JAYME OVALLE por claudio leal

 

Mire só: um homem de monóculo enamora-se por uma pomba, cria um macaco em seu apartamento londrino, deseja reescrever a Bíblia, conversa com Deus, oferece uma batida ao Anjo Gabriel, mas este, relata, não quis sequer um uisquinho; o citado senhor sustenta que já esteve no céu e, quando deseja fazer prevalecer sua opinião, ameaça ao amigo: “Quer que eu chore?”.

No mundo do leitor, Jayme Ovalle (1894-1955), esse cavalheiro de monóculo – poeta, músico e místico – já teria caído na malha médica ou vestido outra malha ainda mais fina, a camisa-de-força. Na primeira metade do século 20, porém, as improváveis loucuras de Ovalle inspiravam afrescos literários de Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Dante Milano, Vinicius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, Olegário Mariano, Murilo Mendes, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Carlos Drummond de Andrade, para ficarmos nos escritores. Um músico? Villa-Lobos.

Esse espírito indecifrável renasce em vísceras na biografia O Santo Sujo – A vida de Jayme Ovalle (Ed. CosacNaify), do jornalista Humberto Werneck. Não há apenas a reunião dos cacos da personalidade ovalliana. Com êxito idêntico ao de seu livro O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais, o biógrafo descortina o elenco da vida boêmia, o sangue e o vinho derramados nos bares, o vasto universo de ovalles em torno do Ovalle mais candente. Antes que a história corra, registre-se o poder narrativo de Werneck, pleno de iluminações e com português bom à beça.

A influência de Ovalle em escritores canonizados é marcada por estranhezas. Nascido em Belém do Pará, chegado ao Rio em 1911, “o místico” teve uma formação cultural precária e desordenada, deficiência patente nos garranchos de sua caligrafia e na dificuldade de expressar, em linguagem escrita, a poesia exalada na oralidade. Traço de alma identificado por Mário de Andrade ainda em 1926, em carta a Manuel Bandeira: “A incapacidade de criação dele é fantástica”.

Ovalle deixou duas obras, ambas não-publicadas em vida: Poemas ingleses e The Foolish Bird – este último reescrito em inglês pela esposa, a romancista americana Virginia Peckham. Duas obras germinadas na Inglaterra, onde trabalhou por quatro anos, na década de 30. A última, ditada a uma secretária inglesa, com os óbvios conflitos de entendimento. “Artista praticamente sem obra, é espantoso que Jayme Ovalle tenha deixado marca tão funda e tão reconhecível na criação de outros (…) não só pelos achados poéticos e espirituosos que cravejavam sua conversação, como por simplestemente existir, extraordinário personagem que era”, analisa o biógrafo.

 

Casamento de Jayme Ovalle: da esquerda para a direita, Murilo Mendes, Anibal Machado, Ovalle, Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt

Para se ter um gosto do espírito puro e desarmado dos amigos diante de Ovalle, vale citar o techo de uma carta de Bandeira ao “místico”, posteriormente rasgada pela viúva. Ao falar de suas novas amantes, conta Werneck, o autor de Libertinagem bradou em caixa alta: “Tenho fodido muito, que felicidade!”. Esse companheirismo deixou um monumento poético à simplicidade. Uma dia Ovalle chorou à farta ao ver que Bandeira preparava o próprio café. Ali estava o mote do Poema só para Jayme Ovalle:

“Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando…
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.”

NOVA GNOMONIA

De 1991 a 2000, Humberto Werneck caçou rastros de Ovalle no Rio de Janeiro, Londres, Paris e Nova Iorque (onde o músico também residiu, a trabalho). Tarefa inglória, às vezes interrompida. Funcionário exemplar da Alfândega, Ovalle embaralhava seu passado e deixava ser reinventado nas rodas dos bares e nos rodapés da imprensa. Compositor de Azulão, clássico da música brasileira, circulava nos mais estranhos meios, todos desejosos de retê-lo. Um dos valores de O Santo Sujo está na recomposição da fauna de personagens secundários, renascidos em diálogos e pelejas das noites do Rio.

Parte das famosas improvisações verbais de Jayme Ovalle foi salva graças às dificuldades financeiras do poeta Vinicius de Moraes, num entreato de sua vida diplomática, no Brasil. Disposto a amealhar alguns níqueis, propôs uma entrevista com o compositor ao suplemento Flan, do jornal Última Hora, em 1953 – ao lado do parceiro Otto Lara Resende. Amostras:

P – Por que Deus fez as mulheres feias?
R – As normalmente feias Deus fez para casar com homens bonitos. Quanto às irremediavelmente feias, foram feitas por Deus para povoar as igrejas de madrugada, para usarem grandes rosários e serem beatas.

