro em outra, escuro

como no ing-iang

E posso profetizar

Que na exata hora da minha morte

alguns copos e pratos  se quebrarão

para sempre

por que é corriqueiro que pratos quebrem

VOAR, SEM GLAMOUR por sérgio da costa ramos / floranópolis

Viajar, ser outro em outros países, como poetou Fernando Pessoa, já não desperta os mesmos prazeres dos tempos dourados.

Os acordes de Fly Me to the Moon, ou Come Fly with Me, como festejava Frank Sinatra, resumindo a alegria de voar, transformaram-se em Missa de Réquiem depois do 11 de setembro de 2001. Os terminais se tornaram sucursais do SÉRGIO DA COSTA RAMOS 1hospício, com passageiros tresnoitados, overbookings e hordas de viajantes indignados, entregues à má sorte. As companhias aéreas e os aeroportos simplesmente não conseguiram crescer com a mesma velocidade do “mercado” e naufragam ao peso da incompatibilidade de custos: terminais malconservados ou inadequados, companhias aéreas falidas.

Voar, a partir de qualquer aeroporto rotulado como busy ou “muito ocupado” transformou-se num pequeno calvário. Se o aeroporto se hospeda nos Estados Unidos, onde voaram os “pilotos” de Bin Laden, então, a experiência é ainda mais desagradável. E acaba revogando todos os direitos individuais já conquistados pelos homens nos dois séculos e meio que se seguiram à Constituição de Filadélfia. Até ministro brasileiro já ficou descalço para as autoridades da alfândega, em Nova York…

Voar perdeu o glamour, depois da grande tragédia das torres gêmeas, na mesma Manhattan antes festiva, durante aqueles anos dourados de muito jazz, paz, fleuma e vida mansa.

Os aeroportos estão travestidos num grande formigueiro de moscas assustadas – os passageiros – submetidas aos “zangões” da imigração ou da segurança. Só no segundo trimestre de 2009, cerca de 900 brasileiros tiveram seu acesso negado pelas autoridades do Aeroporto Internacional Roissy-Charles de Gaulle, em Paris.

Foi de brasileiros a nacionalidade mais barrada na França, depois dos chineses – e isto, em pleno Ano da França no Brasil! Por conta desse minueto cultural, as autoridades francesas concordaram em refrear o seu controle draconiano. Mas os aeroportos estão transbordando de mau humor e de intolerância.

As estatísticas comprovam que ainda é muito seguro voar. Mas nunca tantos estiveram tão à mercê de acidentes fatais, como os passageiros da geração “digitalizada”, seus destinos cruzados com os dados de um supercomputador que voa a 10 mil metros de altitude. Quando um desastre aéreo acontece, a tragédia desaba sobre homens e mulheres emboscados no meio da noite – o breu gélido e assustador invadindo os charutos metálicos e os desintegrando ares abaixo, rumo ao cume das montanhas ou ao inóspito assoalho dos oceanos.

Nem por isso o verbo “viajar” deixará de ser conjugado pela humanidade – pois, a despeito dos terroristas ou do mau funcionamento de algum computador, o homem só foge do tédio se o passar dos dias lhe trouxer novos horizontes.

Pena que o preço seja cada vez mais alto. Se não em dinheiro, em dignidade e cidadania. Glamour, nos aeroportos de hoje, só se o passageiro brincar de ser um astro hollywoodiano e desempenhar o papel do “hóspede forçado”, como o Tom Hanks de O Terminal.

PRIMAVERA de philomena gebran / curitiba

TULIPAS ROJAStulipas.  foto livre.

urgente preparar-me

acordar, ficar atenta

prestar muita atenção

.

para quando a primavera vier

.

quero lavar-me no fraescor

do orvalho da manhã

mesmo antes de o sol chegar

.

para quando a primavera vier

.

quero despir-me da noite

do frio, da bruma da névoa

das nuvens, do chumbo

.

para quando a primavera vier

.

quero lavar meu rosto pálido

minhas mãos vazias e frias

meus olhos cinza e triste

.

para quando a primavera vier

.

