CARNE TRÊMULA por frederico fullgraf

Um dia terá que confessar. Contar tudo a ela. Desconcertada, ela tenta acalmá-lo. Abraça-o, beija-o, aninha-o. Não sabe que na raíz do seu estremecimento está certa síndrome de placas tectônicas. Tenebroso tremor dos umbrais, capaz de empalidecer a carne, amarelar os heróis de Almodóvar; credor desta leviana licença poética.  Placas, o quê? Comovida, ela tenta se aproximar, pergunta que “visões” são aquelas. Não entende o extremismo dele, o salto para fora da cama. Depois brinca: vai ver, é encosto de vidas passadas… E sempre acontece em pleno êxtase. Mas só em apartamentos. Quanto mais alto o prédio, mais pavorosa a vertigem. Será rejeição? Sentindo-se culpada, ela ecoa, testa seu próprio hálito com a palma da mão aberta em concha à frente da boca – hálito que continua perfumado como todo seu corpo; quente, aconchegante. Ele a consola: nada a ver contigo, querida. E ela o recompensa, diz que ele foi “maravilhoso” (mal sabe ela daquele vai-e-vem!). Mas então, o que é? Vendo-o agora, pálido, estático, debaixo do caixilho da porta do quarto, lhe recomenda, já aflita, um telefonema para o terapeuta – e ele ali com a expressão dos possessos, carranca de Kaspar Hauser, os pés milimetricamente retraídos à soleira, a cabeça cuidadosamente protegida pelo vão; olhos esbugalhados fixando a janela!

 

Mergulhado em silêncio indecifrável, ele recolhe os fragmentos, encaixa os estilhaços, acomoda as sensações de sua carne estremecida, para tornar plausível aquele episódio inenarrável. Que na verdade dispensa terapeuta. Este, apenas irá divertir-se às suas custas, cobrar-lhe honorários por seus risinhos pudicos – que definhe em sua angústia Lacaniana!

 

Então refaz a viagem. Desembaraçado do controle de passaportes, arrastando a mala e buquê de flores em punho, alcançou o portão de chegada. Com muita apreensão. E naquele átimo que o separava do desejado abraço com ela, a “ex” (expressão que, verdade seja dita, soa sórdida, lembra veredicto de execução sumária), na tela da memória espocou em seqüência descontrolada aquele filme: fazia vinte e três anos que tinha levantado vôo de Santiago. Coração latejando na boca, pulmão esbraseado: em poucas horas estariam em seu encalço, atrás das trinta latas de filme não revelado em sua bagagem. Imagens proibidas, sobre a resistência contra o tirano. Filmadas à sorrelfa, driblando a mais feroz das ditaduras. Aquela espera pelo embarque, fora das mais excruciantes em sua vida. Por isso esperava enfrentar-se com seus fantasmas já acompanhado, cingido por ela.

 

Mas, que droga, onde ela se metera? O coração outra vez disparado. Daquela vez alvoroçado, agora, machucado: um dia inteiro em viagem, de escala em escala, de país em país – e ela não viera recebê-lo. De repente lembrou-se, ela era reincidente: já o tinha feito esperar hora e meia num bar. Sentiu nas estranhas um pequeno terremoto. Jogou as flores de ponta-cabeça numa lata de lixo e informou-se sobre os vôos de regresso ao Brasil. Para aquela mesma noite? Nenhum. Reservou um hotel por telefone e sentou-se para fumar um cigarro, já fazendo planos.

 

Surgindo do nada, vestida de preto e aflita, ela irrompeu no grande saguão. Já tinha perdido o bronzeado da Ilha do Mel, mas estava esbelta. Mantendo-se encoberto pela multidão, ele acompanhou os olhares desesperados dela à procura do seu; vingou-se, deixou-a sofrer. Só quando, já resignada, se preparava para fazer um telefonema, ele a chamou. E ali mesmo tiveram sua primeira briga. Tinha tomado o caminho errado para o aeroporto, ela mentiu, invertendo os papéis – mas, diabos!, quem ali era o estrangeiro desnorteado? Não me fales assim, sou pessoa pública, ela aprumou-se – e ele pensou que tinha desembarcado no aeroporto errado. Subiram ao carro dela. Na verdade ela se atrasara na casa de uma amiga (informação da mãe no primeiro telefone dele). Ele fumou mais dois cigarros com raiva e disparou: quem ama, chega adiantado ao aeroporto! (riu-se às escondidas, era frase com sonoridade de aforismo). No meio da estrada pediu para parar. Ela resistiu, chorou. Mas ele engoliu duas lágrimas secas para não vacilar, e seguiu de táxi. Naquela primeira noite se instalou num hotel. E ela lhe ligou dezessete vezes.