P – Qual a posição política do demônio?
R – É da natureza do Demônio mudar de política conforme os acontecimentos. (…)

P – Você, como católico, aceita o ato sexual independentemente do sentimento da procriação?
R – Eu sou contra qualquer burocracia. (…)

P- Haverá sempre pobres no mundo?
R – Acho que sim… porque senão quem vai dar esmola aos ricos?

Os entrevistadores eram entusiastas da Nova Gnomonia, teoria de classificação da humanidade arquitetada pelo “místico”, ajudado por sopros do arrebatado Augusto Frederico Schmidt. Cada categoria tinha seu anjo padroeiro. Para Vinicius, a Gnomonia “constitui a grande contribuição do Brasil à filosofia do conhecimento do universo”. Essa extraordinária filosofia ganhou registro de Manuel Bandeira, em crônica de 1931. Desde então influenciou platônicos, socráticos, kantianos, marxistas… À suma filosófica:

Exército do Pará
Abre aspas para Werneck: “O tal do Exército do Pará, explicou Ovalle ao poeta (Bandeira), era formado por ‘esses homenzinhos terríveis que vêm do Norte para vencer na capital da República’ (…) a categoria é território de sujeitos ‘habilíssimos, audaciosos, dinâmicos’ que visam, ‘primeiro que tudo, o sucesso material, ou a glória literária, ou o domínio político”. Abusando do diminutivo – outra inflência de Ovalle -, cabe a pergunta: “jesus cristinho”, será do Exército do Pará o ex-presidente da República e acadêmico José Sarney?

Dantas (anjo: o diplomata San Thiago Dantas)
Bandeira: “homens de ânimo puro, nobres e desprendidos, indiferentes ao sucesso na vida, cordatos e modestos, ainda quando tenham consciência do próprio valor”. Exemplos: o Barão de Itararé e São Francisco de Assis. O ditador do Zimbábue, Robert Mugabe, não é “dantas”.

Kernianos (anjo: o jornalista Ari Kerner Veiga de Castro)
“Indivíduos de bom coração”, explica Bandeira, “capazes de grandes sacrifícios pelos outros, deixam-se no entanto arrastar às vezes à prática dos atos mais condenáveis, não por maldade, mas por um impulso irresistível de cólera”. Kernianos: D. Pedro I e o poeta Byron.

Morzalescos (anjo: o escritor cearense Francisco Mozart do Rego Monteiro)
Diz-nos Bandeira: “São pessoas que se exprimem ou obram de molde a fornecer aos que os observam uma impressão de coisas consideráveis, ao que todavia não corresponde o conteúdo de suas palavras ou de suas ações.” Morzalescos rondam as bancas universitárias.

Onésimos (anjo: o advogado Onésimo Coelho)
“O drama íntimo dos onésimos é não sentirem entusiasmo por nada, não encontrarem nunca uma finalidade na vida”. Em situações de responsabilidade, porém, atuam “com o mais inflexível senso de dever”. São onésimos Gilberto Freyre e Heine.

Filosofia nada ortodoxa, a Gnomonia admite a transição de uma categoria para outra. Com traumas.

Em foto publicada no Flan, o poeta Vinicius de Moraes acende o cigarro do “místico” Jayme Ovalle. Ao centro, o escritor Otto Lara Resende.

MUNDO DE OVALLES

Dentre os milagres de Jayme Ovalle, está o amor por uma pomba. “Nada platônico, Ovalle mobilizou seu arsenal de sedução na corte à alada visitante que, todos os dias, ao longo de meses, freqüentou pontualmente sua janela no Palace Hotel”, descreve Werneck. Recebia milho das mãos do Don Juan. De outra feita, apaixonou-se por um manequim da rua Gonçalves Dias, no Rio. Coração leviano.

Essa constância de amor, misticismo e surpresa, de um poeta de versos represados, assume ainda hoje um caráter libertador. Sobre os amigos que sobreviveram à sua morte – pouco generosos com sua viúva -, Ovalle pairou como uma esfinge ou um fantasma anti-convencional. “Que intuição prodigiosa tinha de tudo!”, escreveu Bandeira a Vinicius de Moraes. “Vai fazer muita falta a vocês que ainda viverão muito”. Distante do féretro, Vinicius fixou em poema “a última viagem de Jayme Ovalle”:

“Ovalle não queria a Morte
Mas era dele tão querida
Que o amor da Morte foi mais forte
Que o amor de Ovalle à vida.

E foi assim que a Morte, um dia
Levou-o em bela carruagem
A viajar – ah, que alegria!
Ovalle sempre adora viagem!

Foram por montes e por vales
E tanto a Morte se aprazia
Que fosse o mundo só de Ovalles
E nunca mais ninguém morria (…)”

 

Uma resposta

  1. Conheci as histórias de Ovalle pelas crônicas de Fernamdo Sabino, e os “causos” por êle contado são deliciosos.

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