quero soltar meu coração

quero correr livre e nua

beber o ar da manhã,

.

para quando a primavera vier

.

quero deitar-me na grama,

cobrir-me de flores

vestir-me de todas as cores

.

para quando a primavera vier

.

quero abrir meu corpo, minha alma

libertar-me de tudo, de todos

entregar-me nua e pura

.

quando a primavera chegar

FLORIANÓPOLIS, ilha dos nomes flutuantes – por charles silva / florianópolis

Quando o poeta Zininho escreveu o verso “um pedacinho de terra perdido no mar”, não fazia referência a nenhuma ilha flutuante. Ele cantava uma ilha de cinquenta e quatro quilômetros de comprimento, cujas cristas montanhosas permanecem petrificadas até hoje. Ele cantava a figueira centenária e profundamente enraizada, a lagoa de águas azuis e sonolentas, a natureza exuberante de uma paisagem que se renova constantemente sem sair do lugar. E foi assim, reunidas e paradas, que as belezas deslumbrantes e eternizadas pelo tempo encheram os olhos e o coração do poeta: “Jamais a natureza reuniu tanta beleza! Jamais algum poeta teve tanto pra cantar!”

O mesmo não se deu com o nome. Os índios carijós, muito antes dos portugueses, chamavam a ilha de “Meiembipe”, palavra que traz a ideia de “montanha ao longo do rio”. O italiano Sebastião Caboto, a serviço da Espanha, numa de suas expedições, por volta de 1526, desembarcou na ilha e assinalou em seus mapas o nome de “Porto dos Patos”. Decerto que o topônimo está ligado a uma grande quantidade dessas aves, que imitando a flecha certeira dos legítimos donos da ilha, espetavam os pequenos peixes, pingentes prateados sob a lâmina azul daqueles dias.

Pouco mais de três anos da chegada de Caboto, tanto ele como um outro navegante, Diego Ribeiro, passaram a anotar em seus mapas o nome de “Ilha de Santa Catarina”. Não se sabe se tal nomenclatura foi uma homenagem de Sebastião Caboto à sua esposa, Catarina Medrano, ou a Santa Catarina de Alexandria, venerada pela Igreja Católica até 1969, quando foi banida do Calendário Litúrgico por falta de provas históricas de sua existência.

Devido a sua localização, era comum a visita de portugueses e espanhóis à ilha. Praticamente todas as embarcações que partiam do Rio de Janeiro em direção ao Rio da Prata, entre Argentina e Uruguai, necessitavam de reparos, água e víveres de toda sorte. Assim, no ano de 1623, aportou na ilha o bandeirante Francisco Dias Velho, provavelmente por sugestão do Governador do Rio de Janeiro, Salvador Correa de Sá e Benevides, e deu início ao povoado de “Nossa Senhora do Desterro”. O nome do novo povoado foi motivado por ser a ilha, à época, habitada por vários desterrados. A estes, juntavam-se náufragos, marinheiros desertores e alguns frades franciscanos.

Quase três séculos se passaram até a eclosão da Revolução Federalista em 1893, no Rio Grande do Sul. À frente dos acontecimentos estava “o primeiro vice-presidente a se tornar presidente”, o marechal Floriano Peixoto, que se revelou um ditador implacável, crudelíssimo, inimigo de toda e qualquer liberdade. Os federalistas gaúchos exigiam que Floriano se pautasse pela Constituição. Como o marechal não fosse homem de acordos, em pouco tempo os três estados do Sul se revoltaram. A ilha assistiu ao conflito sangrento entre “federalistas” e “legalistas”, até que, no ano seguinte, em 1894, Desterro foi ocupada pelas tropas de Floriano Peixoto. O Coronel Antônio Moreira César assumiu a chefia estadual. Seguiu-se uma ferrenha perseguição aos revoltosos, que em poucos dias foram fuzilados impiedosamente, sem direito algum de defesa.

A julgar pelos acontecimentos históricos, o nome atual da ilha recai como uma ironia ácida às famílias que viram muitos de seus membros serem assassinados friamente. Em homenagem lúgubre à carnificina imposta pelos vencedores do conflito, a ilha passou a se chamar “Florianópolis”, a “cidade de Floriano”, o terrível marechal.