 

Domingo, céu de brigadeiro, chamejando com as cores da reconciliação, comeram um asado na casa do futuro sogro. Beberam vinho das boas cepas do Valle Central. Falaram abobrinhas, contaram piadas, buscaram alguma afinidade. Ela o apresentara como compañero, mas evitaram o passado; a prisão, as torturas, o exílio do pai e antigo colaborador do presidente caído em combate no Palácio da Moneda. Estranhamente, no brilho dos objetos e nas frestas entre as palavras ele percebeu a acomodação de um deslumbramento; inicialmente algo insondável, e depois mais e mais desvelado. Dinheiro. E enquanto ela cumpria seu protocolo de vereadora da capital do país, ele reencontrava-se com Santiago, a néscia, apressada, sufocada por chumbo e fumaça; a Cordilheira sangrando a neve com lágrimas de fuligem.

 

Quando ela finalmente se desvencilhou do cerimonial, escaparam para o norte, via Panamericana, onde os nativos parecem imitar os suíços, em obsessivo aproveitamento de cada nesga dos minúsculos vales férteis. Embrenharam-se no Valle del Elqui e embebedaram-se de pisco. Instalaram-se em Puerto Velero, recortado por azul veludínio.  Fartaram-se de polvos, lulas e peixes sirênicos das águas profundas. Amaram-se na banheira muito pequena para aquela luxúria sem tamanho, deitando água na sala, inundando a casa. A foto perfeita: ela riu de braços abertos, quando ele urrou, mergulhando nas águas geladas daquele mar do poente. E sentados na praia, na última noite tentaram socorrer-se de seus abalos sísmicos, contando as estrelas do poeta de Isla Negra, ancoradas sob o céu do Pacífico.

 

E então sobreveio aquele dia mal-nascido. Até a hora do almoço o país assistira atônito à domesticação da hiena, à investidura do ditador sanguinário no cargo de senador da República. Honraria vitalícia em desonra da Nação. O povo saiu às ruas. Calígula protegido pela guarda pretoriana: cerco, ameaças, soldados com os olhos colados na mira das armas. !Vayan-se todos! Indignação e asco, palavras e pedras. No meio da fúria, as mãos dele e dela perderam o toque. Reencontraram-se no apartamento dela, noite já alta.

 

Famélicos, deitaram-se e enrolaram-se na cortina de tisne que escondia a cidade. E quando seus corpos alagados já se confundiam, a cama começou a mover-se. Um misterioso ritmo, que não era deles, infiltrara-se. Agarrado ao silêncio, ele estancou seu movimento, e ela se enfureceu. Nela nenhum espasmo, nele apenas respiração contida. Fechou os olhos, creditando a estranha sensação à reverberação do dia já consumido. Subitamente sentiu mais que um tranco – era balanço. Olhou para a mulher a seu lado, com a expressão do prazer interrompido nos lábios: como é que te moves, se eu não te toco? Mas quando ergueu o olhar, pensou ver a cordilheira atravessando a janela, feito pêndulo. Não acreditou. Em pânico, acotovelou a mulher já adormecida: o prédio treme! Espreguiçando-se, ela desdenhou com desprezo mais que indolente: es apenas um tremorzito… Terremoto?! No, !tremorrr! Insultado pela escala Richter, cujas nuanças lhe pareciam cínicas, ele saltou da cama, bateu de frente com o guarda-roupa, reincorporando-se sem saber para onde correr. Ela instruiu-o desde a cama abandonada: não seja idiota! Mas já que você quer se salvar, o único lugar recomendado pelos sismólogos é o caixilho da porta. E enquanto refletia sobre a piada (de hilariante realismo), imaginando-se despencar do décimo quinto andar, emoldurado por uma porta que não o salvaria da desdita, no alto do 15º andar daquele prédio do bairro de Providencia, a cordilheira saudava sua carne trêmula com imperturbável vai-e-vem diante da janela.

 

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