É claro que hoje o nome soa antipático apenas aos que conhecem a outra parte da história do “pedacinho de terra perdido no mar”. Várias sugestões já foram dadas para que a ilha mudasse mais uma vez de nome. Já se falou em “Ondina”, que segundo a mitologia germânico-escandinava eram ninfas aquáticas de beleza extraordinária. Essas ninfas estariam ligadas à eternidade e efemeridade do amor. O nome é bem apropriado, posto a ilha como um símbolo do amor do Oceano Atlântico, que embora seja conhecedor de todo o corpo de sua amada, não pode adivinhar-lhe o nome exato.

Conquanto as empresas de turismo tenham explorado bastante a expressão “Ilha da Magia”, atualmente os moradores da cidade a chamam carinhosamente de “Floripa”. As ruas do centro ostentam dois nomes em cada placa, o atual e o antigo. Através dos antigos nomes, “Rua do Príncipe”, “Rua da Paz”, “Rua da Saudade”, pode-se flanar também pela atmosfera poética que continua adoçando toda ilha. É quando o caminhante mais sensível observa, na penumbra do palimpsesto urbano, o verdadeiro tesouro da ilha dos nomes flutuantes… Mais do que uma descoberta, um momento de puro amor.

(Charles Silva é poeta da ilha, graduado em História e mestre em Educação)

A VIDA COM TEMPO de osvaldo wronski / curitiba


O satélite fotografa a alma da chuva

Que por acima se aproxima

Fazendo-nos ficar a sós

.

Nada podemos contra o seu avanço

Que medonho e cativante nos enfrenta

estremecendo todas as estruturas

.

Vamos dar um tempo ao tempo

Este pode ser um bom momento

Para acompanhar os seus estágios

.

Por momentos nos contemos

Cercados por água saciante

Benvinda de todos os lados

.

Lá fora  a água retinge a cor da tinta

Invadindo lugares, privando a cidade de pessoas

Que andam em círculos sobre o metro quadrado

.

Nuvens obscuras encobrem o céu

O raio aponta para o chão

estarrecendo o cenário

.

Indo até aonde nós nos temos

Debaixo de algum abrigo metereológico

O clima se modifica e tudo se reedita

.

Chuva que cai como uma luva

quem me dera ficar ao deus dará

e ver o tempo que não para de cessar

QUERO SER FADA de ana carolina cons bacila /curitiba


Fada das quatro estações,
me traz emoções,
me traz meu sonhar.

Crio coragem pra te falar,
quero asas para voar,
sonho do coração.

Asas negras para o inverno.
Asas vermelhas para o verão.

Asas marrons para o outono,
Asas rosadas para a primavera.

Asas de anjo
para confortar um coração.

.

ana carolina (16) faz parte do grupo jovens poetas do site.

IMPACIÊNCIA de josé dagostim / criciúma

Impaciência

O tempo corta-me num cerco implacável. Percorro perdido entre os limites da rota e o balanço, num ritual que tenta agradar os deuses da lentidão. Minha dança é sem compasso, presa no entroncamento do destino. Avanço o sinal num gesto previsível que acusa o agastamento do logradouro…


ÁFRICA de nelson padrella / curitiba

Os rios eram azuis na folha de cartolina. Tão azuis quanto os olhos de Margot. Ela ficou de vir estudar aqui em casa, ela e seus olhos muito azuis.

Os garotos vieram me procurar para a gente ir brincar. Bem que eu estava com vontade de descer a rua no carrinho de rolimã, mas a menina era muito mais importante.

Quando a campaínha tocou meu coração mudou de lugar. Margot entrou sobraçando cadernos. Nem um beijo à porta.

Sentados na sala grande como crianças comportadas. a África era nossa, onde sonhávamos safáris. Os faraós nos aguaravam, deitados pacientemenmte em seu sono de pó. O pó dos séculos deve ser como a areia do Sahara. O Nilo foi criado no papel, sem ameaça de crocodilos. Só o azul das águas ameaçava.

– Quando desenhei o rio pensei nos teus olhos.

Ela, concentrada na leitura de um texto.

Falo de maneira diferente:

– Teus olhos me lembram o Nilo.

Ela deixou o interesse pela leitura.

– Meus olhos estão cheios d’água?

– Não – eu disse.

– Cheios de faraós?

Abaixei a cabeça não envergonhado, abaixei para sorrir melhor.

A menina continuava me provocando:

– Então, meus olhos…(fez uma grande pausa, inventado o que dizer)…eles são os maiores do mundo?

– Sim – respondi.

Ela se admirou. Olhou séria para mim:

– Tenho olhos tão grandes assim?

– Não, Margot. Os olhos de você são os maiores do mundo em beleza.

Ela continuou seria. Retomou o texto, como se o que eu tivesse dito não importasse. Depois, apanhou a ecoline e ia pincelando savanas na África inventada. Parou nas margens do Nilo.

– Por que você disse aquilo?

O cheiro de Margot me inebriou. Flores da África ofereciam perfume. O siroco me sufocava com seu ar quente.

– Disse porque é verdade.

Agora, era ela quem se perdia. Retomou o desenho, mas a caneta parada na mão era como a caravana indecisa nas areias, que não sabe o rumo a ser tomado. Ela olhava para fora, o jardim onde verdes se insurgiam.

– E se fossem verdes?

– O quê?

– Meus olhos. Se fossem verdes?

Pensei um pouco, mas ela respondeu antes que eu falasse.

– Iam lembrar o lodo do fundo do Nilo?

Ela estava contrariada e eu não atinava o motivo. Era quase agressiva quando olhava daquele modo para mim.

– Não, Margot. Se fossem verdes me lembravam das florestas da África.

Paramos de falar. Da rua, gritos alegres de crianças. Um perfume vindo não sei de onde. A vontade de tocar na menina.

– Um dia queria ir pra África – eu disse.

Ela não respondeu. Talvez não tivesse o que dizer. Eu me enchi de coragem.

– Queria navegar no rio Nilo.

Ela ergueu o rosto e estava sereno. Era um sorriso nascendo no canto dos lábios?

– Queria navegar nos teus olhos – eu disse.

Ela abaixou a cabeça e fez que sim. Eu toquei com a mão em seu ombro e ela suspirou. O segredo da esfinge desvendado. Trouxe a cabeça da menina até perto da minha.

MEDIOCRIDADE versus TALENTO / editoria

quando Winston Churchill, ainda jovem, acabou de pronunciar seu discurso de estréia na Câmara dos Comuns, foi perguntar a um velho parlamentar, amigo de seu pai, o que tinha achado do seu primeiro desempenho naquela assembléia de vedetes políticas.

o velho pôs a mão no ombro de Churchill e disse, em tom paternal: -“Meu jovem, você cometeu um grande erro. Foi muito brilhante neste seu primeiro discurso na Casa. Isso é imperdoável. Devia ter começado um pouco mais na sombra. Devia ter gaguejado um pouco. Com a inteligência que demonstrou hoje deve ter conquistado, no mínimo, uns trinta inimigos. O talento assusta.”

e ali estava uma das melhores lições de abismo que um velho sábio podia dar ao pupilo que se iniciava numa carreira difícil. a maior parte das pessoas encasteladas em posições políticas é medíocre e tem um indisfarçável medo da inteligência. temos de admitir que, de um modo geral, os medíocres são mais obstinados na conquista de posições. sabem ocupar os espaços vazios deixados pelos talentosos displicentes que não revelam apetite pelo poder. mas é preciso considerar que esses medíocres, ladinos, oportunistas e ambiciosos têm o hábito de salvaguardar as posições conquistadas com verdadeiras muralhas de granito por onde talentosos não conseguem passar.

dentro desse raciocínio, que poderia ser uma extensão do “Elogio da Loucura”  de Erasmo de Roterdam, somos forçados a admitir que uma pessoa precisa fingir-se de burra se quiser vencer na vida.

o grande dramaturgo brasileiro nelson rodrigues nos deixou esta:

Finge-te de idiota e terás o céu e a terra.